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Grafico 5 Ranking sobre Educação – UNESCO 2011

3.6 DO ACONTECIMENTO SOCIAL AO ACONTECIMENTO DISCURSIVO

O termo acontecimento para o senso comum é tratado como algo factual, e pode designar uma ocorrência ou mudança no estado do mundo (ou contexto). Isto é, algo que sucede num determinado ponto do espaço e durante um certo período de tempo, constituindo um caráter pouco comum ou mesmo excepcional. Em geral, qualquer ocorrência pode ser considerada como um acontecimento, mas em um sentido mais estrito, acontecimento sócio- histórico são apenas as ocorrências que “merecem” ficar na história.

Para essa pesquisa, essa perspectiva de acontecimento, em sua empiria, não cabe. Trar-se-á à baila, no entanto, a noção de acontecimento a partir de três principais óticas teóricas: acontecimento social, a partir dos estudos de Geraldi (2010), o acontecimento enunciativo, por meio das pesquisas de Guimarães (2005) e finalmente o acontecimento discursivo, a partir do legado de Pêcheux (1969, 1988 e 2002). Porém outros autores hão de ser citados para maior sustentação dessa argumentação.

Inicialmente, partindo da ótica de Geraldi (2010), a linguagem não se presta apenas à comunicação. É nas interações com os outros que ela se materializa, não a si mesma, mas também aos sujeitos que por ela se constituem, internalizando formas de compreensão do mundo e fazendo com que os sujeitos sejam sociais, ideológicos e históricos, em processo de constituição contínua. Assim, na obra “A Aula como Acontecimento”, Geraldi (2010) defende a tese de que tomar a aula como acontecimento é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a permanência do mesmo e a fixidez mórbida no passado. Apesar de Geraldi (2010) não estar falando do lugar da teoria da AD, fato esse retratado em seus estudos, que refletem muito ainda a língua como processo de interação, há um certo direcionamento apontando para o acontecimento além do factual, por meio da ideia de produção de conhecimentos em sala de aula, uma vez que ele não visualiza a aula como um mero repasse de conteúdos.

Geraldi (2010) aponta para um caminho possível para o acontecimento em sala de aula. Para o autor, trata-se de “pensar o ensino não como aprendizagem do conhecido, mas como produção de conhecimentos, que resultam, de modo geral, de novas articulações entre conhecimentos possíveis.” (GERALDI, 2010, p. 98). O autor propõe tomar o acontecimento como o lugar donde vertem as perguntas, de forma que o acontecido possa ser interrogado em sala de aula. Assim, o autor trata do acontecimento em sala de aula como algo que ultrapassa a

relação triádica: o professor, o aluno e o conhecimento, sendo cada um desses elementos, por sua vez, enfatizados de acordo com as propostas pedagógicas das instituições de ensino. Para o autor, o acontecimento tem de ir além do repasse de conteúdos, isto é, as propostas pedagógicas devem ultrapassar a noção de aquisição de conhecimentos prontos, para a produção de conhecimentos, em suas práticas. Nessa ótica, novas articulações entre conhecimentos poderão surgir. Vale lembrar que Geraldi (2010) trabalha com a noção de acontecimento a partir da teoria do discurso de Foucault. Dessa forma, o acontecimento social que Geraldi (2010) estuda tem como ponto de partida o acontecimento discursivo que Foucault trabalha nos textos “A Ordem do Discurso (2004)” e “A Arqueologia do Saber (2012a)”.

Partindo desse pressuposto, Foucault ([1969] 2012a) critica aquelas leituras que procuram os sentidos ocultos, e ao refletir sobre a irrupção dos discursos, denomina essa atividade como descrição dos acontecimentos discursivos. Essa prática discursiva e seus efeitos de sentido surgem como um acontecimento discursivo, definido por Foucault ([1969] 2012a), como “constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um.” (FOUCAULT, [1969] 2012a, p. 32).

Para Foucault ([1969] 2012a), o campo dos acontecimentos discursivos é sempre um conjunto finito e limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas: “elas bem podem ser inumeráveis e podem, por sua massa, ultrapassar toda capacidade de registro, de memória, ou de leitura: elas constituem, entretanto, um conjunto finito.” (FOUCAULT, [1969] 2012a, p. 33). E acrescenta que a análise da língua colocaria em questão sob quais regras um enunciado foi construído e que possíveis enunciados semelhantes poderiam ter sido construídos. Mas, segundo ele, para a descrição de acontecimentos do discurso, a questão levantada deve ser outra: “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (FOUCAULT, [1969] 2012a, p. 33). É nesse instante que o discurso surge como acontecimento.

Dentro da perspectiva adotada neste trabalho, o acontecimento em sala de aula está além da reprodução de conhecimentos, ou seja, abre-se espaço para a produção de conhecimentos. Assim a aplicação da compreensão do acontecimento social, embora válida e necessária para a análise das aulas do FIC-PPCO do Projeto Cambira, não é suficiente para avaliar se de fato, ocorre o acontecimento discursivo, uma vez que, esse, só poderá ser constatado após a análise do corpus proposto. Porém, com esse ponto de partida, o do acontecimento social, desenvolve-se a possibilidade para outro espaço, que afeta sobremaneira a construção da identidade do professor. Essa “identidade”, por sua vez, não está baseada

apenas na redefinição das relações entre professor, alunos e conhecimento, mas ela leva em consideração outras formas de conhecer o mundo. Geraldi (2010) aponta, de forma caricata, a relação tradicional entre o professor e alunos como sendo a de transferência de conteúdos adquiridos na formação inicial da cabeça do professor para a cabeça dos alunos. Nessa dinâmica a cabeça do professor iria se esvaziando para ser novamente recarregada pela formação continuada. Esse modelo de aprendizagem remete ao processo de ensino-aprendizagem de conteúdos, podendo ser representado por “flechas de aprendizagem”33 (GERALDI, 2010, p. 94) que remeteriam os conhecimentos para o professor e este para os alunos. Para Geraldi (2010), urge a inversão dessas flechas, a partir da identidade profissional do professor, definida pela estrutura global da sociedade, mas também a partir do exercício profissional do professor como força propulsora de transformações. Para que essa inversão ocorra é necessário levar em consideração a herança cultural como o ponto de flexão nesta construção identitária. Dito de outra maneira, a relação com o vivido, que é a base da aprendizagem, deve inspirar o processo de ensino.

Assim, avançando ainda mais a teoria das flechas de Geraldi (2010), entende-se que a aula pode partir para a possibilidade de além de ser um acontecimento social, também vir a ser um acontecimento discursivo. Mais que inverter as flechas da aprendizagem propostas por Geraldi (2010), urge estender a flecha para além do espaço escolar. Constituir a aula em acontecimento implica em buscar os saberes dispersos ao longo da história, transformar esses saberes em conhecimento, legitimando-os, mas, principalmente, produzir novos saberes, professor e alunos, em conjunto com a comunidade, de forma que esses saberes produzidos possam ser reproduzidos e novamente implicados na produção de novos saberes, agora legitimados pelo discurso pedagógico, esse transformado em tipologia predominantemente polêmica34. O processo ensino-aprendizagem no Projeto Cambira avança para outro modo de funcionamento do tipo “Ensino-aprendizagem-ensino”. Em outras palavras, professor e aluno produzem o conhecimento juntos, na inversão das flechas, e em seguida o aluno com o desenvolvimento da autonomia da linguagem, legitimando sua autoria, pode reproduzir esses conhecimentos nas comunidades circunvizinhas, ministrando oficinas de processamento de pescados, e juntamente com a comunidade pode vir a produzir outros modos de conhecimentos que lhes serão significados em seu convívio pessoal e profissional. Com isso, não se pretende provar, com a execução desse trabalho de que toda aula deve ser um acontecimento discursivo,

33 As “flechas da aprendizagem” é um tema discutido no capítulo 05 dessa tese, na página 155.

mas que há a possibilidade de se verificar com as condições de produção do Projeto Cambira, se essa materialidade específica contribui para instaurar a aula enquanto um acontecimento discursivo.

O acontecimento também poderia ser olhado a partir dos estudos de Guimarães (2002 e 2005). Nesses estudos o autor expõe o acontecimento da ordem da enunciação. A teoria enunciativa contribui para o amadurecimento da questão do acontecimento, inclusive para se traçar um quadro distintivo entre as teorias, essa e a da AD. Porém, nesse trabalho, o foco principal está sendo dado, justamente da passagem do acontecimento social para o acontecimento discursivo, não sendo relevante, assim, expor toda a teoria enunciativa.

A semântica do acontecimento, nos moldes de Guimarães (2005), é uma semântica que considera que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da enunciação, isto é, do acontecimento do dizer. Nessa ótica, o sentido de um elemento linguístico tem a ver como este elemento está inserido em uma unidade maior. Guimarães (2005) afirma que há uma passagem do enunciado para o texto, para o acontecimento, que não é segmental, e que estabelece a relação de sentido. Partindo desse pressuposto, a enunciação é tomada como um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua.

Guimarães (2005) segue explanando os elementos decisivos para a conceituação do acontecimento enunciativo:

a língua e o sujeito que se constitui pelo funcionamento da língua na qual enuncia-se algo. Por outro lado, um terceiro elemento decisivo, de meu ponto de vista, na constituição do acontecimento, é sua temporalidade. Um quarto elemento ainda é o real a que o dizer se expõe ao falar dele. Não se trata aqui do contexto, da situação, tal como pensada na pragmática, por exemplo. Trata- se de uma materialidade histórica do real. Ou seja, não se enuncia enquanto ser físico, nem meramente no mundo físico. Enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico. (GUIMARAES, 2005, p. 11).

Dessa maneira, pelos estudos da enunciação, o acontecimento não é considerado um fato no tempo. Ou seja, não é um evento novo enquanto diferente de qualquer outro ocorrido antes no tempo. Segundo Guimarães (2005) “o que o caracteriza como diferença é que o acontecimento temporaliza. Ele não está num presente de um antes e de um depois no tempo. O acontecimento instala sua própria temporalidade: essa a sua diferença.” (GUIMARAES, 2005, p. 11). Assim, o que ocorre é um agenciamento político da enunciação, em que entre línguas e falantes, os falantes são tomados por agenciamentos enunciativos, configurados de forma política. Sobre isso, Guimarães (2005) relata que:

O Locutor só pode falar enquanto predicado por um lugar social. A este lugar social do locutor chamaremos de locutor-x, onde o locutor (com minúscula) sempre vem predicado por um lugar social que a variável x representa (presidente, governador, etc). Assim é preciso distinguir o Locutor do lugar social do locutor, e é só enquanto ele se dá como lugar social (locutor-x) que ele se dá como Locutor. Ou seja, o Locutor é díspar a si. Sem esta disparidade não há enunciação. Deste modo, no acontecimento de enunciação há uma disparidade constitutiva do Locutor e do locutor-x, uma disparidade entre o presente do Locutor e a temporalidade do acontecimento. (GUIMARÃES, 2005, p. 24).

Guimarães (1989) apresenta a enunciação enquanto um acontecimento sócio- histórico da produção do enunciado, não podendo ser ela, um ato individual do sujeito, não sendo assim, não repetível. Assim, ele afirma “o repetível está na enunciação porque ela se dá no interior de uma formação discursiva. Mas no acontecimento enunciativo se expõe ou pode- se expor o repetível ao novo.” (GUIMARÃES, 1989, p. 79).

Marques (2000) acrescenta ainda que:

Perspectivar a língua a partir da enunciação é, em primeiro lugar, considerar uma nova atitude em linguística que assinala, como disse Benveniste, o regresso do homem à linguagem, não de uma forma externa, como o faz, por exemplo, Jakobson, que na construção do modelo dos factores de comunicação deixa o emissor e o receptor ‘fora’ da língua, ainda concebida como código, mas como elemento fundamental, como usuário, que condiciona a organização e funcionamento da própria língua/código. Tal atitude põe em causa a homogeneidade da língua, pedra angular de todas as teorias estruturalistas e gerativistas, revoluciona a linguística por dentro, logo a partir da concepção da ‘língua’ como objecto de análise. (MARQUES, 2000, p. 66).

Guimarães ([1995] 2002) redefine o campo da enunciação e traz, para o acontecimento, a questão da temporalidade, onde o autor diz que o sujeito não é a origem do tempo da linguagem, mas o sujeito é tomado na temporalidade do acontecimento. Sobre a temporalidade do acontecimento, o autor argumenta ainda que ela constitui o presente e abre o lugar dos sentidos, e um passado, mas um passado de rememorização de enunciações, isso quer dizer que esse passado acontece como parte de uma nova temporalização, projetando em si mesmo um futuro, sem a qual não há sentido, não há acontecimento, nem enunciação.

Com efeito, o acontecimento discursivo diferencia-se do acontecimento social e do acontecimento enunciativo. Conforme Maldidier & Ghilhaumou ([1994] 2010), o acontecimento discursivo não está relacionado como os acontecimentos históricos ou jornalísticos, a um referente, uma vez que o acontecimento discursivo “não se confunde nem com a notícia, nem com o fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construído pelo historiador. Ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado.” (MALDIDIER & GUILHAUMOU, [1994] 2010, p. 164).

Partindo desse pressuposto, o acontecimento discursivo pressupõe a relação entre o cruzamento de dizeres, que provocam rupturas no processo. A análise dos efeitos de ruptura, nesse aspecto, tem sido estudada por Zoppi-Fontana (1997), buscando com isso compreender a possibilidade de novos espaços de significação do sujeito. Zoppi-Fontana (2009) aponta que a caracterização do discurso como acontecimento, desenvolvida por Pêcheux, faz pensar o seu potencial efeito desestruturador-desregularizador. Essa perspectiva abre para se pensar o discurso como acontecimento na sua contingência constitutiva, ou seja, um “vir-a-ser- consumado que poderia não ter sido ou que poderia vir-a-ser-outro ou vir-a-não-ser.” (ZOPPI- FONTANA, 2009, p. 133). Porém para que isso ocorra é necessário pensar que:

o encontro é fortuito, é fruto do acaso, é puro acontecimento, é contingência, porém, para que haja um mundo, alerta-nos Althusser, é necessário que o encontro dure o suficiente para que os átomos que colidem entre si grudem, isto é, para que se dê liga, que haja “pega”, para que um mundo venha a existir. (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 136, grifo nosso).

Percebe-se por meio dessa passagem, que não é no acontecimento histórico, nem no empírico, tampouco no enunciativo que instaura-se a “pega”, nos termos de Althusser. Mas, segundo Zoppi-Fontana (2009), para que o encontro possa possibilitar o nascimento de um mundo, é necessário que esse encontro dure, isto é:

que não seja um “breve encontro”, mas um encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de qualquer necessidade, de qualquer Sentido e de qualquer razão [...] Podemos dizer isto de outra maneira. O mundo pode ser chamado o fato consumado, no qual, uma vez consumado o fato, se instaura o reino da Razão, do Sentido, da Necessidade e da Finalidade. (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 136).

De acordo com Zoppi-Fontana (2009) o encontro é da ordem do acaso, a duração, isto é, a pega, não o é. A própria duração não se reduz ao encontro, ela já é determinada pela liga, pega, aglutinação, e por esse motivo ela é afetada por relações de poder, assim como pelo funcionamento das instituições e pelas contradições, que conformam toda formação social. Ou seja, “não se nega as diversas ordens de determinação que surgem como efeito dos processos históricos, mas se subsume sua necessidade à contingência de sua origem.” (ZOPPI- FONTANA, 2009, p. 140).

Zoppi-Fontana (2009) afirma ainda que interpretar o acontecimento como encontro pode nos levar a considerar que antes do encontro só há matéria abstrata no vazio, e que é a partir da duração do encontro que essa matéria abstrata se organiza em elementos de uma estrutura, em que a necessidade é efeito da duração, do fato consumado de um mundo.

Acrescenta também que, segundo Althusser é necessário avançar ainda mais, e considerar que o sentido não se instaura por puro efeito do desvio imprevisto e esporádico de uma trajetória, mas pela duração desse desvio (sua recorrência), que permite que algum sentido “pegue”, mesmo que provisório. (ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 137).

Dessa maneira, tratar a aula enquanto acontecimento discursivo implica uma transgressão dos moldes pré-estabelecidos pela pedagogia vigente e pelas políticas públicas de ensino. A transgressão, nesse caso, não é uma maneira de corrigir todos os entraves de algo cristalizado ou anarquizar uma forma normalizada, mas de desconstruir maneiras engessadas de fomentar a reflexão, e, por conseguinte, de pensar a aula enquanto um acontecimento.

Para isso é necessário levar em consideração alguns estudos já realizados sobre o discurso. Pêcheux ([1983] 2002), ao tratar do tema “O Discurso, Estrutura ou Acontecimento”, abre para a possibilidade de se pensar o discurso não apenas como a união de um significante a um significado em uma materialidade dada, como pensava a linguística saussureana (essa ainda implicando na língua vista de forma sincrônica), mas como materialidade significante compreendida em materialidade historicamente constituída. Para tanto, Pêcheux ([1983] 2002) propõe para o enunciado “on a gagné” o entrecruzamento de três eixos possíveis na AD: o do acontecimento, o da estrutura e o da tensão entre a descrição e a interpretação. Anuncia, assim, que o enunciado executado por Mitterrand, no ato eleitoral para presidente da França, remete à produção de diversas significações, de acordo com as condições de produção de sentido, por cada um dos que ouviram o enunciado. A produção de sentido remete à memória discursiva constitutiva do acontecimento, e leva em consideração a inserção política de cada um dos eleitores.

Coracini (2007), baseada nos estudos de Pêcheux ([1983] 2002), alega que se tomados pelo ângulo da mídia, os resultados da eleição podem assumir a unicidade lógica, marcada pela frase completa, ou no mínimo, sem as lacunas deixadas pelo pronome “on” (indeterminado, que pode substituir qualquer pessoa do verbo), assim como pela ausência de um objeto direto (Mitterrand ganhou as eleições). No entanto, a mesma estrutura sintática e lexical ganha sentidos distintos sendo encarada como resultado de um universo logicamente estabilizado, ou atravessada por um conjunto de equívocos, que recobrem o domínio da linguagem. É isso que pode ser empreendido desse enunciado, assumindo o ponto de partida do acontecimento ou da estrutura ou da interpretação.

Levando em consideração todos esses pressupostos, percebe-se que há uma possibilidade, por meio desse estudo, de colocar em prática um dos ensinamentos de Pêcheux, notado por Maldidier ([1990] 2003), de que o discurso não é jamais um objeto primeiro ou

empírico, mas é “o lugar teórico em que se intrincam, literalmente, todas suas grandes questões sobre a língua, a história e o sujeito.” (MALDIDIER, [1990] 2003, p. 15).

A constituição de um discurso, “efeito de sentidos entre interlocutores”, nos termos de Pêcheux, leva em consideração as posições ocupadas pelo sujeito do discurso, essas, determinadas pelas condições históricas e ideológicas. Um discurso não existe de forma completamente isolada, isto é, ele constrói relações com outros discursos, nos domínios do saber. Para Brandão (2013), baseada nos estudos de Foucault ([1969] 2012a), um componente fundamental em que a AD opera é a questão da formação ideológica, que se caracteriza como “o conjunto de atitudes e representações ou imagens que os falantes têm sobre si mesmos e sobre o interlocutor e o assunto em pauta.” (BRANDÃO, 2013, p. 06). Uma formação ideológica pode compreender várias formações discursivas, essas últimas entendidas como “um conjunto de enunciados ou textos marcados por certas características comuns em relação à linguagem usada ou aos temas discutidos ou às posições ideológicas.” (BRANDAO, 2013, p. 06). Para Foucault ([1969] 2012a), uma formação discursiva se estabelece a partir de regularidades que definem as condições de existência e de desaparecimento de certos enunciados:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (FOUCAULT, [1969] 2012a, p. 47).

Para Pêcheux o sentido “se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva.” (PÊCHEUX, 1997, p. 161). As proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva para outra, ou seja, elas não dependem exclusivamente da compreensão de significados isolados em palavras ou expressões. Acrescenta-se aqui que, se assim fosse, a língua constituir-se-ia em um amontoado de significados desconexos, impossibilitando a sua compreensão.

É importante notar que a formação discursiva está sendo entendida como aquilo que, em uma formação ideológica dada, ou seja, “a partir de uma posição dada, em uma conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser