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Grafico 5 Ranking sobre Educação – UNESCO 2011

2.8 CAMBIRA OU CÁ EMBIRA? SENTIDOS POSSÍVEIS

A etimologia da palavra ‘Cambira’ possibilita refletir sobre a produção do sentido dicionarizado desse termo. No entanto, tendo em consideração que o sujeito é simbolicamente atravessado por um discurso e, por meio do uso que se faz da língua, a palavra dentro de um determinado campo pode produzir outros efeitos de sentido, dentro de circunstâncias dadas. Ou seja, os efeitos de sentido do produto “Cambira” que por sua vez nomeia o “Projeto Cambira” parecem perderem-se, na tentativa de dicionarizar o termo. Em outras palavras, esse sentido outro que dá o nome ao “Cambira” produto, que por sua vez, dá nome ao “Projeto Cambira” não aparece nos dicionários.

Se o termo ‘Cambira’ for observado nas várias perspectivas, isto é, na perspectiva etimológica, na perspectiva do produto e finalmente na perspectiva do Projeto, possibilitará um aglomerado de sentidos. Ele segue rizomaticamente24 para inúmeras direções e estabelece relações de uso para constituir seu(s) sentido(s). Fala-se do vocábulo, nesse momento, para expressar a materialidade significante da língua, mas ao ser historicizado, passa-se a pensá-lo em sua discursividade, ou seja, como, por meio de seu funcionamento, ele produz sentidos.

Inicialmente, no sentido dicionarizado, o dicionário Houaiss25 apresenta o termo como sendo um substantivo feminino de uso regional no Brasil, significando tainha (peixe) seca e salgada. Na tentativa de construir uma etimologia ao termo Ferreira (1986) apresenta-o no Novo Dicionário da Língua Portuguesa26 como sendo de origem tupi “Cambyra”, que significa galho pungente e espinhento. Há outra perspectiva que apresenta o vocábulo como além de ser

24 Rizomaticamente: advérbio de modo do substantivo rizoma. Na formulação de Kastrup (2010), rizoma pode ser entendido como um sistema acentrado, que faz conexões sem obedecer a uma ordem hierárquica ou de filiação, conectando-se por contato, ou antes, por contágio mútuo ou aliança, crescendo por todos os lados e em todas as direções.

25 Fonte: Dicionário Houaiss. Disponível em www.houaiss.uol.com.br, acessado em 04.08.2013.

26 Fonte: FERREIRA, A.B.H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

de origem tupi ‘Cambyra’, significando galho pungente e espinhento, designaria um cipó existente em grande quantidade na região da cidade de mesmo nome, no período de sua colonização. Mas muitos historiadores tratam do termo como sendo uma espécie de “Tainha”, pertencente à família dos Mugilidae e inclui cerca de oitenta espécies, sendo uma delas conhecida pelo nome de ‘Cambira’.

As tentativas de retomar, ou melhor, de reconstruir uma etimologia da palavra ‘Cambira’, remetem a um saber dicionarizado, no entanto, não dão conta de produzir o efeito de sentido do termo tal qual o Projeto Cambira o concebe. Com base no que precede, pode-se pensar o processo de formação da palavra ‘Cambira’ e seus vários sentidos possíveis produzidos. Há vários dizeres a respeito desse termo. Um deles remete ao significado da palavra como sendo originária de um cipó muito abundante na região de Cambira, cidade localizada no norte do Paraná. A palavra, para os moradores de Cambira, é de origem indígena, sendo a flor de cipó de cor lilás, perpetuada no brasão municipal. Há informações que o nome tem origem do guarani ‘Cambyr-a’. Por meio do diálogo com os índios da região norte do Paraná, descobriu-se que havia um cipó chamado ‘Cambiráh’, vocábulo esse proveniente do dialeto dos índios que ainda vivem lá.

É importante perceber que há estudos que, na tentativa de reconstruir uma etimologia, ou seja, um significado para se referir ao vocábulo ‘Cambira’, acabam por cristalizar o termo. Ao dicionarizá-lo busca-se dar um aspecto legal ao termo, mas que, no entanto, ele acaba ganhando um sentido específico a partir do uso, isto é, da construção do artefato, desse produto e da culinária pesqueira, em particular.

Essa construção do significado cristalizado é percebida pela análise etimológica do termo. Assim, tem-se: do guarani, ‘Cambyr-a’; do dialeto indígena, ‘Cambiráh’; do tupi, ‘Cambyra’. Todas as fontes remetem à espécie de cipó da região norte do Paraná, ocupada pelos indígenas. Não há historicidade, apenas o saber linguístico é revelado, em nível textual e contextual imediato. A partir do momento que o vocábulo deixe de ser pensado apenas em sua organização linguística, como nos casos precedentes relatados, e passe a ser pensado em sua ordem significante é que se compreende a sua relação com a exterioridade. Para isso é necessário o gesto de interpretação. Para Orlandi ([1996] 2012a), a interpretação está presente em qualquer manifestação da linguagem. Não há como gerar sentidos sem interpretação. O espaço cedido para o gesto de interpretação pelo autor é que irá constituí-lo como autor.

Então, partindo do interdiscurso, ou seja, do já dito que constitui toda a possibilidade de dizer, ou ainda, do conjunto de enunciações já ditas, porém esquecidas e que são irrepresentáveis, é que se situa a sequência desta pesquisa. Desta vez, trata-se de reportagem

no blog do Projeto Cambira27 em que foi postado um texto a respeito da origem do nome ‘Cambira’, pelo jornalista e escritor Carlos Adauto Vieira. O texto publicado na coluna “curiosidades” relata que o jornalista ao saborear pela primeira vez o prato típico da Cambira indagou o que era, ao que um amigo respondeu “é uma Tainha limpa, salgada e seca ao sol”. Mas, a dúvida ainda pairava “donde o nome ‘Cambira’?” Conta ainda que ao conversar com os pescadores, o jornalista descobriu, ao indagar “como vocês carregavam aquela quantidade enorme de Tainhas secas para as carroças, carros ou, de canoa, pros mercados?” Ao que o pescador respondeu “amarrando de três em três pelos olhos, cá embira”.

Esse dizer do pescador a respeito do termo ‘Cambira’ vai ao encontro do texto publicado no jornal “Gazeta do Povo”28, que menciona a Cambira como sendo o nome dado ao prato típico da culinária do litoral de Santa Catarina e do Paraná. Segundo a reportagem, a origem da Cambira está relacionada à chegada dos portugueses no litoral, trazendo especiarias, dentre elas o sal. Há informações ainda relatando que o produto mudou a alimentação caiçara: o peixe, que antes precisava ser consumido rapidamente passou a ser salgado e defumado na “Cambira”, uma espécie de varal feito com um cipó da região, que dá nome ao prato. Pelo relato, percebe-se como o discurso jornalístico tenta apagar os sentidos da cultura brasileira desde a sua origem. O ato de atribuir aos portugueses o mérito de trazer o “sal” para os colonizados, no caso, os indígenas, pode remeter ao sentido de que os colonizadores eram solidários e preocupados com o povo que aqui habitava, na época do “descobrimento” do Brasil. Com isso, a reportagem afirma que os índios puderam conservar seus alimentos devido à colonização: “o produto (no caso o sal) mudou a alimentação caiçara: o peixe, que antes precisava ser consumido rapidamente passou a ser salgado e defumado na Cambira”. Com esses dizeres, outros são apagados. Tenta-se apagar a relação de dominação dos índios pelos portugueses desde a origem. Trata-se do apagamento dos efeitos de sentido produzidos sobremaneira à instituição das relações colonialistas entre os países da Europa e a América Latina, considerada o “novo mundo”. Sobre isso Orlandi (2007) comenta que o índio não fala na história do Brasil, mas “é falado pelos missionários, pelos cientistas, pelos políticos.” (ORLANDI, 2007, p. 57).

Outro efeito de sentido apagado é o fato de os índios já se utilizarem da técnica de salga, que segundo o blog do Projeto Cambira, “era um processo inteligentemente prático e

27 Fonte: Blog do Projeto Cambira. Disponível em http://projetocambira.blogspot.com.br, acessado em 06.05.2013.

28 Fonte: Jornal Gazeta do Povo. Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/litoral “Um prato cheio de história” – Cintia Junges – Especial para Gazeta do Povo. 25.11.2011. Acessado em 23.04.2012.

econômico: faziam reserva do pescado, o mar os salgava, ao ponto, com a evaporação, os insetos – as moscas, principalmente – não as infectavam. Eram, então, milhares delas, guardadas até a próxima safra.”29 (grifo nosso).

Para acrescentar, a pescadora D. Anézia, membro integrante do Projeto Cambira, explica que o projeto recebeu esse nome porque na época de 1930, devido à guerra mundial, as pessoas mais velhas faziam a estrutura para salgar o peixe e conservá-lo por um período maior de tempo, pois não tinham muita opção para se alimentar. Ela salienta que era feito um buraco no chão, que era preenchido com lenha, para posteriormente ser queimada, e entre a fumaça eram instaladas varetas na areia para pendurar o peixe. A própria estrutura abafava a fumaça, pois, segundo a pescadora, não podia existir fumaça, uma vez que a fumaça denunciava a presença humana para os inimigos. E finaliza afirmando “Então essa época era a época da minha avó. A minha avó morreu com cem anos e ela sempre falava isso para a gente. Então um dia eu até tava comentando que isso a gente traz com a gente. O projeto é novo, mas a Cambira eu trago de berço.”

Atenta-se para o fato que já havia a preocupação de conservar os alimentos. Essa conservação era feita com o auxílio do mar, típica da cultura indígena. O blog, apesar de estar marcado também pelo fazer jornalístico, parece ter a preocupação em resgatar a origem da cultura da comunidade pesqueira.

Diante das perspectivas etimológicas apresentadas, parece o saber enciclopédico, por meio da linguagem verbal escrita, ser útil na medida em que ele garante a perenidade da língua e sobretudo, do saber enciclopédico. No entanto, a possibilidade dos sentidos transformarem-se em outros em uma circunstância discursiva, ou seja, a multiplicidade de sentidos parece só ocorrer quando há um gesto de interpretação do autor. Dessa forma, ao enunciar ‘Cá embira’30 o pescador aponta para uma nova possibilidade de sentido em virtude de uma nova palavra que se forma, uma vez que a embira, para os pescadores, trata-se justamente de um corda feita com uma espécie de cipó, a que alguns pescadores denominam simplesmente ‘bira’. Na oralidade, morfologicamente, uma nova palavra é composta, uma vez que justamente por desconhecer a palavra, na pronúncia, a fragmentação ‘Cá embira’ se perde para dar lugar à ‘Cambira’. Observa-se o deslize de sentido do termo, que, historicizado pelo

29 Fonte: Blog do Projeto Cambira. Disponível em http://projetocambira.blogspot.com.br, acessado em 06.05.2013.

30 Fonte: Blog do Projeto Cambira. Disponível em http://projetocambira.blogspot.com.br, acessado em 06.05.2013.

pescador, não é agora apenas um signo arbitrário tão somente, mas um termo abarcado de um saber regionalizado, que foge à instituição da norma padrão, dita culta.

Seguindo nessa linha de raciocínio, o termo “Cambira” pode ser desmembrado também em “com bira”, que por sua vez pode remeter a um exemplo de sintagma nominal dando ideia de “em companhia de”. Assim, “com bira”, pode lembrar algo amarrado, junto, firme, e não solto, à deriva. Esse sentido, por sua vez, remete ao objetivo do Projeto Cambira, de se solidificar, isto é, ser um projeto engajado, unido a uma instituição na qual o legitima.

Disso depreende-se que discursivamente um texto não produz sentidos de forma isolada. Ele dialoga com os outros textos para estabelecer relações de sentido. Assim, o termo ‘embira’ foi dicionarizado como um vocábulo de origem tupi ‘I’mbira’, que significa algo que tenha fibra, ou qualquer fibra vegetal que sirva de matéria-prima para cordoaria, ou ainda uma árvore nativa do Brasil que apresenta essa fibra em sua composição. Porém, o termo ‘embira’ também é encontrado no noticiário da RBS31 como sinônimo para 'lagarta’. Na edição de 09.04.2009 consta a seguinte chamada: “Invasão de Lagartas em Joinville”, seguida da redação: “embira, mandorová, manduruvá, taturana ou bicho cabeludo. O nome pouco importa para descrever os insetos que apareceram às centenas ontem, em Joinville.” (grifo nosso).

Percebe-se dessa forma, como a língua sofre transformações com o passar do tempo e de acordo com o meio na qual está inserido o sujeito falante. A reportagem, por meio do discurso jornalístico, enfatizou a questão da pouca importância dada ao nome do animal, mas que a importância se devia ao fato da quantidade do referido animal presente em Joinville. Como a língua sempre está sujeita a falhas na ordem do discurso, provocando o equívoco, será que se o nome não tivesse tanta importância, como está estampado na manchete do jornal, haveria a necessidade de justamente constar todos os nomes possíveis dados ao animal? Parece que houve mais um caso de negação. Tenta-se silenciar o termo, mas no momento em que esse silenciamento ocorre, surge um novo sentido.

Já o termo ‘bira’, que alguns pescadores remetem ao cipó empregado para a confecção da corda utilizada para o transporte da ‘Cambira’, aparece dicionarizado como nome dado à bebida alcoólica derivada do malte e da cevada, mais conhecida como cerveja (beer, cerveja em inglês, bibere, beber em latim e bewwa, cevada na língua alemã). Também pode designar o nome popular da lagarta ‘Lonomia Oblíqua’, ou seja, a também conhecida como “taturana, bira, ruga ou bicha cabeluda.” (grifo nosso).

Abaixo apresentam-se as imagens da “bira1” (cipó) e da “bira2” (lagarta):

Figura 1. Bira1 – Cipó

Fonte: Cidade de Cambira. Disponível em www.cambira.pr.br, acessado em 06.05.13.

Figura 2. Bira2 – Lagarta

Fonte: Invasão de Lagartas em Joinville. Disponível em www.clickrbs.com.br, acessado em 06.05.13.

As imagens trazem à tona o que a linguagem verbal, seja ela oral ‘Cá embira’ ou escrita ‘Cambira’, não é capaz de abarcar. Há uma semelhança de características físicas entre a corda feita de cipó e a lagarta. Sentidos que são produzidos somente pela materialidade da imagem. Orlandi (2012), afirma que a língua não pode ser pensada sem outras formas de materialidade significante.

Toda essa exposição de conceitos acerca das palavras ‘bira’ e ‘embira’ serve para mostrar como, em um determinado momento, a escrita institucionaliza os sentidos, constituindo

a linguagem, de forma que ao se pronunciar, o sujeito ativa esses sentidos por meio da memória discursiva, tendo a falsa impressão de que eles sempre estiveram “lá”.

Concluindo, as duas formas, tanto a do discurso da oralidade quanto a do discurso da escrita, são necessárias para a constituição da história. Mas os sentidos somente serão produzidos pelos gestos de interpretação, que denunciam a abertura do simbólico. Há sempre espaço para um novo gesto de interpretação, e com ele, novos sentidos podem emergir.

3 REVISÃO TEÓRICA

As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo.

Wittgenstein