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2.1 O MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

2.1.2 Histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil

Cronologicamente passo a destacar alguns dados marcantes na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Heidrich (2007) registra que o estado pioneiro foi o Rio Grande do Sul, que aprovou a Lei 9.716, de sete de agosto de 1992, propondo a substituição progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos por uma rede de atenção integral em saúde mental.

Em 2001, após mais de dez anos de tramitação no Congresso Nacional, é sancionada a Lei nº 10.216, que afirma os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (HEIDRICH,2007, p.17). Os princípios do movimento iniciado na década de 1980 tornam-se uma política de estado. Formalmente, cria- se a Reforma Psiquiátrica a partir da referida lei. O Brasil entra, assim, para o grupo de países com uma legislação moderna e coerente com as diretrizes da OMS e sua representação junto às Américas, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Esta lei indica uma direção para a assistência psiquiátrica e estabelece uma gama de direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais; regulamenta as internações involuntárias, colocando-as sob a supervisão do Ministério Público, órgão do Estado guardião dos direitos de todos os cidadãos brasileiros. Observa-se no relatório final da IV Conferência

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Nacional de Saúde Mental realizada em Brasília no ano de 2010 a preconização de uma reforma psiquiátrica que produza desinstitucionalização, inclusão social e uma rede assistencial na própria comunidade.

O Ministério da Saúde (2013), ao abordar o tema saúde mental, nos fornece alguns dados históricos referentes à evolução da legislação. Considero oportuno destacar os instrumentos preconizados a partir da lei 10.216 e que devem ser disponibilizados junto à comunidade. Na década de 2010, com financiamento e regulação tripartite, amplia-se fortemente a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que passa a integrar, a partir do Decreto Presidencial nº 7508/2011, o conjunto das redes indispensáveis na constituição das regiões de saúde. Entre os equipamentos substitutivos ao modelo manicomial podemos citar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência (CECOS), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais, as oficinas de geração de renda, entre outros presentes nas orientações do M.S. (BRASIL, 2013, p. 21/22).

Para Santin (2011), esta nova lógica do tratamento em saúde mental implica a necessidade de a comunidade de maneira geral e não só os serviços de referência terem um outro olhar para com as pessoas com sofrimento mental. Eis suas palavras textuais:

A nova lógica de atenção à saúde mental requer compreender o sujeito como um todo, como um ser que sofre, que enfrenta momentos desestabilizadores, como separação, luto, perda de emprego, carência afetiva, entre outros problemas cotidianos que podem levá-lo a procurar ajuda. Dessa forma, este modelo deve prestar uma atenção à saúde voltada à integração social do sujeito, procurando mantê-lo em seu contexto familiar e comunitário. Assim, família e comunidade servem como suporte fundamental para que o sujeito crie vínculos, produzindo novos modos de viver em sociedade revertendo o modelo manicomial.

(SANTIN,2011, p.148)

Na realidade atual da cidade de Ijuí, alguns questionamentos se fazem necessários: como entender e como acolher essas pessoas com esquizofrenia que estão retornando às suas famílias, à sua comunidade? Considero o “grupo operativo-terapêutico” um espaço de acolhimento a essas pessoas. Para tanto é indispensável um mínimo de entendimento do que ocorre com essas pessoas em seu adoecimento:

Numa visão psicanalítica o paciente psicótico sofre uma fixação em determinada etapa de seu desenvolvimento, especialmente pela limitação em lidar com frustração, causando-lhe uma visão fragmentada de mundo interno/externo, assim como de relacionamentos interpessoais tumultuados e suas representações distorcidas em seu mundo interno, resultando sempre uma visão assustadora de mundo externo. (AMARAL, 2013, p. 24).

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A partir deste entendimento psicanalítico, considero oportuna a reflexão sobre a necessidade de o usuário ter um espaço de fala em seu tratamento e que possa ser, também, um espaço para ser realmente ouvido. Para isso estudo sua participação por meio de suas respostas presentes na pesquisa de mestrado (2013). O retorno dos usuários às suas comunidades requer o conhecimento adequado desta complexa realidade para um melhor processo de ensino e aprendizagem de todos os envolvidos.

Eis um exemplo pertinente a esta contextualização: ao questionamento de como prefere estar em casa, a resposta deste usuário evidencia a distorção da realidade em seu ambiente familiar e os intensos conflitos daí advindos: “Antes o relacionamento era ruim, achava que o pai queria matá-lo. Hoje ele percebe que isto não era verdade”. (U. 9, C. 5). Compete aos profissionais que atuam em saúde mental criarem condições adequadas na comunidade, através de espaços, como o “grupo operativo-terapêutico”, onde os usuários possam rever esses papéis distorcidos em sua vivência social.

Nessa resposta do usuário pode-se também perceber uma mudança de opinião, qual seja, um melhor entendimento sobre a doença. Certamente essa mudança teve uma contribuição educativa do “grupo operativo-terapêutico”. Do mesmo modo o melhor conhecimento sobre a doença contribuirá para um melhor cuidar de si por parte deste usuário. A reforma psiquiátrica deve considerar essa distorção da realidade por parte dos usuários em seus retornos à comunidade, pois esta é uma característica crônica que os acompanha.

Na pergunta: Em casa como prefere estar? A que espaço de liberdade para falar esse usuário se refere em sua resposta: “Eu não tinha tanta liberdade para falar sobre o tratamento. Hoje consigo me abrir mais” (U.7, C. 5). Será no grupo, em sua família ou em ambos? Como está sendo construído esse processo de liberdade para falar? Será este o respeito à singularidade a que Gonçalves (2001, p. 51) se referia e que ainda hoje pode ser considerado indispensável para a construção de sua autonomia e a reintegração à família e à sociedade?

O que se espera da reforma psiquiátrica não é simplesmente a transferência do doente mental para fora dos muros do hospital, “confinando-o” à vida em casa, aos cuidados de quem puder assisti-lo ou entregue à própria sorte. Espera-se, muito mais, o resgate ou o estabelecimento da cidadania do doente mental, o respeito a sua singularidade e subjetividade, tornando-o sujeito de seu próprio tratamento sem a idéia de cura como o único horizonte. Espera-se, assim, a autonomia e a reintegração do sujeito à família e à sociedade.

As pessoas que sofrem de transtornos mentais graves enfrentam um duplo desafio: lidar com os sintomas e as incapacidades resultantes da doença e com os preconceitos gerados

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pela falta de informações e por concepções erradas sobre as doenças mentais. (NOTO, 2012, p. 81).