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2.1 O MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

2.1.4 RAPS um referencial para o momento atual da saúde mental no Brasil

O atual referencial para a saúde mental no território nacional baseia-se na Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Destaco o seu art. 2º que enfatiza as diretrizes para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial:

I - respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas; II - promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde;

III - combate a estigmas e preconceitos;

IV - garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;

V - atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; VI - diversificação das estratégias de cuidado;

VII - desenvolvimento de atividades no território que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;

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VIII - desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos;

IX - ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares;

X - organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado;

XI - promoção de estratégias de educação permanente; e

XII - desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular.

A RAPS tem como objetivos gerais a ampliação do acesso à atenção psicossocial da população em geral, a promoção de vínculos das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e de suas famílias aos pontos de atenção à saúde mental e a garantia da articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências.

E como objetivos específicos: a promoção dos cuidados em saúde particularmente aos grupos mais vulneráveis (criança, adolescente, jovens, pessoas em situação de rua e populações indígenas); a prevenção do consumo e a dependência de crack, álcool e outras drogas; a redução de danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras drogas; a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas na sociedade por meio do acesso ao trabalho, renda e moradia solidária; mas ainda inclui a melhoria dos processos de gestão dos serviços, parcerias intersetoriais entre outros.

É apropriado, neste contexto de referência para a saúde mental brasileira, destacar o art. 5º que enfatiza os componentes que devem constituir a Rede de Atenção Psicossocial:

I - Atenção básica em saúde, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Unidade Básica de Saúde;

b) Equipe de atenção básica para populações específicas: 1. Equipe de Consultório na rua;

2. Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório;

c) Centros de Convivência;

II - Atenção psicossocial especializada, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) Centros de Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades;

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III - Atenção de urgência e emergência, formada pelos seguintes pontos de atenção: a) SAMU 192;

b) Sala de Estabilização; c) UPA 24 horas;

d) portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro; e) Unidades Básicas de Saúde, entre outros;

IV - Atenção residencial de caráter transitório formada pelos seguintes pontos de atenção:

a) Unidade de Recolhimento;

b) Serviços de Atenção em Regime Residencial;

V - Atenção hospitalar formada pelos seguintes pontos de atenção: a) enfermaria especializada em Hospital Geral;

b) serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas;

VI - Estratégias de desinstitucionalização formada pelo seguinte ponto de atenção: a) Serviços Residenciais Terapêuticos; e

VII - Reabilitação psicossocial.

Finalizo esta contextualização sobre a RAPS com o art. 14, que se refere à responsabilização das três esferas de poder, ou seja, federal, estadual e municipal para operacionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)20, cabendo:

I - À União, por intermédio do Ministério da Saúde, o apoio à implementação, financiamento, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial em todo território nacional;

II - Ao Estado, por meio da Secretaria Estadual de Saúde, apoio à implementação, coordenação do Grupo Condutor Estadual da Rede de Atenção Psicossocial, financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial no território estadual de forma regionalizada; e

III - Ao Município, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, implementação, coordenação do Grupo Condutor Municipal da Rede de Atenção Psicossocial,

20 Fonte:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html, acessado em 10/03/18.

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financiamento, contratualização com os pontos de atenção à saúde sob sua gestão, monitoramento e avaliação da Rede de Atenção Psicossocial no território municipal.

É pertinente, neste contexto, destacar três programas essenciais nas estratégias de desinstitucionalização presentes nas orientações da RAPS. São eles:

a- Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) são elementos indispensáveis no processo de desinstitucionalização e reinserção social de pessoas internadas por longos períodos em hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia. Estes dispositivos constituem-se de moradias ou casas na própria comunidade, destinadas a acolher pessoas egressas de internação de longa permanência (dois anos ou mais ininterruptos), sendo um dos elementos essenciais de garantia de direitos, com promoção de autonomia, exercício de cidadania no processo de inclusão social. (BRASIL, 2015, p.22).

Não se pode desconsiderar que muitos usuários egressos de longas internações não têm, muitas vezes, uma família para acolhê-los. Outra situação frequente é o despreparo das famílias desses usuários para os acolherem de forma adequada. Estas dificuldades de acolhimento exigem os serviços residências terapêuticos. Outra alternativa, que muitas vezes pode ocorrer, são os lares substitutos onde os cuidadores oferecem um local acolhedor.

b- Nas estratégias de desinstitucionalização, integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) o Programa De Volta Para Casa (PVC), instituído pela Lei Federal nº 10.708, de 31 de julho de 2003, como componente de estratégias de desinstitucionalização. Este programa, por meio do pagamento de um benefício, se propõe a fortalecer o poder de contratualidade, favorecendo, assim, a inclusão social e o processo de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. O programa tem por finalidade contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas com doença mental, favorecendo o convívio social de forma a garantir o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de cidadania. (BRASIL, 2015, p.22).

Considero pertinente destacar o quanto, neste estudo, o retrato sociológico de uma usuária do CAPS II pode mostrar as graves implicações que terá o fato de esta usuária estar com interdição plena para obter um benefício junto ao INSS. Este fato deve ser profundamente questionado pelos profissionais da saúde e do direito tendo em vista que o próprio programa De Volta Para Casa apresenta garantias de uma receita aos usuários sem que precisem recorrer a tal expediente, com sérias repercussões no exercício de sua cidadania.

c- O terceiro componente a ser destacado na reabilitação psicossocial acentua a importância de estratégias que viabilizem o protagonismo de usuários e familiares para o

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exercício da cidadania através da criação e desenvolvimento de iniciativas articuladas com os recursos do território, nos campos do trabalho/economia solidária, habilitação, educação, cultura e saúde. Estas estratégias não se restringem a um local ou a uma ação isolada, mas a um processo que vise à construção de novos campos de negociação e de formas de sociabilidade (BRASIL, 2015, p.31).

Logo a seguir o mesmo texto destaca a necessidade de os usuários dos serviços de saúde mental, integrantes da RAPS, terem mecanismos de acesso ao trabalho e à renda:

O acesso ao trabalho e à renda para pessoas em situação de desvantagem social tem sido uma questão prioritária para o governo federal, que em 2013 instituiu o Pronacoop Social, programa interministerial com o objetivo de avançar nos marcos legal e jurídico e nas políticas públicas de apoio ao Cooperativismo Social (Decreto nº 8.136 de 20 de dezembro de 2013). O Pronacoop Social tem como finalidade planejar, coordenar, executar e monitorar as ações voltadas ao desenvolvimento das cooperativas sociais e dos empreendimentos econômicos solidários sociais. (BRASIL, 2015, p.31).

É apropriado destacar também o caráter de educação presente na RAPS no contexto do eixo do Cuidado do programa Crack, é Possível Vencer. O Projeto “Caminhos do Cuidado” trata de uma formação em saúde mental destinada a agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem da equipe de Saúde da Família (eSF), com destaque para as necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, visando dar uma melhor atenção ao usuário e a seus familiares por meio da formação e qualificação dos profissionais da Rede de Atenção Básica à Saúde, baseado em um novo enfoque, qual seja, o da “Redução de Danos”. (BRASIL, 2015, p.34).

Outro foco na estratégia de educação permanente presente na RAPS refere-se aos programas de residências em psiquiatria e residência multiprofissional para a formação de profissionais para atuarem na saúde mental. Neste aspecto, nos últimos anos, os editais para financiamento de vagas para residência têm priorizado a aprovação de propostas que indicam a realização de residências em serviços da RAPS e com proposta de formação na direção de superação do modelo manicomial. É adequado destacar a necessidade de investimento nas residências multiprofissionais em saúde mental, pois ainda são em número muito inferior às residências médicas em psiquiatria. (BRASIL, 2015, p.37).

A RAPS, em toda sua plenitude, só ocorrerá com a efetiva participação da comunidade à medida que se reforça por meio de leis complementares no próprio município

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local onde pode ocorrer sua efetiva fiscalização por todos os envolvidos com a saúde mental. Destaco que no momento atual todos os programas citados são essenciais na RAPS para uma verdadeira inclusão social, mas ainda precisam ser incrementados com auxilio e fiscalização da própria comunidade, em especial por todos os envolvidos com a saúde mental também na cidade de Ijuí.

É oportuno destacar que no município de Ijuí a regulamentação da saúde mental é complementada pela Lei nº 6519, de 27 de março de 2017. Esta lei foi recentemente criada com especial participação de um alguns setores da comunidade ligados à saúde mental. Seu texto completo aparece na parte dos anexos (p.211).

Ressalto que essas leis devem ter mecanismos de viabilidade no contexto de inclusão social na comunidade local e dispositivos de fiscalização de sua aplicação no contexto das políticas públicas. Cabe aqui destacar as palavras de Boneti, 2006, p.72 a respeito da heterogeneidade no pensamento das pessoas que se relacionam às políticas públicas:

As pessoas, todavia, que entram em contato com as políticas públicas no decorrer de suas longas trajetórias, não pensam de modo uniforme, não tem a mesma interpretação de intervenção na realidade, etc. As políticas públicas, ao longo de seus percursos, são contaminadas por interesses, inocências e sabedorias.

As palavras de Boneti (2006) mostram a complexidade que é a constituição, a implantação e a fiscalização das políticas públicas. Nessas diferentes etapas, torna-se, portanto, indispensável a participação da comunidade.

Para abordar o tema a seguir saúde mental e a comunidade local inicialmente recorro ao entendimento de Bauman (2003) a respeito de comunidade. Em seu texto percebe- se que esse lugar aconchegante já não existe mais, mas sim um lugar em que se deve estar em permanente prontidão. É oportuno considerar esses distintos momentos na reflexão a respeito comunidade:

Para começar, a comunidade é um lugar "cálido", um lugar confortável e aconchegante (...). Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. (BAUMAN, 2003, p. 7)

É na comunidade, este lugar cada vez menos acolhedor e cada vez mais assustador, que o outro passa a ser um estranho, e onde ocorrem os principais conflitos no acolhimento à pessoa com sofrimento mental. O esperado seria que as diferentes contribuições para esse acolhimento pudessem estar articuladas entre si, caso contrário estariam repetindo na própria comunidade um

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sintoma tão presente na esquizofrenia, qual seja, o de olhar a vida de forma fragmentada e assustadora.

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