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Características da religiosidade neopentecostal brasileira

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Como viver o evangelho na atual cultura pós-moderna que é a cultura urbana? O desafio é: como viver o evangelho fora do contexto da cristandade? A primeira condição é ter consciência da distância que há entre o evangelho e a nova cultura. Quem está acostumado à cristandade não faz distinção entre ser cristão e ser da sua cultura. Agora, sim, a distinção há de ser bem consciente. Sem isso não é possível dar-se conta do que é o evangelho. Em segundo lugar, é preciso fazer opção por uma vida alternativa, não integrada ao coração da cultura atual. Necessariamente o cristão precisa tomar parte das atividades sociais, mas seu compromisso incondicional, pelo contrário, e com o projeto de buscar uma sociedade alternativa. Em terceiro lugar, pode-se dizer que é quase impossível viver de acordo com o evangelho sozinho. Antigamente o cristianismo era vivido na família, mas a família deixou de ser religiosamente homogênea, deixou de ser uma comunidade de fé. Frequentemente cada um tem a sua própria religião. Então, cada cristão precisa de uma comunidade de fé para alimentar a sua adesão ao evangelho62. José Comblim.

A partir do cenário exposto no primeiro capítulo, onde situamos sociedade e religião modeladas, em grande parte, pela intervenção midiática na contemporaneidade e as implicações que estas questões trazem para o ambiente religioso em sua forma de percepção, abordagem e interação social, pretendemos voltar nossa atenção com maior interesse ao fenômeno neopentecostal brasileiro. Este objetivo se dá, sobretudo, com o propósito de delinear as características mais básicas deste mo vimento, como

62 COMBLIM, José. Os desafios da cidade no século XXI, São Paulo: Editora Paulus, 2002, pg. 47 e

sua maneira de entender o papel da igreja na sociedade, as demandas que isto gera e o desafio que representa para pastores63.

Nosso intuito pode se basear no que supõe Campos ao ponderar sobre o trabalho de estudar o neopentecostalismo64. Segundo o autor, o surgimento das novas comunidades religiosas, em contraposição ao protestantismo clássico65, se deu pelo que chama de “cristalização de um certo tipo de ‘mentalidade neopentecostal’”66. Nossa compreensão é que o panorama religioso passa pela tensão surgida a partir dos vários tipos de ‘mentalidade’, que talvez pudéssemos chamar de ‘roteiro religioso’, que, assim como numa peça de teatro, ou numa liturgia de uma celebração, dá rumo ao conjunto de comportamentos e maneiras de ver o mundo de quem por ele se pauta.

Desta forma, pensamos ser necessário estabelecer os limites que caracterizam o neopentecostalismo como ‘roteiro’ de orientação para milhares de pessoas no contexto religioso brasileiro.

Consideramos, portanto, necessário, para maior propriedade em nossa pesquisa, considerar a conceituação de terminologias como pentecostalismo, religiosidade e religião. Certamente, esta seria uma tarefa profunda e complexa, levando em conta as dimensões culturais, históricas, políticas e sociais implicadas. Mendonça, arguindo nesta direção concorda que uma tentativa neste sentido poderia representar um risco, sob pena do que ele classifica como uso de “elementos discriminantes”67. Para o autor, quando se propõe a decifrar um certo comportamento, é impossível fazê-lo sem o uso de imparcialidade teórica. Contudo, necessitamos, mesmo como ousadia, procurar

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Entende-se que o desafio que o ‘pensamento neopentecostal’ causa em pastores não está restrito àqueles que têm vocação/orientação tradicional, já que, segundo nossa suspeita, esta demanda gera crise de identidade tanto em pastores tradicionais como nos próprios pastores neopentecostais.

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No caso de Campos, como ele mesmo denomina, neopentecostalismo iurdiano in Teatro, Templo e

Mercado.

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Chamamos de protestantismo clássico as denominações tradicionais, oriundas dos Estados Unidos no século XIX, como as Igrejas Metodista, Presbiteriana e Batista.

66

CAMPOS, Teatro, Templo e Mercado. Op. cit. pg. 12.

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MENDONÇA. Antônio Gouvêa. Religiosidade no Brasil: imaginário, pós-modernidade e formas de

expressão. Estudos de Religião – Revista Semestral de Estudos e Pesquisas em Religião. Ano XII, nº

sinalizar tais linhas de entendimento. O próprio pesquisador elabora uma referência de neopentecostalismo como “uma forma de culto e prática cristãs cujo centro está na busca dos dons do Espírito Santo, cujo sinal é a glossolalia”68, porém, entende que se incluem neste ‘perfil’ alguns grupos considerados ‘pentecostais tradicionais’ – que têm ênfases pentecostais mas são membros de igrejas tradicionais. Este fato, para Mendonça, demonstra a dificuldade dos estudos de religião no Brasil, ou seja, a existência desse sincretismo de pensamentos.

Campos, por sua vez, também considera que existem diversas formas de conceituação ou mesmo de tipificação dessa ramificação do pentecostalismo. Para ele, “é possível que a luta de paradigmas tenha contribuído para a criação de um labirinto conceptual tipológico, de termos e modelos teóricos, nem sempre conciliáveis, empregados na construção do pentecostalismo como objeto de pesquisa”69. O autor esclarece ainda que, simplesmente juntar o prefixo neo à palavra pentecostalismo não é suficiente para decifrar este movimento surgido na América, no início do século passado, com pregação direcionada ao batismo do Espírito Santo e caracterizado por reações físicas, com ênfase para a glossolalia70. Pode-se entender que o fator central que sinaliza o tema neopentecostalismo esteja na ênfase de uma experiência espiritual desalienada ao dogmatismo, ou seja , aos padrões doutrinários e aos costumes da tradição pentecostal até então conhecida. Neste sentido, Campos lembra dados levantados pela pesquisa de David B. Barrett mostrando que nos Estados Unidos várias vertentes religiosas oriundas do pentecostalismo são nominadas como “pré- pentecostais”, “quase-pentecostais”, “pentecostais-nativos”, “pós-pentecostais”, “pós- carismáticos”, “cripto-pentecostais”, “pentecostais-radiofônicos”, “isolated-radio- pentecostals”, “carismáticos do rádio e da televisão”, “carismáticos independentes”. O autor esclarece que

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MENDONÇA. Religiosidade no Brasil: imaginário, pós-modernidade e formas de expressão. Ib. Idem. pg 42.

69

CAMPOS. Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um

empreendimento neopentecostal. Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo: Simpósio Editora e Universidade

Metodista de São Paulo, 1997. pg. 49.

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Suposta capacidade de falar línguas desconhecidas quando em transe religioso (como no milagre do dia de Pentecostes). Cf. Dicionário Houaiss Eletrônico 1.0.

Naquele país, atribui-se o termo ‘neopentecostalismo’ a pessoas com mentalidade neopentecostal, mas que se consideram adeptas de uma ‘renovação espiritual’ dentro dos próprios quadros denominacionais a que pertencem. De maneira geral esse ‘neopentecostalismo’ enfatiza o exorcismo, cura divina, dons espirituais, continuidade da revelação divina através de líderes carismáticos, e uma parte dele aceita a ‘teologia da prosperidade’. Esse ‘neopentecostalismo’ ganhou força no mundo religioso norte-americano nos anos 70, período em que também começou a penetrar na América Latina, provocando o surgimento de novas igrejas, seitas e denominações, assim como cisões nas principais denominações protestantes brasileiras, entre elas, Metodista, Batista, Presbiteriana, Congregacional e outras.71

No Dicionário Brasileiro de Teologia72, Campos, salienta que todas as religiões estão, naturalmente, sujeitas a mudanças, devido as questões históricas e sociais. Como tal, o cristianismo e, por consequência, o pentecostalismo, no Brasil, apresentam esta característica. Segundo o autor

Devido a esse processo de complexidade e pluralidade crescente, bem como pelo fato de ser um fenômeno altamente dinâmico, poucos anos depois algumas expressões do Pentecostalismo não mais cabiam dentro das fronteiras e da identidade construída na primeira metade do século XX. Diante desse crescimento e processo de transformações mais ou menos aceleradas, podemos observar que nenhuma manifestação religiosa, inclusive o Protestantismo e o Pentecostalismo, se instala e se repete em lugares diferentes para onde é levada sem que sofra alterações, retraduções e aclimatações.73

Ainda no propósito de uma compreensão sobre o que seja o neopentecostalismo, Romeiro, pondera que esta parcela significativa da religiosidade brasileira necessita de uma abordagem mais profunda. Segundo o pesquisador, ela pode ser analisada a partir de vários aspectos. Se, como movimento, há de se averiguar que, para a sociologia, por exemplo, um movimento religioso é também um movimento social que geralmente é caracterizado pela força do carisma de seu líder, análise que é bem próxima à realidade dos movimentos neopentecostais contemporâneos. Se como denominação, a análise encontra -se com algumas limitações, já que o traço característico de uma denominação é a unidade doutrinária,

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CAMPOS. Teatro, templo e mercado. Ib. Idem. pg. 50.

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CAMPOS, Leonildo Silveira. Neopentecostalismo. In Dicionário Brasileiro de Teologia. Fernando Bortolleto Filho (org). São Paulo: Aste, 2008. pgs. 706-709..

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garantida pela realização de sínodos, congressos e concílios, além de semelhança litúrgica, musical, e, até mesmo arquitetura em alguns casos, como o da Congregação Cristã no Brasil.

Romeiro salienta, desta forma, que

Ao analisar os diferentes segmentos do neopentecostalismo, observamos que eles apresentam liberdade de crença e de pregação doutrinária. As igrejas que o compõe agem de formas diferentes em todas as áreas. Na Igreja Nacional de Senhor Jesus Cristo, por exemplo, Valnice Milhomens promove e guarda o sábado, ação que a maioria das igrejas neopentecostais rejeitam.

A prática de cair pra trás num momento de oração é comum em muitos grupos, mas não é aceita na Igreja Universal do Reino de Deus. Nesta, apenas os maus espíritos derrubam as pessoas, e por isso devem ser exorcizados.

Ainda que algum grupo possa apresentar uma ou mais práticas de uma denominação, elas não são suficientes para classificá-lo como tal. Assim, o neopentecostalismo não pode ser considerado denominação, mas movimento74.

Outro fator importante de nossa abordagem é a questão de religiosidade e religião, conceituações que, usualmente, são consideradas sinônimas ou interligadas. Esta suposição levaria a uma lógica de que a religiosidade está vinculada ao compromisso formal com uma instituição religiosa, o que pode significar uma restrição demasiada de um assunto bem mais amplo. Mendonça acredita que não se pode desconsiderar a mística cósmica que acontece a partir da própria humanidade das pessoas, afirmando que mesmo “o homem culto que se esforça por libertar-se dos dogmas e preceitos das religiões organizadas sustenta, com frequência, uma espécie de religião cósmica”75. Desta forma e, considerando a vastidão de significados que poderiam ser atribuídos à terminologia religiosidade, o autor propõe uma definição: “a sensação generalizada de que o mundo está sujeito a poderes ameaçadores da ordem – poderes caóticos – , sejam de amplitude universal ou simplesmente localizados no

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ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a Graça: esperanças e frustrações no Brasil

neopentecostal. São Paulo, Mundo Cristão, 2005. pgs. 48,49.

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MENDONÇA. Religiosidade no Brasil: imaginário, pós-modernidade e formas de expressão. Ib. Idem. pg 42.

espaço e no tempo, estes quando se referem a grupos humanos isolados social e geograficamente”76, contudo, não considerando suficiente, ele elabora uma segunda definição: “a existência na consciência daqueles traços culturais de crença em poderes benéficos e maléficos que, de alguma forma, regem a vida nos mínimos detalhes e que podem estar subjacentes na aceitação de qualquer religião organizada, introduzindo nela modificações77”. Mesmo assim, o autor ainda considera que conceituações assim pecam pela complexidade e extensão.

O que possivelmente esteja implícito aqui é que religiosidade é um fenômeno desassociado ao arquétipo religioso. Apesar de existir nela, a religiosidade pode ser considerada uma característica independente da religião. Assim, justifica-se a afirmação de Mendonça que mesmo o homem culto, que mantém uma determinada crítica a estrutura religiosa verificada na sociedade em geral, pode desenvolver simbolismos e significações de religiosidade em seu íntimo. Religiosidade, desta forma, seria a maneira pessoal de construção de um conjunto de escrúpulos ou valores éticos que apresentam certo valor religioso. Esta linha de pensamento, portanto , estaria estreitamente ligada a interpretações pessoais sobre estes valores e procederes. Desta maneira a religiosidade seria uma formação conjunta das influências recebidas do contexto que se vive, da cultura, da experiência e, principalmente, das interpretações que se tem a respeito deste conjunto de fatores.

Portanto, havemos de considerar que tratar de uma religiosidade neopentecostal brasileira seria tentar decifrar, ou reconhecer, os pressupostos, as motivações, que formam um jeito específico de crença, já que o neopentecostalismo não deverá ser trabalhado na perspectiva de uma denominação, forjada em um conjunto doutrinário, mas de um movimento, como veremos à frente. A orientação desta pesquisa tem a ver com o ‘roteiro’ escrito por esta maneira de crer e atuar na sociedade. Um roteiro que é

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MENDONÇA. Religiosidade no Brasil: imaginário, pós-modernidade e formas de expressão. Ib. Idem. pg 43.

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social e religioso, sem, contudo, ser institucionalizado e existente de forma ‘subcutânea’ na maioria das denominações conhecidas e reconhecidas como tais.

A religião, no entanto, em local próximo da religiosidade, significaria um conjunto estrutural de crenças e procedimentos, com um distintivo: sob a tutela de uma instituição religiosa ou, sob o código dogmático que ela estabeleceu ao longo de sua história. Mendonça a define como “alguma forma explícita e, portanto, reconhecível, de crença e prática, com doutrina e ética peculiares a determinado grupo social (nã o classe social)”78. Para o autor,

A religião pode se confundir com a totalidade cultural em sociedades complexas e de extratos culturais diversificados. A religião, nesses moldes, tende a institucionalizar-se. No protestantismo, por exemplo, especialmente o norte-americano, que desde o início assumiu formas de sociedades voluntárias, surgem configurações jurídicas de sociedades civis. São sociedades ‘sui generis’ porque apresentam um hibridismo civil-religioso, isto é, possuem estatutos regidos pelas leis civis e confissões de fé cujos símbolos as remetem as tradições históricas de caráter universal79.

Assim, após estabelecer os conceitos básicos que nos ajudam a visualizar um pano de fundo para nossa análise, podemos lançar mão de uma apreciação mais objetiva , que demonstre, de fato, as características do movimento neopentecostal brasileiro.

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