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3- A SAÚDE MENTAL E A COMUNIDADE LOCAL

4.2 EDUCAÇÃO POPULAR

Para ressaltar a importância da educação popular27, inicialmente faço o caminho inverso ao feito na abordagem da reforma psiquiátrica brasileira que abordava as influências externas, especialmente do filósofo francês Foucault (1987) e seu trabalho de desconstrução do discurso da loucura, e do psiquiatra italiano Basaglia (1985) com o seu modelo exemplar de uma inovadora atenção às pessoas com doença mental, em suas próprias comunidades. Para fazer tal caminho, recorro a Fichtner (2013), que aborda a educação popular no Brasil e na América Latina e sua influência na pedagogia social da Europa.

Fichtner 2013, p. 348 assim se manifesta a respeito da tradição histórica da educação popular na América Latina e no Brasil:

A Educação Popular como prática e teoria tem uma história de mais de cem anos no Brasil e na América Latina. O processo de formulação de uma pedagogia que se nutre de diferentes abordagens filosóficas e de práticas educativas populares concretas está fortemente ligada a pedagogia de Paulo Freire. A relação fundamental entre sociedade e educação na obra de Paulo Freire permite compreender qual é o significado de educação, tomada como possibilidade de libertação humana, na nossa

27 Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as

classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade

epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).

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sociedade concreta contemporânea, o que pressupõe a construção de uma ética e de uma práxis radicalmente compromissadas com as transformações sociais.

Considerando o papel da Educação Popular e sua influência em diferentes momentos sobre a Pedagogia Social especialmente na Alemanha, onde procura responder a respeito do processo de integração do indivíduo à sociedade, tanto no aspecto teórico quanto prático, Fichtner (2013) assim se expressa: “A ideia básica da Pedagogia Social é promover o funcionamento social da pessoa: a inclusão, a participação, a identidade e a competência social como membro da sociedade” (FICHTNER, 2013, p.349).

Ao ser mais incisivo, Fichtner 2013, p. 352 pergunta: O que a pedagogia social da Alemanha poderia aprender da Educação Popular? Em sua resposta ressalta que a pedagogia de Paulo Freire valoriza a participação ativa do sujeito no conhecimento de sua própria cultura. Destaca também as perspectivas de conscientização e emancipação social e política desse mesmo sujeito. De forma muito especial, este tipo de educação reconhece e legitima o saber popular, no contexto de sua própria cultura.

Fichtner (2013), em seu texto A EDUCAÇÃO POPULAR UMA VISÃO EUROPEIA,

destaca a importância que a educação popular tem de recolocar o “social” 28como categoria:

Obviamente a Pedagogia Social deve ser colocada no contexto das condições de vida de famílias, crianças, jovens, idosos, portadores de necessidades especiais, dependentes químicos, sujeitos em regime de privação de liberdade e todo lugar onde surgem problemas a partir das condições de vida existentes. A pedagogia social aposta no caráter emancipatório das práticas da vida cotidiana dos marginalizados, subalternos, da subclasse. (FICHTNER 2013, p.353).

Considero esta contextualização a respeito da influência da educação popular no continente europeu como indispensável para a sua própria valorização em nosso meio, e nesta pesquisa como uma importante ferramenta para auxiliar os usuários de um serviço de saúde mental em seu processo emancipatório a partir de uma ação grupal.

Destaco um importante elemento metodológico da educação popular que é o círculo de cultura, “técnica” usada inicialmente no trabalho pioneiro na alfabetização de adultos em Angicos (R.N.), na medida que esta “técnica” tem afinidade conceitual com outro elemento metodológico desta pesquisa, qual seja o “grupo operativo-terapêutico”, local onde é possível vivenciar um processo de ensino e aprendizagem em saúde mental, sem a convencionalidade

28 O social representa algo autônomo, com um sentido próprio, que não pode ser reduzido às estruturas sociais,

nem à sociedade, nem aos processos psíquicos internos dos indivíduos. A categoria do “social” é direcionada às relações reais- “submersas no indivíduo e na sociedade como um todo”.

Fichtner B., 2013, p. 353, A EDUCAÇÃO POPULAR UMA VISÃO EUROPEIA, in Educação Popular Lugar de construção social e coletiva, STRECK.D; ESTEBAN, M.T. (orgs.) - Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

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da educação bancária. Em ambos, a apreensão da realidade passa a ser uma prioridade aos seus participantes.

Vários movimentos da cultura popular retomam os procedimentos de dinâmica de grupos juntamente com uma crítica ética e, sobretudo, política, daquilo a que Paulo Freire deu o nome de uma educação bancária por oposição a uma educação libertadora. Nesta surgem e difundem-se práticas de ensinar e aprender fundadas na horizontalidade das interações pedagógicas, no diálogo e na vivência de aprendizagem como um processo ativo e partilhado na construção do saber (BRANDÃO, 2010, p. 69).

EDUCAÇÃO POPULAR: FASES DO CÍRCULO DA CULTURA

No “círculo de cultura”, o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é aprender a dizer sua palavra (BRANDÃO, 2010, p. 69).

No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica de grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo (FREIRE, 2017,

p.15). Destaco que o coordenador (“observador participante”) deve ser conhecedor da realidade local dos participantes.

Fig. 4 Fases do círculo da cultura (segundo Freire 2016, p.78)

Apropriação crítica desta realidade A fase da criação de situações existenciais típicas do grupo com o qual se vai trabalhar

Levantamento do universo vocabulário.

Palavra geradora: baseada na riqueza: silábica, fonética e pragmática. Construindo uma relação com a realidade.

A fase da elaboração de fichas indicadoras para auxiliar o coordenador na decomposição fonética.

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Considero fundamentais as diferentes fases do círculo de cultura e da aproximação destas com a técnica de grupo para a realização da presente pesquisa, baseada no estudo de processos de educação não convencionais na saúde, como a educação popular 29que é, acima de tudo, um processo emancipatório. Esta metodologia da educação popular pode ser usada na educação em saúde mental especialmente por meio da técnica de um grupo operativo. Essa pesquisa propõe-se a ser uma forma de documentação deste processo.

Streck (2013, p. 17) destaca que a educação popular tem três grandes sentidos: o de reprodução de saberes das comunidades populares; o de democratização do saber escolar; e o trabalho de libertação através da educação. Esse papel libertador por meio da educação permite pensar-se em uma prática emancipatória, em nosso estudo, em especial na saúde mental.

O familiar, quando questionado sobre sua capacidade de reconhecer o sofrimento mental crônico no outro, responde: “A convivência com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas” (F.2, C.1). Assim, ele evidencia a presença dos sentidos da educação popular aprendendo na convivência com o outro, ou seja, a reprodução dos saberes das comunidades populares, o da democratização do saber e o trabalho de libertação pela educação. Torres (2013), referindo-se à educação popular e à sua prática emancipatória sempre presente, afirma que é uma educação que se recria, se reinventa por conta da pluralidade dos contextos.

Estas práticas não são tanto a aplicação de uma concepção educacional, mas sua recriação e reinvenção, por conta da pluralidade de contextos, temáticas e atores com os quais interage; em consequência, vem se gerando práticas e saberes emergentes, que devem ser documentados e tornar-se objeto de reflexão na busca da reconstrução da educação popular como pedagogia emancipatória.

(Torres apud STRECK, 2013, p. 16).

Essa forma de trabalhar na educação em saúde mental envolve usuários, familiares e profissionais da saúde em um “grupo operativo-terapêutico” nacomunidade e constitui-se em um processo de educação popular na busca de inclusão social com autonomia e cidadania, pois possibilita a participação de todos os envolvidos nesta prática de ensino e aprendizagem.

29Para Freire a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação libertadora, que é, ao mesmo tempo, gnoseológica, política, ética e estética. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curiosidade epistemológica, a problematização, a rigorosidade, a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos. (PALUDO, C., Dicionário Paulo Freire, Ed. Autêntica 2010, p.141).

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A seguir, procuro evidenciar que este processo vem ocorrendo de forma consistente, e por que não sistemática, já que os encontros dos grupos são semanais.

O usuário, quando questionado sobre sua capacidade de reconhecer a doença mental no outro, mostra em sua resposta o desconhecimento que ele tinha sobre sua doença e como isso dificultava para ele lidar com a mesma: “Ajudou porque antes não conhecia nada sobre isto, sobre a “doença”, aqui começou a ver conversar com as pessoas e aprender a identificar”. (U. 6, C.1). A aprendizagem é feita, assim, na presença do outro, do colega que enfrenta as mesmas dificuldades com a esquizofrenia. Dessa maneira, essas contribuições educativas podem ser indispensáveis para desmitificar a “doença mental”, muitas vezes vista como um ato punitivo dos céus, ou da terra.

A Educação popular em saúde mental através do grupo possibilita aos usuários trabalharem a aceitação da “doença mental”, o que não deve ser considerado como sinônimo de resignação, mas, sim, o reconhecimento das limitações. Isto contribui para uma nova subjetivação do usuário, não esquecendo que todo esse processo é acompanhado por seus familiares, o que permite que essa aprendizagem possa ser reforçada em seu cotidiano familiar.

Os grupos no CAPS II são opções relevantes porque permitem não só as trocas de informações, mas também um caráter educativo e formativo, e com um alcance muito amplo na própria comunidade. Vasconcelos (2013), em seu artigo “Educação popular em saúde”, no livro “Educação Popular: lugar de construção social coletiva” reflete a respeito de como essas trocas nos serviços de saúde se estendem e se ampliam na comunidade.

“O debate continua para além dos espaços educativos da equipe de saúde, pois as conversas são muito intensas nas comunidades, gerando repercussões imprevistas. A valorização dos espaços educativos coletivos contribui ainda para o fortalecimento de uma cultura organizativa e cidadã na comunidade”.

(VASCONCELOS 2013, p. 115).

Os profissionais da saúde que trabalham com o foco em educação na saúde potencializam por meio da comunidade o alcance que suas ações educativas têm para os usuários, para os familiares e para todos os envolvidos nesse processo educativo em saúde mental. Essa atuação junto à comunidade está no contexto de um modelo de assistência integral em saúde, qual seja, o biopsicossocial.

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Delgado 30(2014) discorre na educação em saúde mental a respeito de alguns importantes trabalhos sobre o aspecto educativo destinado aos familiares nos CAPS, mas acentua que esse trabalho não é feito de forma sistemática. O autor destaca ainda que essas estratégias para trabalhar a família da pessoa com “doença mental” precisam ser construídas com situações educativas, capacitação de habilidades para situações da vida diária, construção de estratégias de solidariedade e ajuda mútua.

Nas respostas dos usuários e familiares constata-se que o “grupo operativo- terapêutico” constitui-se num espaço que permite o compartilhamento dessas experiências entre todos os participantes. O familiar na próxima resposta mostra sua intensa afetividade em relação ao seu familiar enfermo e também o seu aprendizado de perceber mudanças no comportamento, nos afetos deste usuário uma atitude de compreensão, de apoio nesses momentos através do diálogo, “Pela maneira de agir, de se portar parece muitas vezes que eles nos olham dizendo: precisamos de amor, carinho, compreensão, não só de remédios”. (F.1, C.1). Destaco, em especial, a parte final da resposta: “não é só de remédios que ele precisa”.

A resposta a seguir fala explicitamente a respeito do aprendizado com o outro, na convivência com o outro, portanto uma educação essencialmente dialógica, “A convivência com as pessoas ensinou a agir de forma certa nas situações delicadas”. (F.2, C.1). Nesta resposta do familiar vê-se um exemplo de aprendizagem compartilhada entre iguais, sem que necessariamente o processo hierarquizado esteja presente, mas sim prioritariamente o desejo de aprender para lidar com situações que afetam diretamente seus cotidianos. Esta resposta constitui-se numa importante demonstração de educação popular, propiciada por esse ambiente de compartilhamento presente no grupo.

Percebe-se que o processo educativo no grupo vem ocorrendo na relação informal dos seus participantes, pois a convivência dos familiares das pessoas com esquizofrenia permite a constante troca de informações sobre seus cotidianos. Por outro lado, de maneira formal, o grupo tem sido um espaço importante conforme as falas de seus usuários e familiares, inclusive nos momentos em que os profissionais são chamados pelo grupo a darem sua contribuição no esclarecimento de determinadas dúvidas ou em momentos de “ruídos” no processo de comunicação.

30Para Delgado (2014), o acompanhamento e apoio às famílias de usuários em atendimento na rede de saúde mental é um importante e urgente desafio da política pública. Os serviços de saúde mental, entre os quais os CAPS, apesar de realizarem, de acordo com as informações disponíveis, ações terapêuticas e de apoio dirigidas a familiares [...] não utilizam, de forma sistemática, estratégias de informação, educação em saúde e construção de autonomia, direcionadas a familiares de pacientes esquizofrênicos ou com outros transtornos mentais graves. (DELGAD0, 2014, p.1106).

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Os familiares, ao serem questionados sobre os efeitos que o grupo tem nos seus entendimentos do que ocorre com seus familiares enfermos, reforçam em suas respostas o papel educativo que o grupo em saúde mental tem para eles. Esses resultados evidenciam que o grupo constitui-se num espaço efetivo para o processo de ensino aos familiares no reconhecimento da esquizofrenia no outro e em seu familiar enfermo. O familiar, ao aprender a conviver com as diferenças, ajuda ao seu familiar com psicose crônica a prevenir as crises, a construir outro lugar nesta família, numa nova subjetivação que não a da exclusão.

Vasconcelos (2013) destaca a importância da educação popular na construção de práticas educativas em grupos dentro do serviço de saúde e em atividades coletivas na comunidade. Embora não esteja referindo-se especificamente aos grupos operativo- terapêuticos em saúde mental, mas aos grupos de forma geral, mostra que a vivência em grupo permite o exercício de participação de iguais onde cada um tem seu lugar de fala e a quem falar.

Torres (2001), em seu artigo “Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental”, destaca a importância do exercício participativo para a mudança da condição de usuário/objeto para usuário/ator, tornando-o sujeito político.

A construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político. Isso vem ocorrendo através de inúmeras iniciativas de reinvenção da cidadania e empowerment, como atenta Vasconcelos (2000), por meio de intervenções via associações de usuários ou de cooperativas sociais, ou ainda da participação política de tais atores nos mais importantes fóruns sociais de formulação de políticas da área, tal como nos conselhos de saúde e comissões de saúde mental (nos dois casos tanto em nível nacional, quanto estadual e municipal). (TORRES, 2001, p.86).

Para Delgado 31(2014), a proposta de “aprendizado através de parceiros”, também

chamados de tutores, associada ao processo participativo na comunidade está constantemente em evolução. Cabe à educação popular no campo da saúde pública motivar, ordenar e sistematizar pedagogicamente essa participação, e não a mera audiência de “palestras cientificas”, em um modelo de educação bancária, respeitando assim as diferenças e os tempos adequados de aprendizagens de seus participantes.

31A proposta de “aprendizado através de parceiros” (peer education), no campo da Saúde Pública, supõe que os tutores cujo saber tem grande aceitação e credibilidade, justamente por nascer da experiência, sejam eles próprios sujeitos da forma de transmissão do conhecimento que desenvolvem, sentindo-se “empoderados” em sua nova prática (TURNER; SHEPHERD, 1999), o que dificilmente ocorreria se os familiares se colocassem na mera posição de audiência de palestras científicas ou técnicas. (DELGADO, 2014, p.1113).

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Refleti a respeito dos referenciais de educação, em especial os de educação popular, e de como podem ser aplicados na educação em saúde mental. A seguir, passo a estudar os grupos operativo-terapêuticos como uma ferramenta (técnica) para trabalhar a metodologia da educação popular em saúde mental.