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CAPÍTULO I – A Maratona: Uma Perspectiva de Relações Públicas

1. Desporto e Sociedade

1.2. O Papel do Jogo na Cultura e na Sociedade

Todo o jogo é social e tem influência na cultura e na sociedade. Não existe jogo individual, pois ao jogarmos, dialogamos directa ou indirectamente com outros actores sociais, mesmo quando estes não se encontram presentes. Aliás, os jogadores deixariam de se divertir se não houvesse concorrentes nem espectadores.

O jogo assume um papel de grande importância na construção de um sistema de relações sociais (Caillois, 1958/1990). Huizinga (1938/2003) refere mesmo que a cultura emerge sob a forma de jogo, vê o jogo como um fenómeno cultural. É através dos jogos que a sociedade exprime a sua interpretação da vida e do mundo. O jogo é, simultaneamente, liberdade e

15 invenção, fantasia e disciplina. “O jogo exerce fascínio; é «encantador», é «cativante». Está investido das mais nobres qualidades que somos capazes de reconhecer às coisas: o ritmo e a harmonia” (Huizinga, 1938/2003: 26).

Todas as importantes manifestações da cultura são dele decalcadas, sendo tributárias do espírito de procura do respeito pela regra e do desapego que ele origina e mantém (Huizinga, 1938/2003).

Aliás, o elemento jogo está presente em vários aspectos da nossa vida, por exemplo, a “Afinidade entre a lei e o jogo torna-se óbvia assim que nos apercebemos a que ponto a prática efectiva do direito, ou seja um processo judicial, se assemelha a uma competição, quaisquer que sejam os fundamentos da lei” (Huizinga, 1938/2003: 97). Com a diferença de que se trata neste último caso de regras que são leis e que por isso acarretam sanções que pertencem à vida como tal e não à esfera fictícia do jogo. Refira-se como a tragédia grega se baseava no modelo agonístico do tribunal, que consiste na competição das partes pelo melhor argumento, perante um árbitro.

Johan Huizinga (1938/2003) refere ainda que o jogo se perfila imediatamente como fenómeno cultural. Uma vez jogado, permanece na memória e, quando transmitido, torna-se tradição, parte da cultura.

A sociedade romana não podia viver sem os jogos. Eram tão necessários à sua existência como o pão – pois os jogos eram sagrados e o direito ao povo a ter jogos era sagrado. A função básica dos jogos assentava não somente na celebração da prosperidade já adquirida pela comunidade, mas na sua consolidação e no assegurar da prosperidade futura por meio ritual (Huizinga, 1938/2003: 201).

No entanto, Huizinga (1938/2003) não afirma que o jogo se transforma em cultura, mas sim que a cultura, nos seus primórdios, se desenvolve tendo em conta as características do jogo.

Não foi difícil demonstrar que um certo factor jogo se revelou extremamente activo ao longo de todo o processo cultural e esteve na origem de muitos dos aspectos fundamentais da vida social. O espírito de competição é, enquanto impulso social, mais antigo do que a própria cultura, impregnando toda a vida como um verdadeiro fermento. O ritual desenvolveu-se a partir do jogo sagrado; a poesia nasceu do jogo e dele se alimentou; a música e a dança eram jogo puro. A sabedoria e a filosofia encontraram expressão em formas e em palavras derivadas das competições religiosas. As regras da guerra e as convenções da existência nobre assentavam em

16 padrões de jogo. Assim, temos de concluir que, nas suas fases mais primitivas, a civilização jogava. Não decorre do jogo, como um bebé que se separa do útero. Ocorre no Jogo e como jogo, nunca o abandonando (Huizinga, 1938/2003: 197).

O sociólogo francês Roger Caillois (1958/1990) partilha da ideia de base de Huizinga (1938/2003), ou seja, que existe uma influência do jogo na cultura, até porque “o que revelam os jogos não é diferente do que revela uma cultura. Os impulsos primários coincidem” (Caillois, 1958/1990: 86).

No entanto, Roger Caillois (1958/1990) apesar de defender algumas ideias comuns a Johan Huizinga (1938/2003), tem uma posição diferente sobre a influência do jogo na cultura, posição esta que é perfilhada por este estudo. Caillois defende que o jogo e os seus princípios marcam profundamente os tipos de sociedade, como também são influenciados pela sociedade. “O espírito do jogo é essencial à cultura, embora jogos e brinquedos, no decurso da história, sejam efectivamente os resíduos dessa cultura” (Caillois, 1958/1990: 80).

O jogo é consubstancial à cultura, cujas manifestações mais notórias e mais complexas surgem estreitamente associadas a estruturas dos jogos, ou enquanto estruturas de jogos encaradas no seu lado sério, erigidas em instituições, em leis, em estruturas imperativas, obrigatórias, insubstituíveis, fomentadas, em resumo, regras do jogo social, normas de um jogo que é mais do que um simples jogo (Caillois, 1958/1990: 86).

Como refere Jacquie L’Etang (2013) relativamente ao Desporto, o jogo reflecte a realidade social, é um microcosmo da vida social que revela os valores vigentes em determinada comunidade, e é moldado por factores sociais, económicos, legais, tecnológicos, políticos, culturais, ideológicos, científicos e comunicacionais.

Em suma, a questão de saber o que precedeu o quê, o jogo ou a cultura, não tem muita importância para esta investigação, pois ambos são operações complementares, que se foram influenciando mutuamente. Qualquer instituição funciona, em parte, como um jogo. Os impulsos são os mesmos nos dois mundos. Há, por isso, motivos para subscrever a ideia de que o jogo reflecte, mas também ajuda a construir, a sociedade em que vivemos, existe uma relação de interdependência entre jogo e sociedade e o jogo tem um papel social e cultural importante.

No entanto, “(…) definir uma cultura a partir, simplesmente, dos seus jogos seria uma operação arrojada e provavelmente enganadora” (Caillois, 1958/1990: 88), até porque cada

17 cultura conhece e pratica jogos completamente diferentes, e que nem todos têm a mesma influência cultural, alguns até chegam a “ridicularizar” os princípios e valores base da sociedade.

Já tinha notado que nem todos os jogos são igualmente férteis e que uns, mais que outros, fomentam a evolução da arte, da ciência e da moral, na medida em que obrigam ao respeito pela regra, à lealdade, ao autodomínio e à generosidade, ou exigem mais cálculo, imaginação, paciência, habilidade ou vigor. Mas agora encontra jogos vazios, jogos nulos, que nada exigem do jogador, e que são simples e estéril desperdício do tempo livre (Caillois, 1958/1990: 215).

Apesar de nem todos os jogos terem um papel civilizador, a verdade é que continuam a ter uma grande importância na sociedade – e esta influência pode até ser vista de forma negativa. Analisando a importância social do jogo, Caillois (1958/1990) considera que o jogo tem um papel fundamental, por exemplo, ao nível da formação e educação. A importância atribuída à regra do jogo, por parte da criança, influencia a formação moral desta. Neste sentido é importante distinguir o jogar do “brincar”, pois o brincar é algo individual e que é inerente à vida da criança. A criança projecta significados sobre os objectos com que brinca, tem liberdade total para criar e brincar, enquanto o jogo, como já foi referido diversas vezes, tem regras, o que automaticamente limita o espaço de manobra.

Enquanto criança, a projecção permite todos os devaneios e sonhos possíveis, e a criança pode mesmo criar jogos e respectivas regras. A partir de uma certa idade, a criança apenas joga, jogos já codificados, com conjuntos de regras já existentes, jogos e regras que vão influenciar o background8 e os respectivos comportamentos do jovem.

Neste sentido é importante compreender que o papel do jogo na vida das pessoas difere consoante a fase da vida. O jogo tem uma grande importância no desenvolvimento e na felicidade das crianças. Como refere o filósofo alemão Immanuel Kant (1803/2012),

O coração alegre não tem de ser manter sempre rigorosamente sob coacção escolar, pois neste caso em breve fica abatido. Se tiver liberdade, recupera rapidamente. Para isso servem certos

8 Entende-se o conceito de background como um conjunto de “[…] abilities, capacities, and so on for applying

those intentional states. […] The Background consists of all of those abilities, capacities, dispositions, ways of doing things, and general know-how that enable us to carry out our intentions and apply our intentional states generally" (Searle, 2010: 31).

18 jogos em que tem liberdade e onde a criança esforça por exceder outrem a propósito de alguma coisa. A alma torna-se logo novamente alegre (Kant, 1803/2012: 61).

Enquanto a criança joga porque alguém assegura a reprodução da sua vida, ou seja, a actividade lúdica infantil não funciona como evasão, é natural, quando se torna jovem ou adulto, que o sério actue como uma fixação de identidade da qual a pessoa se pode evadir através do jogo.

Roger Callois refere que o jogo estimula o jogador e exige que este desenvolva as suas capacidades, a sorte, o zelo, a audácia de arriscar e a prudência de calcular. Implica disciplina e perseverança, exige atenção, lealdade para com o adversário, inteligência e resistência nervosa e que o jogador consiga encontrar e/ou inventar uma solução dentro das regras definidas (Caillois, 1958/1990).

De acordo com Huizinga, “É no «acto» de jogar que o Homem alcança o vértice da sua capacidade inventiva, da sua libertação face ao determinismo na inimizade mútua e da necessidade crua” (Huizinga, 1938/2003: 14).

O jogo ajuda também a disciplinar os instintos, o que sem esta influência dos jogos, poderia conduzir a consequências negativas. Para além destes aspectos, promove intensas transformações em todo o desenvolvimento social, cultural, motor e psicológico das pessoas que se encontram imersas nesta actividade (Caillois, 1958/1990).

Posto isto, deve concluir-se que o jogo tem uma grande importância a nível social, cultural e pessoal, e adquire imensa importância para o jogador, mas também para os espectadores, que o vivem tão ou mais intensamente que o jogador. Por exemplo, principalmente nos jogos que implicam aplicação, conhecimento, habilidade, coragem e força, a tensão sentida pelo jogador transmite-se para o espectador.

No entanto, a relação e influência do jogo varia consoante o tipo de jogo, seguindo a sua tipologia dos jogos Caillois afirma em termos gerais que:

Os jogos de competição conduzem ao Desporto, os jogos de imitação e de ilusão prefiguram as religiões do espectáculo. Os jogos de azar e de combinação estiveram na origem de vários desenvolvimentos das matemáticas, do cálculo de probabilidades à topologia. É assaz evidente: o panorama de fecundidade cultural dos jogos não deixa de ser impressionante. A sua contribuição ao nível do indivíduo não é menor. Os psicólogos reconhecem-lhes um papel vital

19 na história da auto-afirmação da criança e na formação da sua personalidade (Caillois, 1958/1990: 15).