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CAPÍTULO I – A Maratona: Uma Perspectiva de Relações Públicas

1. Desporto e Sociedade

1.5. Os Novos Heróis

Segundo o filósofo francês Roland Barthes (1957/1978), que esboçou uma interpretação estética do Desporto, e o filósofo alemão Hans Lenk (1990), as competições desportivas modernas podem ser vistas como a variante moderna das “lutas dramáticas entre papéis heróicos, dotada de efeitos simbólicos quase arquetípicos” (Lenk, 1990: 169). Garcia partilha

15 “(…) has a natural propensity for community building and the creation of shared experiences” (Quadros e

29 da mesma ideia, quando refere que “as proezas desportivas imitam ou substituem os ritos arcaicos sagrados” (Garcia, 1994: 58).

De facto, o modo em que o público vê, regista, vive e revive as competições desportivas, assemelha-se à vivência dramática de uma narrativa mítica, preenchida e apaixonadamente impregnada pela concomitância da confrontação e ligação sociais, de partes e identificação pessoal. O espectador faz a experiência da competição desportiva como um suplente, como participante suplente – da mesma maneira que ele vive um drama no palco (Lenk, 1990: 169).

Actualmente, a Maratona ou o Tour de France, por exemplo, são vistos como grandes desafios. Barthes (1957/1978), em relação ao Tour de France, chega mesmo a referir que “A Volta dispõe, pois, de uma verdadeira geografia homérica. Como na Odisseia, a corrida é aqui, simultaneamente, um périplo de provas e a exploração total dos limites terrestres” (Barthes, 1957/1978: 105-106). Estas duas provas são assim consideradas uma narrativa dramática, onde os os atletas se superam, são heróis que lutam pela vitória. E as pessoas reveem-se nestes heróis.

Ferreira (1984) refere-se ao maratonista Alberto Salazar16 como sendo um «novo mito», engrandecendo assim essa personagem devido aos seus feitos na Maratona de Nova Iorque. O que ele fez está para além do campo das realizações humanas situando-se bem próximo das proezas dos heróis de antanho (citado por Garcia, 1994: 59).

E apesar de, “[…] Pointu (1979) [afirmar] que Zatopek, pelas suas proezas atléticas, destruiu o «mito da Maratona». Aquilo que parecia estar apenas reservado a seres sobrenaturais caiu no campo das simples realizações humanas” (Garcia, 1994: 59), considera-se que o “mito da Maratona” sobrevive. A verdade é que a proeza de Emil Zatopek foi um feito único17, que não teve repetição, logo Zatopek é ainda visto hoje como um mito, um herói, que alcançou o «impossível».

De acordo com Caillois (1958/1990) existe um culto, característico da sociedade moderna, do campeão. Facto normal num mundo onde o Desporto ocupa um lugar tão destacado. Os espectadores imitam os atletas, estes são uma das suas grandes referências. Em suma, os espectadores revêem-se no atleta, e quando os atletas vencem, a vitória também é dos adeptos

16 Vencedor da Maratona de Nova Iorque em 1980, 1981 e 1982. Venceu ainda a Maratona de Boston em 1982. 17 Zatopek, atleta checo, venceu as provas de 5.000 metros, 10.000 metros e da Maratona, na primeira vez que

30 e estes vencem assim vicariamente. “A vedeta simboliza o êxito pessoalizado, a vitória, a vingança sobre a devastadora e sórdida inércia quotidiana, sobre os obstáculos que a sociedade opõe ao mérito“ (Caillois, 1958/1990: 146).

O que leva a concluir que “Desde que o espectador se identifique com o representante desportivo de seu grupo, ele vê como possível e até garantida a identificação do acontecimento dramático com os seus próprios objectivos e padrões comportamentais” (Lenk, 1990: 172).

O adepto de Desporto tem tendência a “mitificar” o desportista como se fosse um semideus, um herói dos tempos modernos. O significado “mítico” da competição desportiva para o espectador está relacionado com uma tese de compensação, a experiência vivida na competição desportiva funciona como uma compensação e um substituto para a monotonia e os problemas ou frustrações do dia-a-dia.

O Desporto, principalmente o profissional, é uma corporificação pontual de um modelo “mítico”, uma imagem ideal tanto de capacidades humanas como acção. O desportista representa um “ideal mítico”, o atleta pode ser compreendido como representante e a corporificação de um «mito» que expõe uma espécie de figura mítica proveniente de Heracles e Prometeu (Weiss, 1969 citado por Lenk, 1990).

Em suma, o espectador revê-se na competição e no atleta, estes simbolizam algo para ele. Vê no sucesso desportivo o comportamento de desempenho elevado à forma ideal. Encontra nessa “mitologia desportiva”, os sentimentos e emoções que lhe faltam no seu dia-dia, encontra uma compensação abrangente e uma fonte de confiança, para além de ajudar o espectador a interpretar o mundo.

No entanto, é claro que nem todos os Desportos têm o mesmo valor, a mesma importância, o mesmo carácter mitológico. Quanto maior o nível de dificuldade, maior o desafio e maior será a superação e o carácter mítico do feito. Por exemplo, o carácter mítico de vencer ou mesmo de terminar uma Maratona é superior ao carácter mítico de vencer ou acabar a prova de 5.000 m.

Os desempenhos desportivos caracterizam-se por superar os obstáculos artificialmente colocados ou mesmo escalonados, por resistir e ultrapassar esforços e desafios extremos, por evitar facilitações técnicas e atalhos. A fuga num helicóptero do Monte Everest não seria um

31 acto desportivo. Já a escalada da montanha mais elevada sem bomba de oxigénio é um acto desportivo heróico (Lenk, 1990: 185).

Ou seja, o que caracteriza o mito é tornar possível o impossível, de preferência sem o uso de auxílio técnico. Este facto é visível na natação, onde os fatos-de-banho Shark Skin Generation foram proibidos, dado que ajudavam os nadadores a alcançar melhores resultados.

É, por isso, de defender que as funções míticas dos desempenhos desportivos são a base, ou pelo menos fortalecem, a força de atracção do Desporto para os atletas e o seu fascínio para os espectadores. O carácter mítico, atribuído aos desportistas e aos desempenhos desportistas, faz com que o Desporto tenha uma grande influência social ao longo dos tempos até aos nossos dias.