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3- A SAÚDE MENTAL E A COMUNIDADE LOCAL

3.2 CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS II)

3.2.2 O CAPS II como território pedagógico

O CAPS II pode ser considerado um “território pedagógico” na medida em que aborda e apresenta alternativas de enfrentamento aos frequentes déficits cognitivos presentes na esquizofrenia. Também, na medida em que permite trocas de informações com a comunidade a respeito da saúde mental, reduz o preconceito baseado no desconhecimento do tema. Este processo de trocas com a comunidade é indispensável para que, em determinada fase de seus tratamentos, os usuários do CAPS II possam ser referenciados para seus ambulatórios (“território”) de origem.

Faria (2009) se refere a território não só como um local de produção de bens materiais, mas também como um local para a investigação das relações sociais, em nosso estudo as relações na saúde mental:

É nesse sentido que a categoria território se mostra pertinente, tanto no que se refere ao alcance social dos bens produzidos pela sociedade moderna, quanto para a investigação das realidades sociais mais deploráveis. Se de um lado o território - cenário das relações sociais -, pode ser essencial para investigar a apropriação/dominação do espaço e sua relação com a saúde, de outro, torna-se importante para o planejamento de ações que permitam diminuir os impactos dessa apropriação na vida das pessoas. (FARIA, 2009, p.37)

Ao entender o território como apropriação social (política, econômica e cultural), é possível estabelecer as relações entre os territórios em diferentes escalas. Isso possibilita o trânsito entre as escalas territoriais locais (acesso aos serviços, qualidade de vida, moradia etc.) e sua relação com os mecanismos territoriais globais (políticas públicas, infraestrutura, economia etc.) e, a partir daí, estabelecer a relação com os processos sociais, como saúde, educação, renda etc. (FARIA, 2009, p.37).

Considero que a construção cotidiana de novas relações sociais pode ocorrer neste trânsito entre as diferentes escalas territoriais locais, permitindo a todos os envolvidos o aprendizado da convivência com a diferença, possibilitando também que esse aprendizado possa ser assimilado pela comunidade local.

Neste contexto do trânsito entre diferentes territórios, cito por meio da observação participante as diferentes atividades realizadas nos dias e nos horários do grupo, portanto vivenciadas pelos usuários e familiares do CAPS II, atividades que levam em consideração a necessidade do enriquecimento do mundo interno das pessoas com esquizofrenia, mundos internos tão empobrecidos pelos déficits cognitivos e funcionais. Para Fett (2011), estudos revelam que os déficits cognitivos com consequências funcionais podem atingir entre 20% a 60% das pessoas com esquizofrenia. Este autor destaca o empobrecimento em importantes

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áreas funcionais, como diminuição da autonomia no trabalho, lazer, aprendizado e manutenção das relações interpessoais.

Para Fett (2011), o processo emocional é a capacidade de reconhecer as expressões alheias e emoções básicas, o que entendo ser indispensável para o reconhecimento de alterações mentais no outro e por espelhamento em si próprio. A percepção social pode ser entendida como a habilidade de compreender as regras e os papéis sociais, o que pode ser reforçado pelo aprendizado da convivência com o outro no “grupo operativo-terapêutico”. A teoria da mente é a habilidade de se colocar no lugar do outro (empatia) elemento, o que considero indispensável para uma educação dialógica, pois implica saber ouvir o outro. Por fim as atribuições sociais, o que implica o conhecimento sobre o comportamento orientado em situações sociais específicas, como o entendimento necessário para circular em “diferentes territórios”. Nas palavras de Noto (2012), os estímulos sociais podem ser mutáveis ao longo do tempo:

Diferentemente dos estímulos não sociáveis, os estímulos sociais podem ser mutáveis ao longo do tempo e imbuídos de significado pessoal. Quatro são os aspectos que englobam os processos cognitivos sociais; processamento emocional, percepção social, teoria da mente e víeis de atribuições sociais.

(NOTO, 2012, p. 198)

Estes déficits cognitivos e funcionais, quando presentes, não devem ser desconsiderados no aprendizado em saúde mental, por isso prioriza-se a criação de um espaço acolhedor no grupo onde as pessoas possam ter novas atividades para superarem as carências de seu meio de origem. Essas atividades realizadas em “diferentes territórios” têm como finalidade possibilitar aos usuários e a seus familiares contato com novos estímulos, novos meios, viabilizando o enriquecimento de seus mundos internos. Esses estímulos são indispensáveis para a aprendizagem de socialização e para o processo emancipatório em saúde mental.

Destacam-se as atividades realizadas pelo grupo neste contexto educativo para uma melhor socialização e uma menor dependência ao meio familiar, ao CAPS II e às terapias que priorizem tão somente a medicação. Essas atividades sempre contaram com a presença dos profissionais participantes do grupo, eis algumas realizadas nesse período de acompanhamento dos grupos:

No território da agricultura familiar foram realizados passeios, de forma regular, à feira do produtor rural localizada próxima ao CAPS II onde os usuários puderam interagir com os produtores e consumir diferentes produtos, tais como frutas, sucos naturais e outros

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alimentos naturais. O contato dos usuários com este novo território dentro da própria comunidade possibilitou o aprendizado de socialização, isto é, que podem sair de seu isolamento. Também possibilitou aos usuários estarem mais próximos de pessoas com as quais puderam ter um diálogo enriquecedor sobre atividades ligadas à natureza e à produção de alimentos.

No território cultural, o grupo, por meio de uma “biblioteca” de periódicos e revistas doadas ao CAPS II, ofereceu de forma regular opções de leituras aos usuários do serviço. Ao final do período da reunião, cada um poderia fazer um resumo daquela “manchete” que lhe tinha chamado atenção, possibilitando, assim, uma maior aproximação com outros contextos da realidade de seu interesse.

Outro território cultural a que os usuários tiveram acesso foi a biblioteca pública municipal onde, com a orientação da terapeuta ocupacional, puderam ter acesso a esse universo enriquecedor. Foram feitas frequentes e regulares visitas, o que lhes permitiu o contato com diferentes produções literárias, de acordo com seus interesses de leitura. Considera-se esta atividade enriquecedora para o universo das palavras, das imagens de cada um dos usuários e facilitadora para seu processo de comunicação.

No território do mundo do trabalho, os usuários puderam fazer visitas pré-agendadas a algumas indústrias produtoras de alimentos do município onde foram recebidos por um funcionário da empresa encarregado de mostrar as instalações e o funcionamento do processo industrial na produção de alimentos. Isto causou uma satisfação especial para alguns usuários, pois em outros momentos tinham trabalhado em tais indústrias. Enfatizo, como observador participante, que os usuários foram sempre tratados com muito carinho e respeito pelos diretores e funcionários dessas empresas onde sempre ao final da visita recebiam algum tipo de “mimo”.

Com relação às atividades no território do lazer, pude acompanhar os frequentes “piqueniques” às áreas de lazer das mineradoras de águas minerais da Fonte Ijuí e Itaí onde sempre havia programação para o dia inteiro. O lazer incluía atividades esportivas, apresentações musicais e o tradicional churrasquinho organizado pelos usuários e seus familiares com a ajuda dos profissionais da equipe que os acompanhavam. Sempre que esses passeios implicavam um deslocamento mais longo, eram fornecidos ônibus pelas próprias empresas de transporte do município.

Ainda como atividades de lazer e cultura, foram feitas visitas ao SESC. Sistematicamente esta instituição participa na organização de diferentes atividades culturais a todos os envolvidos, incluído peças teatrais e apresentação de filmes previamente escolhidos

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pelos usuários. Cabe destaque especial aos passeios que foram feitos com os grupos, em diferentes momentos, às ruinas de São Miguel pela possibilidade do contato com a cultura indígena e sua importância para toda região missioneira. Atualmente, local resgatado como patrimônio histórico da humanidade.

Certamente esta circulação dos usuários por esses diferentes territórios enriqueceu o mundo interior de cada um com novos símbolos, com novas palavras, com novas memórias e, assim, ampliou a capacidade de comunicação, a capacidade cognitiva, permitindo e facilitando a convivência no grupo, na família e propiciando a cada um a apropriação de sua vivência social a partir da visão de território como um local com função social.

Outra atividade que enriquece o mundo interno das pessoas com esquizofrenia é arte- terapia realizada no “grupo operativo-terapêutico” do CAPS II, na cidade de Ijuí. Este trabalho que contou com a orientação de uma artista plástica visa não só resgatar a própria capacidade dos usuários para diferentes atividades, mas também, promover mudanças na autoimagem desses sujeitos, isto é, deixarem de ver a si mesmo como um inválido. A arte- terapia também estimula a capacidade destas pessoas de apropriarem-se da realidade a partir de suas opiniões a respeito da releitura da obra, em estudo.

 Um fragmento do trabalho dos usuários em arte-terapia

Nos grupos com a orientação da artista plástica e com a participação dos usuários foram reproduzidas algumas releituras de obras de arte e viabilizada a manifestação de seus sentimentos ao produzi-las e observá-las. Esta é uma maneira de os usuários expressarem e apropriarem-se de seus sentimentos e, por extensão, de seus corpos, de suas histórias de vida, facilitando, assim, a reconstrução de uma nova identidade, que não a do “louco inválido”, mas sim de uma pessoa com capacidade de produção criativa. Portanto uma pessoa com direitos à inclusão social, à emancipação, ao reconhecimento e respeito à diferença, elementos tão importantes na metodologia da educação popular.

A arte é uma forma de comunicação que ajuda a compreender e respeitar as diferenças. Conforme Monteiro(2009), referenciando-se na mitologia junguiana, a arte é a linguagem da alma; permite escutar a alma de outrem:

A arte é a linguagem da alma. Jung revela um universo repleto de mitos, símbolos, sonhos, religiosidade, arte e alquimia. Compreende o homem na sua totalidade e traz uma percepção de que a criação está dentro de nós e que, se quisermos conhecer o mundo, devemos mergulhar mais em nós mesmos. Se o processo analítico visa a “escutar” a alma de outrem, a arte será um veículo que torna essa “escuta” possível. Se visarmos compreender o social, um grupo de pessoas deveremos estar abertos às suas músicas, aos poemas, as pinturas, as danças, e as outras manifestações da alma. Tudo que se faz com arte se faz com alma. Por meio da expressão artística, realiza-

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se uma comunicação que está além das fronteiras, que não precisa estar baseada restritamente no código verbal. (MONTEIRO, 2009, p.21).

Apresento um recorte do trabalho em arte-terapia feito pelos usuários do CAPS II junto ao grupo e suas interpretações a respeito do mesmo, lembrando que a comunicação artística está além do código verbal. A obra da qual os usuários fizeram uma releitura foi “O grito” de Eduard Münch (1893), pintor expressionista, estilo em que se preservam mais a expressão das ideias e os sentimentos do artista do que a própria realidade. A obra parece retratar fielmente o que Münch sentia no momento. O retrato de sua revolta frente aos infortúnios que a vivência terrena lhe proporcionou.

Fig. 3 - O grito - Edward Münch - 1893

Fonte: Amaral (2013, p.68)

Eis a impressão dos usuários do “grupo operativo-terapêutico”, representados pela letra (U), sobre a obra produzida a partir de sua releitura:

U.13: “O grito parece um pedido de ajuda, por um mundo melhor, sem poluição, com ar puro. Onde tudo consegue viver muito bem”.

U.12: “Eu acho que ele está em pânico em cima da ponte”.

U.7: “O quadro o grito significa talvez uma pessoa triste, pensativa, ele pode estar refletindo ou rezando sobre a sua vida”.

U. 6: “O quadro do grito me lembra quando eu estava doente no meu quarto. Eu passava muita dificuldade”.

U. 11: “O quadro o grito lembra quando estava no hospital pedi para a enfermeira me dar uma injeção para dormir, eu não aguentava mais”.

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U. 19: “O grito para mim significa tristeza porque o homem está sem orelha e está numa escuridão perto do mar, numa ponte. O mar parece estar agitado com ondas fortes”.

U.17: “O grito me passa curiosidade o que está acontecendo?”.

U.10: “Eu acho que o mundo está acabando para esta pessoa doente da cabeça. Não sabe o que está acabando ao ficar doente. Não vê o mundo ao redor”.

Os usuários, ao expressarem seus sentimentos sobre esta obra, mostram também sua subjetividade. Esses sentimentos podem evidenciar sua preservada capacidade cognitiva de observação da realidade; sua capacidade de curiosidade por esta realidade; sua tristeza frente à finitude das coisas; mas também sua capacidade de pertencimento à espécie humana. Nota-se o quanto está presente a capacidade dos usuários de falarem de suas vivências que podem ser transformadas através do grupo em experiência, permitindo a cada um, em especial, a apropriação de seu corpo, de suas emoções e por que não de sua própria história de vida, em uma autêntica individualização no social. Viabiliza-se, assim, uma intensa e rica contribuição educativa não formal através da arte-terapia.

Embora os exemplos relatados pela observação participante a respeito do trânsito dos usuários entre os diferentes territórios citados, inclusive no de arte-terapia, ainda há em nossa comunidade de Ijuí uma forte resistência para que os usuários que estão estáveis em seus tratamentos no CAPS II possam ser referenciados aos seus respectivos ambulatórios de origem. Todavia, não se pode deixar de registrar os esforços da equipe matricial do CAPS II para reduzir essas resistências. Questiono se esta resistência estaria associada ao próprio processo em construção de inclusão e de emancipação na saúde mental e indicaria que a reforma psiquiátrica sempre enfrentará resistências e riscos de retrocesso.

As mudanças no processo da Reforma Psiquiátrica são desafios constantes aos profissionais da saúde mental, aos responsáveis pelas políticas públicas de saúde no seu cotidiano institucional. A esses agentes públicos cabe a tarefa de expandir e consolidar as mudanças numa rede de cuidados que tenha como base a compreensão de território, os princípios de integralidade e a participação popular. É indispensável a sua própria qualificação técnica e que sua vontade política parta dos desejos da população. Enfatizo que a mudança do modelo hospitalocêntrico para o modelo de tratamento na comunidade por si só não garante a transformação da prática realizada no campo da saúde mental especialmente enquanto as diferentes contribuições da comunidade na área da saúde mental não tiverem o mínimo de articulação e integração. Frente a estes desafios o papel do CAPS é fundamental junto às comunidades locais. Em nosso estudo, de maneira especial o do CAPS II junto à comunidade de Ijuí/RS.

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A seguir discorro sobre o processo educativo e de como ele pode ocorrer em saúde mental. Utilizo este espaço para falar da importância da educação popular no Brasil e na América e por que não de sua influência na pedagogia social tão utilizada na Europa. Destaco a utilização da educação popular como uma metodologia à qual se associa a prática do “grupo operativo-terapêutico”. Para tal, recorro a uma comparação entre as fases do círculo da cultura e as fases que ocorrem no grupo, tanto em sua tarefa inicial de inclusão social, quanto na consequente e necessária construção da autonomia possível aos usuários de um serviço de saúde mental.

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4 O PROCESSO EDUCATIVO

Viajar! Perder países!

Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir. A ausência de ter um fim, E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu.

(Fernando Pessoa, 20-9-1933)

Viajar neste poema significa conhecer-se a si mesmo e não conhecer outros países.

Ser outro constantemente, estar aberto a mudanças. Por a alma não ter raízes, não estar apegado ‘às coisas’.

“De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir”. Este desprendimento, estar aberto a mudanças, é uma condição fundamental para que ocorra o processo educativo. Aprender é viver essa ansiedade da troca do conhecido e ir para esse lugar desconhecido.