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1 INTRODUÇÃO

2.3 Campo: Graus de Autonomia e Possibilidades de Mudança

Tanto o campo da estratégia, quanto o campo da moda ou o campo acadêmico são universos sociais que obedecem a leis específicas, possuindo, portanto, certa autonomia. O grau de autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, ou seja, sua capacidade de retraduzir, sob uma forma específica, as pressões ou as demandas externas. Inversamente, a heteronomia manifesta-se pelo fato de que os problemas exteriores, em especial os problemas políticos e econômicos, aí se exprimem diretamente. Exemplificando com o campo acadêmico, Bourdieu (2004, p. 23-24) afirma que

o que comanda as intervenções científicas, os lugares de publicação, os temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos interessamos etc. é a estrutura das relações objetivas entre os diferentes agentes (...). Isso significa que só compreendemos, verdadeiramente, o que diz um agente engajado num campo (...) se estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos ‘de onde ele fala’ (...) o que supõe que pudemos ou soubemos fazer, previamente, o trabalho necessário para construir as relações objetivas que são constitutivas da estrutura do campo em questão (...).

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Logo, para se compreender as tomadas de posição dos agentes, Bourdieu (2004) recomenda que o pesquisador identifique o grau de autonomia que cada campo usufrui, a natureza das pressões externas, as formas como elas são exercidas e sob quais formas se manifestam as resistências que caracterizam a autonomia, isto é, os mecanismos que os agentes desse campo acionam para se libertar de imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas.

Como a estrutura de um campo é, a grosso modo, determinada pela distribuição de capital específico do campo, num dado momento, ou seja, indivíduos ou instituições, caracterizados pelo volume e qualidade/tipo de seu capital, determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço social. Assim, cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele “tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil” (BOURDIEU, 2004, p. 24),

Para Bourdieu (1996, p. 18), a noção de espaço social se refere ao

conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre (grifo do autor).

Nota-se, portanto, que a noção de espaço social contém, em si, o princípio de uma apreensão relacional do mundo social, ou seja, nela está embutida a concepção de que toda a “realidade” que designa reside na “exterioridade mútua” dos elementos que a compõem. Assim, os agentes, sejam eles indivíduos, grupos ou organizações, existem e subsistem na e pela diferença, isto é, enquanto ocupam “posições relativas” em um espaço de relações que, ainda que invisível e “sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real e o princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos” (BOURDIEU, 1996, p. 48- 49).

Nesse modelo teórico, o espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus). E, da mesma forma que as posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados, mas também diferenciadores: “põem em prática princípios de diferenciação diferentes ou utilizam diferenciadamente os princípios de diferenciação comuns” (BOURDIEU, 1996, p. 22). Ou

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seja, o habitus se constitui em um princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida ou, porque não dizer, em um estilo gerencial unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas, de cursos de ação etc.

Na medida em que os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas, mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão, as diferenças nas práticas dos agentes, nos bens possuídos por eles, nas opiniões que expressam, tornam-se diferenças simbólicas que constituem, na perspectiva de Bourdieu (1996, p. 22), uma “verdadeira linguagem”.

A idéia central é que “existir em um espaço, ser um ponto, um indivíduo em um espaço, é diferir, ser diferente”. Entretanto, essa diferença só se torna “uma diferença visível, perceptível, não indiferente, socialmente pertinente, se ela é percebida por alguém capaz de estabelecer a diferença” (BOURDIEU, 1996, p. 23). É nesse contexto que esse autor afirma que

o espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de vista, princípio de uma visão assumida a partir de um ponto situado no espaço social, de uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteúdo pela posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a realidade primeira e última já que comanda até as representações que os agentes sociais podem ter dele (BOURDIEU, 1996, p. 27).

Percebe-se, portanto, que, na visão de Bourdieu (1996), todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, isto é, como estruturas de diferenças que não podem ser compreendidas a não ser construindo o princípio gerador que funda essas diferenças na objetividade. Princípio que é o da estrutura da distribuição das formas de poder ou dos tipos de capital eficientes no universo social considerado e que variam de acordo com os lugares e os momentos.

Sendo assim, Bourdieu (1996) recomenda que, para se compreender como um espaço social ou campo se organiza, se analisem três dimensões. Na primeira, estuda-se como os agentes se distribuem de acordo com o volume total do capital possuído, incluindo-se todos os tipos de capital. Na segunda, verifica-se como esse capital está estruturado, isto é, levanta-se o peso relativo do capital econômico, social, cultural e simbólico no conjunto do seu patrimônio. Na

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terceira, procura-se compreender a evolução, no tempo, do volume e da estrutura de seu capital.

Essa recomendação metodológica se deve ao fato das estratégias (tomadas de posição) dos agentes e das instituições que estão envolvidas nas lutas em um determinado espaço social dependerem da posição que eles ocupam na estrutura do campo, isto é, na distribuição do capital específico daquele campo e que, através da mediação das disposições constitutivas do seu habitus, inclina-os seja a conservar seja a transformar a estrutura dessa distribuição, logo, a perpetuar as regras do jogo ou a subvertê-las. Mas essas estratégias, segundo Bourdieu (1996), também dependem do estado da problemática legítima, isto é, do espaço de possibilidades herdado de lutas anteriores, que tende a definir o espaço de tomadas de posição possíveis e a orientar assim a busca de soluções e, em conseqüência, a evolução do campo. Logo, torna-se necessária uma abordagem histórica, longitudinal, processual a fim de se poder compreender a estratégia dos agentes e instituições, adotando-se uma perspectiva tanto sincrônica quanto diacrônica.

Bourdieu (1996) ressalta, ainda, que as oportunidades que um agente específico tem de submeter as forças do campo aos seus desejos são proporcionais à sua força no campo, isto é, à sua posição na distribuição do capital específico daquele campo, que, no caso analisado nesta dissertação – o campo da moda, trata-se se um tipo particular de capital simbólico. Assim, o ponto de vista de cada estilista, entendido como vista a partir de um ponto, implica em assumir uma das posições estéticas possíveis, reais ou virtuais, no campo dos possíveis. Situado, o estilista não pode deixar de situar-se, distinguir-se: ao entrar no jogo, ele aceita, pelo menos tacitamente, as limitações e as possibilidades inerentes ao jogo, que se apresentam a ele como a todos aqueles que tenham percepção desse jogo, como “coisas a fazer”, formas a criar, maneiras a inventar, em resumo, como possíveis dotados de uma maior ou menor pretensão de existir.

É no horizonte particular dessas relações de força específicas e de lutas, que têm por objetivo conservá-las ou transformá-las, que se engendram as estratégias dos agentes, a forma de “arte” que defendem, as alianças que estabelecem, as “escolas” que fundam. Logo, é a tensão entre essas posições, constitutiva da estrutura do campo, que determina sua mudança, através de alvos que são eles próprios produzidos por essas lutas. Segundo Bourdieu (2004, p. 25), somente em momentos de mudanças “revolucionárias”, torna-se possível questionar os

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próprios fundamentos da ordem estabelecida, tendo os agentes uma probabilidade maior de redefinir os próprios princípios da distribuição do capital, as próprias regras do jogo.

Para Barros Filho e Martino (2003), embora a estrutura de qualquer espaço social seja objeto de permanente redefinição, em função das ininterruptas estratégias postas em prática por seus atores, existe na vida social uma tendência inercial que tende a perpetuar os mecanismos desiguais de distribuição de capitais sociais específicos.

Cabe ressaltar que, num ofício em que a luta contra o tempo é a regra de sobrevivência, como é o caso da moda, qualquer princípio de economia da ação, isto é do tempo de execução, é considerado fundamental. Ao se ajustar, por socialização, expectativas de ação e disposições de agir, fazendo-as coincidir como regra, pode-se dispensar, por exemplo, a reflexão sobre sua pertinência. Logo, se ganha tempo e, na medida em que a maior parte das ações apresenta-se ao sujeito como conseqüência óbvia de uma ação anterior, ignora-se o arbítrio existente na adoção de uma escolha.

Esse fenômeno, segundo Barros Filho e Martino (2003), resulta da interação entre a posição ocupada pelo indivíduo em um determinado campo e o seu habitus individual. Como efeito, tem-se que a norma vigente apresenta-se como absoluta, retirando-se a dimensão histórica, portanto material, de sua produção. Privilegia-se, assim, a impressão de atemporalidade das regras da prática, e, portanto, sua posição além de qualquer crítica. Logo, a tendência de certo espaço de manter inicialmente suas posições é causa e conseqüência de práticas e tendências de ação igualmente conservadoras. Na visão de Barros Filho e Martino (2003, p. 131), essa tendência inercial,

que assegura alguma “ordem social” pela estabilidade relativa das relações nos distintos campos sociais e entre eles, deve-se à freqüente incompatibilidade entre o interesse subversivo de um agente dominado no campo e as condições materiais de subversão. Assim, a situação de dominado, que, de um lado, enseja a adoção de uma estratégia subversiva, desautoriza o agente, retirando-lhe a prerrogativa de porta-voz legítimo, isto é, socialmente apto a manifestar-se.

Da mesma forma, a posição de porta-voz autorizado, que pressupõe o acúmulo de importante capital social, quase sempre é incompatível com um eventual interesse subversivo. Por isso, certas práticas tendem a conservar-se, isto é, a se reproduzir e, portanto, a se repetir. Por isso, também, a relativa estabilidade de posições no espaço de produção de moda se converte numa

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estabilidade, igualmente relativa, de práticas próprias a esse espaço, ou seja, práticas isomórficas.

Segundo Barros Filho e Martino (2003, p 135), o que se interioriza, em qualquer habitus profissional, é a lógica de funcionamento do sistema de distâncias e distanciamentos das posições sociais de um universo socioprofissional específico. Essa interiorização é o fim mais ou menos assumido dos processos de formação profissional, sendo que essa formação é indissociável das regras que estruturam o espaço social de exercício profissional. Na visão desses autores,

a posição do agente na estrutura social do espaço profissional considerado gera um

habitus profissional que faz surgir a ‘boa maneira’ de agir sem a necessidade de

cálculo, contribuindo para a reprodução do sistema de relação de forças dentro desse espaço, a distribuição do capital específico e orientando práticas e formas de percepção do espaço por parte dos novatos.

Bourdieu (1996, p. 70) afirma, ainda, que, paradoxalmente, nos campos que são palco de uma “revolução permanente”, os produtores de vanguarda “são determinados pelo passado até nas inovações destinadas a superá-lo (...)”. Assim, quanto maior a autonomia de um campo, mais dependente da história específica do campo se torna aquilo que é produzido, sendo cada vez mais difícil de deduzir ou prever o que será feito a partir do conhecimento do estado do mundo social (situação econômica, política etc) no momento considerado. Na sua visão, isto se deve ao fato dos critérios de valoração e legitimação das obras se encontrarem nas propriedades formais, na “pureza da formas”, criadas pelo próprio campo ao longo da sua história, refratando pressões institucionais externas e assegurando aos que nele habitam uma tal independência.

Nesse contexto, Bourdieu (1996, p. 70) recomenda que, ao analisar obras de campos relativamente autônomos, o pesquisador busque “uma percepção diferenciada, distinta, atenta às distâncias em relação a outras obras, contemporâneas ou passadas”, pois a sua compreensão tem “como condição a consciência e o conhecimento do espaço dos possíveis dos quais a obra é produto, da ‘contribuição’ que ela representa, e que só pode ser percebida pela comparação histórica”.

No campo da moda, o capital simbólico em disputa repousa sobre o reconhecimento da competência que proporciona autoridade e notoriedade, contribuindo para definir não somente

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as regras do jogo, mas também suas regularidades, às leis segundo as quais vão se distribuir os lucros nesse jogo (BOURDIEU, DELSAUT, 2001). Logo, pode-se afirmar que o campo da moda, como qualquer outro campo, não se orienta totalmente ao acaso, assim como nem tudo nele é igualmente (im)possível em cada momento. Existe, segundo Bourdieu (2004), um sentido do jogo, um senso da história do jogo que antecipa, de certa forma, o futuro do jogo.

Bourdieu (2004, p. 29) ressalta que a diferença maior entre um campo e um jogo é que “o campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo”, o que pode ser percebido toda vez que uma revolução simbólica vem redefinir as próprias condições de acesso ao jogo, isto é, “as propriedades que aí funcionam como capital e dão poder sobre o jogo e sobre os jogadores”.

Sendo assim, pode-se dizer que os agentes estão inseridos na estrutura e em posições que dependem do seu capital e desenvolvem estratégias que dependem, elas próprias, em grande parte, dessas posições, nos limites de suas disposições (habitus). Cabe ressaltar que essas estratégias orientam-se seja para a conservação da estrutura seja para sua transformação, assim como cada agente (cientista, estilista ou estrategista) tem como cliente os seus próprios concorrentes. Da mesma forma, aquilo com que se defronta no campo são construções sociais recorrentes, representações.

3. O CAMPO DOS ESTUDOS DE ESTRATÉGIA

O campo dos estudos da estratégia, sensível às transformações do seu objeto, como será visto neste capítulo, obedece às regras de ação e de conduta de qualquer outro campo acadêmico. Ou seja, o próprio estabelecimento de objetos cognoscíveis e dos métodos mais adequados, bem como o instrumental teórico e doutrinário para a compreensão dos processos de constituição da estratégia, obedece aos procedimentos institucionais de valoração simbólica máxima de um determinado ambiente epistêmico em detrimento de outro.

Desse modo, à exibição dos procedimentos práticos do campo da estratégia, deve-se necessariamente seguir a explicitação das sucessivas epistemes dominantes nesse campo de estudo. Logo, torna-se fundamental conhecer as relações práticas e o fundamento teórico de

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cada ação, bem como as linhas de pensamento concorrenciais, procurando identificar-se com escolas e conceitos tendencialmente dominantes.

Será apresentada a seguir uma revisão do estado da arte no campo acadêmico dos estudos sobre estratégia, analisando-se sua dinâmica de interação, tendo como referência uma perspectiva histórica de suas práticas e ambientes de influência.