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CAPÍTULO I – A Maratona: Uma Perspectiva de Relações Públicas

1. Desporto e Sociedade

1.4. Competição e Desporto

De acordo com Huizinga (1938/2003), é possível incluir a competição na categoria de jogo sem qualquer hesitação, pois a competição reúne todos os aspectos formais e grande parte das características funcionais do jogo, apesar de todas as particularidades (Huizinga, 1938/2003). No entanto, segundo os princípios do jogo de Caillois (1958/1990) e de (Huizinga (1938/2003), será que todas as competições são um jogo? Por exemplo, a Guerra, segundo Caillois (1958/1990), não pode ser considerada um jogo puro, pois faz parte da realidade, da parte séria da vida, no entanto, “todas as lutas em que há regras a respeitar assumem as características formais de um jogo em consequência dessa limitação” (Huizinga, 1938/2003: 111).

Neste sentido, neste estudo, quando se aborda a questão do Desporto como jogo ou não, a análise baseia-se nas características formais do jogo, logo é claro que o Desporto é uma competição e que se rege pelos princípios base do jogo. “Cada uma das categorias fundamentais do jogo apresenta assim aspectos socializantes que, dada a sua amplitude e estabilidade, adquiriram direito de cidadania na vida colectiva. Para o agôn, essa forma socializada é, essencialmente, o Desporto” (Caillois, 1958/1990: 62).

No entanto, surgem várias questões quando se fala de Desporto: é necessário ter em conta que se pode ter Desporto amador ou recreativo, considerados como jogo segundo as definições de Caillois (1958/1990) e Huizinga (1938/2003), mas também o Desporto profissional, onde o jogo para o atleta deixa de ser um jogo e passa a ser um trabalho, embora continue a ser visto como um jogo pelo espectador.

Caillois (1958/1990) refere mesmo que as pessoas que se sustentam materialmente pelos jogos, como os atletas profissionais, não podem ser considerados como jogadores, na verdade são profissionais, e o jogo para eles é trabalho em todos seus aspectos funcionais e valorativos.

No entanto, considera-se que, mesmo nesta situação, o Desporto mantém as principais características do jogo, partilha as suas características do jogo de competição e o seu papel cultural e social, no entanto tem também características próprias.

É de defender a posição de Garcia (1994) que refere que “a fronteira entre jogo, a essência do Desporto, e Desporto é bastante ténue” (Garcia, 1994: 58) e “não existe propriamente um alfa

23 do Desporto, nenhum momento do qual se possa afirmar que acabou o jogo (quer o biológico quer o cultural) e começou o Desporto” (Garcia, 1994: 59).

Neste sentido, e considerando o Desporto como um jogo, vamos desenvolver a relação específica entre Desporto e sociedade.

O Desporto envolve luta, êxito e fracasso. A sua natureza intrinsecamente competitiva produz drama e evoca emoções. Sendo um aspecto central da cultura humana há séculos, a sua jovialidade carrega significados mais profundos em termos de domínio e de identificação. Não é apenas um prazer intrínseco aos participantes e espectadores, mas tem um significado simbólico complexo. Assim, o Desporto é um meio e um foco para a comunicação humana. Reflecte as preferências e as preocupações da sociedade, e pode ser um foco de debate sobre questões contemporâneas. Embora existam benefícios decorrentes do Desporto em relação à saúde individual e bem-estar, o Desporto pode ser usado como um instrumento para melhorar as relações sociais ou comunidades específicas, podendo ser também um foco de hostilidades, ou estar por detrás de mudanças sociais, como por exemplo, em relação ao género. A relação entre o Desporto e a sociedade é, portanto, complexa, e os seus múltiplos significados são contestados (L’Etang, 2013: ix).10

Posto isto, é de defender que o Desporto tem um papel activo na vida social. De acordo com Carrito e Carvalho, vivemos numa

(…) sociedade do lazer, onde as actividades físicas em geral, e o Desporto, em particular, assumem um papel determinante, como factor de manutenção e de reforço humano no seu sentido mais puro e mais nobre: a libertação do corpo… a alegria do movimento… a harmonização das capacidades mentais com as capacidades motoras, a competitividade sadia consigo e com os outros… etc… etc… (Carrito e Carvalho, 1998: VIII).

10 “Sport involves struggle, success and failure. Its intrinsically competitive nature produces drama and evokes

emotion. A central feature for human culture for centuries, its playfulness carries deeper meanings in terms of dominance and identification. It is not only intrinsic pleasure to participants and spectators but has complex symbolic significance. Thus sport is a medium and a focus for human communication. Sport reflects societal preferences and concerns and may be a focus for debate about contemporary issues. While there are benefits arising from sport with regards to individual health and well-being, and sport may be used as a tool to improve societal relations or specific communities, it is also the case that sport can be a focus of hostilities, or lag behind social change, for example, in relation to gender. The relationship between sport and society is therefore complex, and its multiple meanings contested” (L’Etang, 2013: ix).

24 O Desporto é visto como uma actividade de lazer que contribui activamente para o bem-estar e saúde, valores cada mais relevantes para a sociedade moderna. Segundo o sociólogo alemão Norbert Elias (1985/1992), o Desporto contribui para o conhecimento da sociedade, até porque vivemos numa sociedade onde cada vez mais pessoas utilizam uma parte considerável do seu tempo de lazer a participar ou assistir a confrontos desportivos, onde cada vez mais pessoas sentem “prazer, quer como actores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipas, e na excitação criada por estas competições” (Elias, 1985/1992: 40).

O Desporto envolve uma grande tensão devido ao elemento Agôn e à presença constante do desejo de vitória. Quando se compete, compete-se «por», «em» e «com» alguma coisa, facto que afecta os atletas, mas também os espectadores (Huizinga, 1938/2003).

Devido a esta tensão, na competição desportiva séria, no Desporto profissional, ao contrário de outros jogos, é mais difícil aceitar um comportamento de cavalheiro em alternativa à vitória, a luta e o desejo pela vitória sobrepõem-se muitas vezes ao fair-play11, à justiça (Apel, 1988/2007).

Pode-se verificar a importância da vitória para o Desporto profissional através das declarações do treinador de Basquetebol Bil Musselman: “A derrota é pior do que a morte, pois temos de viver com a derrota”12 e dos treinadores de futebol Allen e Brown: “Sempre que perdes, uma parte de ti morre”13 (citados por Apel, 1988/2007: 181).

Mas é importante compreender que mesmo no Desporto profissional não é apenas a vitória que interessa, que tal como no jogo puro muitas vezes importa mais a forma como se ganha. Para demonstrar esta realidade, pode-se analisar o caso do jogo de Futebol da Taça de Inglaterra entre o Arsenal de Londres e o Sheffield United, em 1999. Neste jogo, o Arsenal ganhou devido a um golo marcado após uma jogada em que a equipa adversária tinha interrompido intencionalmente o jogo mediante um fora, para que um jogador do Arsenal que estava lesionado fosse assistido. No seguimento, os jogadores do Arsenal não devolveram a bola à equipa adversária, como costuma ser feito por uma questão de fair-play, e marcaram

11 Fair-Play é uma palavra inglesa que significa procedimento leal. Neste sentido, entende-se por Fair-Play o

comportamento leal, o jogo franco e segundo as regras, respeitando a lealdade desportiva.

12 “Defeat is worse than death, because you have to live with defeat”. 13 “Everytime you lose, you die a little bit”.

25 golo nessa jogada. Perante esta situação, o treinador do Arsenal, o francês Arsene Wenger, pediu à Federação Inglesa de Futebol para repetir o jogo, pois não se podia considerar um justo vencedor tendo ganho com um golo marcado de uma forma que não considerava ser honesta.

Neste exemplo, volta a abordar-se a questão moral do jogo, neste caso do Desporto. Segundo Michael W. Austin, “quando analisamos o Desporto como prática moral, lutamos pela excelência atlética e pela vitória, mas estamos numa luta ainda maior e mais importante, uma luta pela excelência moral”14 (Austin, 2013: 42).

Apesar de as regras das competições desportivas fazerem parte de um mundo de jogo fictício, para o jogador e para o espectador este mundo possui “uma função alegórica e por isso também uma função pedagógica no que diz respeito à fairness a ser praticada conforme à justiça da vida real” (Apel, 1988/2007: 178), logo o Desporto, tal como o jogo, devido à importância que tem para a sociedade pode ter um papel formativo, educativo, pedagógico e também influenciador junto dos espectadores.

Neste sentido, uma das principais funções do Desporto deve passar por cultivar e demonstrar virtude moral e intelectual. Certos valores morais estão incorporados dentro das tradições e estruturas do Desporto. Assim sendo, o Desporto tem potencial para o desenvolvimento de alguns valores como equidade, desportivismo, humildade, prudência, coragem, auto-controlo, justiça, e respeito pelas pessoas, valores que estão profundamente enraizados em muitos Desportos. Valores que ajudam a compreender o papel que o Desporto pode desempenhar no cultivo de um carácter de excelência (Austin, 2013).

Em suma, a competição, o Desporto e o elemento agónico, como referido na análise da importância do jogo, estão presentes na actividade social do Homem desde sempre.

Tomando mais uma vez o caso grego por guia, verifica-se que quando se elimina o agôn da vida grega, a competição regrada, “deparamos logo com o abismo pré-homérico caracterizado pela horrível selvajaria do ódio e pelo prazer do extermínio” (Filipe, 2003: 24). O agôn, a competição, funcionavam em prol do bem-estar do todo. “Para os antigos […] a finalidade da

14 “When we approach sport as a moral practice, we struggle for athletic excellence and victory, but we fit this

struggle into a larger and more important human struggle, the struggle for moral excellence” (Austin, 2013: 42).

26 educação agonística era, em última análise, o bem-estar do todo, da sociedade estatal” (Filipe, 2003: 22).

De acordo com Huizinga (1938/2003),

Não restam dúvidas de que os poucos séculos da cultura grega em que a competição reinou como princípio supremo da vida da sociedade também correspondem à emergência dos grandes jogos sagrados (…), mas nem por isso deixa de ser verdade que o espírito de competição dominou a cultura helénica antes e depois desses séculos (Huizinga, 1938/2003: 91).

Mas não era só na Grécia que o elemento agónico estava presente. Em Roma, apesar de não se dar grande importância às competições entre homens livres, o elemento agónico estava presente na sua estrutura civilizacional. Na Roma Antiga aconteceu um fenómeno que ajuda a perceber a importância que a competição tem para os espectadores. Nesta época, devido ao carácter ritualista dos jogos romanos, o impulso competitivo passou do protagonista para o espectador, os competidores estavam a representar os espectadores, a lutar no lugar deles. Neste sentido, apesar de disputados por escravos, estes jogos não perdem o seu carácter agónico (Huizinga, 1938/2003).

O princípio da competição deve estar presente como elemento da cultura, mas é ele próprio susceptível de corrupção. Assim, já na Grécia, tudo era motivo de competição, até se competia para ver quem bebia mais e quem ficava mais tempo acordado. Se é fácil condenar moralmente estes excessos competitivos, mais importante é compreender que eles derivam da liberdade humana de se submeter a regras por si escolhidas. Este género de proezas negativas, que de proezas se trata, é indissociável das proezas positivamente valorizadas. O que lhes confere o carácter negativo é a falta de desenvolvimento pessoal que lhes é inerente, a irrelevância para os espectadores, e também o desenvolvimento deletério de facetas humanas. Trata-se menos de Desporto do que de records, onde se faz sentir a utilização instrumental da proeza para a fama ou o reconhecimento. Por outras palavras, a actividade é secundarizada relativamente ao que se alcança através dela, ao passo que nos jogos e desportos essa relação é uma relação de solidariedade. O atleta ou jogador quer ser reconhecido pelo que faz e não fora do que faz.

No entanto, o elemento agónico é essencial para compreender a importância social e o potencial comunicativo do Desporto, até porque o “impulso agónico não se perde, porque é inato” (Huizinga, 1938/2003: 122). É óbvio que não se pode desprezar a sua importância em

27 qualquer sociedade antiga e moderna. O sociólogo britânico Eric Dunning, afirma mesmo que que “até hoje nenhuma sociedade humana existiu que não tivesse algo de equivalente ao Desporto moderno” (Dunning, 1985/1992: 15).

Contudo, com o processo de desenvolvimento da civilização, a sociedade tornou-se mais séria e o jogo foi relegado para segundo plano, sem que o Desporto perdesse, contudo, importância na sociedade. Actualmente, este facto é visível pela necessidade que o homem tem em participar em concursos, pelo poder do Desporto, pela importância das grandes competições desportivas, entre outros aspectos.

Como refere Huizinga (1938/2003), “o Desporto, enquanto função social, tem vindo a alargar o seu campo de acção a novas áreas” (Huizinga, 1938/2003: 219)

As formas básicas de competição desportiva têm-se mantido constantes ao longo dos tempos, no entanto outras formas de competição há que evoluíram de forma voluntária no sentido de se tornarem Desportos, como os jogos com bola. Mas o receio de Huizinga (1938/2003) é que, com a sistematização e regulamentação apertada do Desporto, se perca o seu caracter primitivo de jogo, aspecto que pode ser observado com clareza na distinção entre amadores e profissionais (Huizinga, 1938/2003).

O Desporto profissional deixa de ser jogo puro, mas também não é coisa séria, e começa a perder assim o papel de actividade produtora de cultura. No entanto, o Desporto e o atletismo evidenciam um processo de formalização do jogo como coisa séria, mas ainda sentida como jogo (Huizinga, 1938/2003).

Verifica-se uma contaminação do que é o jogo:

O que era prazer torna-se ideia fixa; o que era evasão torna-se obrigação; o que era divertimento torna-se paixão, obsessão e fonte de angústia. Está corrompido o princípio do jogo. É também preciso atendermos a que tal não se deve à existência de batoteiros ou de jogadores profissionais, mas unicamente ao contágio da realidade. No fundo, não há adulteração do jogo, o que há é erro e desvio de uma das quatro impulsões primárias que presidem ao jogo (Caillois, 1958/1990: 66).

No entanto, considera-se que a visão de Huizinga (1938/2003) é algo exagerada. Neste sentido, concorda-se com Callois (1958/1990: 67) quando refere que “[…] a natureza da competição ou do espectáculo não é de forma alguma modificada caso os atletas ou os comediantes sejam profissionais que actuem mediante um salário e não amadores, apenas à

28 espera do prazer. A diferença só os atinge a eles” (Caillois, 1958/1990: 67). O elemento lúdico do Desporto contínua presente nos espectadores e mesmo nos jogadores. E este elemento lúdico é de grande importância social e cultural.

Analisando a história contada pelo etnólogo Hugo Bernatzik, verifica-se a importância social que o Desporto pode ter. Nesta história, os britânicos proibiram a caça à cabeça no Bornéu, o que terá causado nos nativos atingidos por esta decisão uma depressão colectiva e um retrocesso nos nascimentos. Os britânicos não desistiram e tentaram proibir novamente a caça, e desta vez a decisão não teve consequências negativas. Porque é que agora correu tudo bem? Porque os britânicos introduziram o futebol e só depois proibiram a caça (Apel, 1988/2007: 186).

Verifica-se que o Desporto, tal como a música e outras artes, “(…) tem uma propensão natural para a noção de comunidade e a criação de experiências partilhadas”15 (Quadros e Dorstewitz, 2011: 65), pode mesmo funcionar como um meio para a criação espontânea de uma comunidade através da partilha de algo, que neste caso pode ser a experiência como praticante ou espectador desportivo.

Em suma, apesar de ser óbvio que o Desporto muitas vezes não é um jogo puro, que no Desporto profissional actual o homem já não joga como se fosse uma criança, que a liberdade de jogar não é a mesma, que o jogo muitas vezes é visto como algo da esfera do sério, considera-se que os princípios básicos permanecem. Neste sentido, a competição e o Desporto continuam a ter um papel fundamental nas culturas vigentes e o facto de os atletas serem vistos como heróis adquire grande importância na sociedade moderna.