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CAPÍTULO I – A Maratona: Uma Perspectiva de Relações Públicas

2. Maratona

2.3. O Carácter Mítico da Maratona

A Maratona é vista como uma narrativa dramática, onde os heróis lutam pela vitória, é uma prova que tem uma elevada carga mítica, “A Maratona, uma das disciplinas mais duras do calendário olímpico, tem uma carga mítica que provém das suas géneses e que continuou no tempo, após a sua inclusão na edição inaugural dos Jogos Olímpicos da Era Moderna (…)” (Fernandes, 2010: 14).

O facto de a Maratona ter origem numa história/lenda de uma guerra, tem também intrinsecamente associado a si o mito tribal e o mito da oposição.

Por significado primitivo de mito pode entender-se a narração de feitos fabulosos, “Ao mito associam-se histórias fabulosas de deuses, lendas e heróis. Serve para engrandecer alguém (o mito da Greta Garbo), para qualificar valores duvidosos, para identificar lugares inexistentes mas fabulosos (o mito do Eldorado)” (Garcia, 1994: 58).

E, de acordo com o filósofo italiano Ernesto Grassi, “(…) no mundo mítico todos os actos e gestos têm um carácter exemplar, são «repetições» por intermédio das quais se realiza o divino, imperecível e eternamente presente” (Grassi, s.a.: 129).

O mito é o princípio ordenador imóvel num tempo imperecível e perenemente presente. Segundo esta concepção, o mito engloba os elementos eternamente consistentes da existência humana e representa-os: revela o eterno presente. O essencial é isto: a mesma «história» pode ser sempre repetida, pois contém o sempre essencial, o (presente), ao passo que na história profana o essencial desaparece no final da narrativa quando satisfez a curiosidade do leitor ou ouvinte (Grassi, s.a.: 118).

49 Como refere o historiador das religiões Mircea Eliade, “Pelo simples facto da narração de um mito, o tempo profano é - pelo menos simbolicamente - abolido: narrador e auditório são projectados num tempo sagrado e mítico” (Eliade, 1952/1979: 57). O mito situa-se assim no campo do sagrado, até porque “Pelo simples facto de escutar um mito, o homem esquece a sua condição profana” (Eliade, 1952/1979: 57).

No entanto não são apenas as altas realizações e os grandes feitos espirituais que têm uma origem mítica. Considera-se que formas de vida comunitária também se podem situar no campo mítico, que tal como refere Ernesto Grassi (s.a.), Johan Huizinga (1938/2003) e Garcia (1994), o mito estende-se a inúmeras actividades humanas, sendo que o Desporto ocupa um lugar de relevo.

Considera-se mesmo que o jogo, no qual podemos incluir o Desporto,

(…) pertence nas suas formas mais elevadas à celebração do eterno. As suas regras reflectem precisamente a intenção do mito de emprestar perfeição à vida imperfeita e confusa, de dominar o caos e de incluir o espectador como comparsa nesse seu mundo, transformando-o e enfeitiçando-o (Grassi, s.a.: 130).

E dentro do Desporto, a Maratona ocupa um lugar de destaque, pois o que caracteriza o mito é tornar possível o impossível, logo o caracter mítico é mais visível em provas de resistência e de grande superação, onde muitas vezes os “vencedores” são heróis mitológicos.

No entanto, nos tempos modernos, verifica-se uma secularização do mito, uma viragem do sagrado para o profano, “(…) a repetição fiel, unívoca e eterna da representação sagrada desce ao nível do espectáculo e os comparsas dividem-se nas figuras dos actores e dos espectadores; o mito sacrifica o seu significado religioso e desmembra-se em fábulas e ficções” (Grassi, s.a.: 138).

Houve uma tentativa de dessacralizar o jogo, mas nem por isso a Maratona foi afectada. “Pretendia-se uma actividade física dessacralizada a que deram o nome de Desporto. A corrida sofreu um processo análogo. Não há mais corridas até ao eixo do mundo, à montanha sagrada, mas nem por isso o sagrado abandonou a Maratona” (Garcia, 1994: 59).

Considera-se que a Maratona ocupa assim um lugar especial para os atletas e espectadores,

A Maratona é um «momento sagrado» (Pointu, 1979) que termina no «panteão do atletismo» (Pointu, 1979), percorrida na «pista sagrada de Phillipides» (Psiakis, 1985), na distância sagrada

50 de 42.195 metros» (Mondenard et al., 1991) e serve para «perseguir o sonho quimérico de uma juventude infinitivamente prolongada e de uma morte eternamente afastada» (Pointu, 1979), sendo um «microcosmos da vida onde a agonia e o êxtase são sentimentos familiares» (Sheehan, 1990) do atleta, assumindo-se «Londres como a Meca dos Maratonistas» (da imprensa) (Garcia, 1994: 60).

Em suma, confirma-se que “O sagrado existe, embora camuflado, no Desporto, em especial na prova da Maratona. Só é preciso reconhecê-lo” (Garcia, 1994: 60).

Aliás, quando se fala de Maratona, ou de grandes provas como os Jogos Olímpicos, discute-se sempre o mito do eterno retorno, “O retorno às origens era procurado pelos alquimistas. O alquimista visava a transmutação do corpo e sonhava prolongar indefinidamente a juventude, a força e a agilidade” (Garcia, 1994: 60).

Considera-se então que

O Desporto, em particular a Maratona, tal como o mito, parece ser um espelho da realidade. Reflecte a imagem da sociedade mas não é a própria sociedade. Para entender o Desporto é necessário interpretá-lo e o mito aparece, sem dúvida, como um intermediário para a hermenêutica desse fenómeno (Garcia, 1994: 60).

Em suma, perfilha-se a ideia de Garcia, o facto da Maratona ter origem numa lenda fornece- lhe sentido, e o facto de se desenvolver num período de tempo não muito longo, com grande intensidade torna-a significativa, “sendo um resíduo ou sucedâneo do tempo mágico- religioso” (Garcia, 1994: 60).

Ao longo dos anos vários acontecimentos contribuíram para o mito da Maratona, para que o simples facto de se acabar ou de se vencer uma Maratona fosse reconhecido como um feito heróico, fabuloso, que não está ao alcance de qualquer pessoa.

Nos Jogos de 1904, em Saint Louis, o vencedor da Maratona, o americano Frank Lorz, foi desclassificado pois um taxista testemunhou que este se fizera transportar no seu táxi durante 18 quilómetros. Assim sendo, o título foi para o americano Thomas Hicks que terminou a Maratona bamboleando e em delírio, tendo de receber assistência médica imediatamente e ficando em observação durante vários dias, em risco de vida. Veio a saber-se que tal se deveu à estricnina e brandy que o treinador lhe deu durante a prova para que conseguisse aguentar e chegar ao final (Fernandes, 2010).

51 Em 1908, o italiano Pietri Dorando, dominara a corrida mas o cansaço era tão grande que se enganou à entrada do estádio. Foi desclassificado, mas o vencedor também não acabou em muito bom estado devido à falta de hidratação e alimentação (Fernandes, 2010).

A prova era vista quase como algo sobre-humano, e com tantas ameaças, a tragédia surgiu em 1912, quando o português Francisco Lázaro faleceu durante a corrida (Fernandes, 2010). Nos anos 60 e 70 chegou a colocar-se em causa a realização da prova e a sua inclusão nos Jogos Olímpicos, devido aos casos negativos acima referidos, pois representava um esforço de ordem fisiológica perigoso. Esta discussão realçou o facto de a Maratona ser uma especialidade para atletas bem treinados e com grande capacidade atlética (Fernandes, 2010). Nas provas femininas, apesar de mais recentes, também existem testemunhos que realçam a dificuldade da Maratona. Nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, a suíça Gabriela Andersen-Scheiss finalizou a Maratona em 37º lugar, mas terminou a prova totalmente exausta, cambaleando na pista, quase caindo, mas utilizando todas as forças para terminar a prova (Fernandes, 2010).

Mas também foram várias as histórias positivas que contribuíram para engrandecer o mito da Maratona, nas quais se destacam as histórias de Emile Zatopek e Adebe Bikila. Zatopek venceu a Maratona dos Jogos Olímpicos de Helsínquia de 1950, depois de ter ganho as provas dos 5 quilómetros e 10 quilómetros nos mesmos Jogos Olímpicos. De realçar ainda o facto de esta ser a primeira vez que corria a distância (Soares, 2012; Fernandes, 2010).

Adele Bikila foi o primeiro africano a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. Nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, o etíope correu os 42,195 quilómetros descalço, uma prova que decorreu durante a noite. Esta proeza foi repetida nos Jogos Olímpicos seguintes, em Tóquio, mas desta vez correu calçado (Fernandes, 2010).

Pode ainda incluir-se nestas histórias Carlos Lopes, que venceu a Maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984 com 37 anos (o vencedor mais velho de sempre) e com um resultado que foi record olímpico até aos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008. Este feito ganha ainda mais relevo visto que Carlos Lopes foi atropelado, embora sem gravidade, 16 dias antes da prova.

De referir que a nível nacional, as grandes figuras da modalidade são também as grandes figuras do Desporto Nacional, os dois primeiros atletas a ganharem medalhas de Ouro nos

52 Jogos Olímpicos, Carlos Lopes e Rosa Mota. Rosa Mota foi mesmo considerada em 2012 a melhor maratonista de todos os tempos pela IAAF.

Compreende-se assim o facto de ser visto como um grande feito terminar uma Maratona, é algo que nos aproxima um pouco mais dos heróis, dos Deuses. E percebe-se também o facto de a Maratona ser uma prova diferente de todas as provas de corrida, facto que pode ser aproveitado ao nível da comunicação.

Enquanto todas as outras provas de atletismo têm um nome relacionado com a distância ou com a forma de corrida, a Maratona é simplesmente a Maratona. E mesmo provas de distâncias mais curtas tendem a apoderar-se do nome Maratona, como as Minis e Meias- Maratonas. Verifica-se que até fora do sector desportivo é normal existir uma associação à Maratona, como as Maratonas de Filmes, Maratonas da Publicidade, etc.

Para além de todos estes dados apresentados, verifica-se que a Maratona tem um espaço especial guardado em outras áreas de actividade, como nas artes. Só assim se percebe como um jovem músico português, David Santos (nome artístico: Noiserv) tenha lançado em 2013 uma música denominada “It's easy to be a marathoner even if you are a carpenter” que é dedicada ao maratonista português Francisco Lázaro.