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CAPÍTULO IV – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

3. Análise dos dados referentes aos grupos de fatores linguísticos

3.1 Relação semântico-pragmática

3.1.1 Caracterização e hipóteses

seção 5 a seguir, em que discuto os resultados obtidos para os grupos de fatores sociais. Antes, na seção 3, analiso os dados obtidos para os grupos de fatores linguísticos e, na seção 4, os resultados obtidos para o grupo de fatores textual-estilístico.

Cumpre mencionar que o Pacote Estatístico GOLDVARB 2001 (ROBINSON; LAWRENCE; TAGLIAMONTE, 2001) selecionou os grupos de fatores significativos para o fenômeno variável sob enfoque na seguinte ordem de relevância: gênero textual, nível de articulação, relação semântico-pragmática e idade/escolaridade. O grupo de fatores gênero não foi considerado relevante.24

3. Análise dos dados referentes aos grupos de fatores linguísticos

Nas próximas seções, analiso os contextos linguísticos preferencias para o uso do E e do AÍ conectores no que tange às relações semântico-pragmáticas (sequenciação textual, sequenciação temporal e consequência) e aos níveis de articulação (entre orações, entre partes mais amplas do parágrafo, entre parágrafos).

3.1 Relação semântico-pragmática

3.1.1 Caracterização e hipóteses

Como já dito no capítulo I, os conectores sequenciadores E e AÍ são empregados, no corpus deste estudo, na indicação de três relações semântico- pragmáticas: a sequenciação textual, a sequenciação temporal e a consequência. Como essas relações já foram descritas e exemplificadas no capítulo I, são rapidamente apresentadas abaixo, seguidas de novos exemplos.

1. Sequenciação textual: assinala a ordem sequencial pela qual as informações são apresentadas e desenvolvidas no texto, indicando a progressão dessas informações para

24 Os pesos relativos atribuídos aos gêneros foram os seguintes: (i) feminino = 0.511; masculino = 0.487

frente sem exigir o estabelecimento de relações semântico-pragmáticas mais específicas entre elas. O conector sequenciador, na indicação dessa relação, apenas deixa transparecer que a informação que introduz tem a ver com as demais, por fazerem parte do mesmo assunto. Nas palavras de Tavares (2003, p. 27):

Despida de caráter argumentativo ou de indicação de cronologia temporal, a sequenciação textual salienta o encadeamento de uma porção textual anterior com uma posterior, evidenciando que essa é mais uma informação que se relaciona com informações já dadas.

Seguem-se os exemplos:

(1) “[...] um dia estava andando pela rua de bicicleta e ela só ficava escutando uma voz dizendo assim: “solitária, solitária você é muito solitária” e ela ficou com essa voz 2

semanas não conseguia fazer nada e não se concentrava nas aulas [...]”. (94M62)

(2) “[...] no dia do enterro dele, ela chorava muito, ai pegou a boneca que ele deu e a agarrou bem muito [...]”. (99F92)

2. Sequenciação temporal: também assinala a ordem sequencial pela qual as informações são apresentadas e desenvolvidas no texto, mas as informações introduzidas representam eventos ordenados cronologicamente. O conector sequenciador, na indicação dessa relação, marca a ordem de ocorrência dos eventos no tempo, envolvendo a pressuposição de que o segundo evento ocorreu mais tarde em relação ao primeiro. Seguem-se os exemplos:

(3) “[...] aperte a mão da boneca ela apertou e a boneca falou quer casar comigo e o

anel, caiu e foi aí que ela começou a chorar intensamente”. (99F92)

(4) “aí mateus botou a mão debaixo da cadeira e encontrou um biscoito pela metade ai

nos ficou discutino que comia o biscoito primeiro ai Jonathan comeu primeiro ai mateus

comeu pelo o segundo”. (52M91)

3. Consequência: introduz informações que representam consequência em relação a informações dadas anteriormente. Seguem-se os exemplos:

(5) “Eu tinha 9 anos, e eu gostava muito de ir para a casa de uma amiga e via a irmã

mecher então eu ficava olhando e aprendi a mecher”. (5F61)

(6) “[...] eu pedia para minha mãe, mais ela não deixava porque era em outra cidade

(Parnamirim) então eu falava que tinha outro capeonato no planalto, aí ela deixava, quando chegava no meio do caminho eu chamava meus amigos e ia para parnamirim de

Bike.” (22M61)

Qual é a hipótese previamente tecida a respeito do grupo de fatores relação semântico-pragmática? Como já mencionado, no âmbito do sociofuncionalismo, propõem-se que motivações e princípios de natureza funcionalista e de natureza sociolinguística estejam subjacentes a cada escolha linguística feita por um falante ou escritor. A esse respeito, Tavares (2013b, p. 8) nos esclarece que:

Numa perspectiva sociofuncionalista, os resultados quantitativos e qualitativos obtidos são explicados através de princípios e motivações de natureza cognitivo-comunicativa – cuja fonte principal é o funcionalismo norte-americano ou linguística baseada no uso –, além de princípios e motivações de natureza sociocultural e estilística – cuja fonte principal é a sociolinguística variacionista.

No caso deste estudo, acredito que a seleção de cada conector sequenciador feita pelos alunos em seus textos narrativos sofre influências de dois princípios em especial, o princípio da persistência e o princípio da marcação estilística. O princípio da persistência pode ser atuante sobre o comportamento de E e de AÍ no que se refere aos grupos de fatores linguísticos, e o princípio da marcação estilística pode influenciar o comportamento dessas formas no que tange ao grupo de fatores textual-estilístico, assim como no que tange aos grupos de fatores sociais. Nesta seção, recebe destaque o princípio da persistência.

Já havíamos observado que o princípio da persistência é um dos princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991). Muitos pesquisadores têm recorrido a esse princípio para explicar os resultados obtidos no estudo de fenômenos variáveis (cf. TAGLIAMONTE, 2003; TAGLIAMONTE, SMITH, 2006; POPLACK, 2011; TAVARES, 2003, 2013b; TORRES CACOULLOS, 2012, entre outros). De acordo com esse princípio, traços dos significados originais de uma forma linguística podem ser conservados ao longo de seu processo de gramaticalização, algumas vezes restringindo seu uso em certos contextos. Nas palavras de Hopper (1991, p. 22):

Quando uma forma sofre gramaticalização de uma função lexical para uma gramatical, tanto quanto isso é gramaticalmente viável, alguns traços de seus significados lexicais originais tendem a aderir a ela, e detalhes de sua história lexical podem ser refletidos nas restrições de sua distribuição gramatical.

Desse modo, conforme Tavares (2013b, p. 8):

[...] detalhes da história dessa forma podem ser refletidos em condicionamentos morfossintáticos, semântico-pragmáticos e/ou estilísticos a seu uso variável, mesmo quando essa forma assume significados até distantes daqueles de seu uso fonte. Em decorrência, o exame do passado das formas variantes é fundamental para contextualizar – e explicar – a variação sincrônica.

Portanto, os conectores sequenciadores E e AÍ podem diferir em termos de sua distribuição linguística porque são oriundos de diferentes fontes adverbiais (cf. capítulo I) e podem ter conservado traços de uso característicos dessas fontes em seu emprego atual na indicação de sequenciação retroativo-propulsora, hipótese que averiguo, nesta seção, no que diz respeito aos grupos de fatores relação semântico-pragmática.

Com base no princípio da persistência, acredito que detalhes da história anterior de gramaticalização exerçam influência sobre os usos dados atualmente aos conectores E e AÍ, o que se reflete em forma de tendências diferenciadas de distribuição linguística. Assim, esses conectores podem se distinguir quanto à relação semântico-pragmática que preferencialmente indicam em razão de terem se desenvolvido de mananciais adverbiais distintos e de terem retido traços de seus significados fontes. Nesse sentido, minha hipótese é de que conector E seja condicionado favoravelmente na indicação da sequenciação textual, ao passo que o conector AÍ deve ser condicionado favoravelmente na indicação da sequenciação temporal.

Essa hipótese encontra fundamentação nos percursos de gramaticalização propostos por Tavares (2003) para as formas E e AÍ, pelos quais elas teriam migrado de papéis adverbiais para papéis conectivos. A seguir, os dois quadros trazem esquemas dos percursos delineados por Tavares (op. cit.), percursos esses que podem ser conferidos em maior detalhe no capítulo I:

Quadro 7: Percurso de gramaticalização do E

Em síntese, segundo Tavares (op. cit.), ainda no latim, a forma et deve ter entrado no domínio da sequenciação retroativo-propulsora através da indicação da relação semântico-pragmática de sequenciação textual, pois essa é a relação que mais possui características em comum com os usos mais antigos do et como um advérbio ligado à soma entre informações. Nesses usos, o et tinha significados como ‘além de’ e

‘também’, que evidenciavam, à semelhança da sequenciação textual, a característica de

adicionar uma parte do texto à outra. O emprego do et na indicação de sequenciação temporal e de consequência seria, segundo essa proposta, derivado do emprego do et na indicação de sequenciação textual, por pressão de contextos de uso que deixavam vir à tona inferências como cronologia temporal e causa-consequência entre as informações sequenciadas pelo et.

Já foi como marca linguística de todas essas três relações semântico-pragmáticas que o E chegou ao português. Todavia, os usos desse conector parecem ser, desde os primórdios da língua portuguesa, mais recorrentes na indicação de sequenciação textual (cf. TAVARES, 2003), o que pode ser tomado como um possível reflexo de uma especialização de uso desse conector já existente no latim, derivada, nessa língua, de suas fontes adverbiais de significado vinculado à soma de informações, especialização essa que, herdada do latim, parece se manter até hoje em português (cf. SOARES, 2003; TAVARES, 2003, 2007; SOUZA, 2010; ANDRADE, 2011; FREITAG et al., 2013).

E

~eti, além de et, também sequenciação textual sequenciação temporal consequência

Quadro 8: Percurso de gramaticalização do AÍ

Consoante a proposta de Tavares (op. cit.), a forma AÍ deve ter passado a integrar o domínio da sequenciação retroativo-propulsora de informações através da indicação da relação semântico-pragmática de sequenciação temporal, uma vez que é essa relação que apresenta os traços semânticos mais similares aos dos usos mais antigos do AÍ no plano adverbial. Quanto o AÍ se tornou um conector indicador de sequenciação temporal, a relação espacial e/ou temporal que o ligava anaforicamente a um elemento antecedente no texto deu vez à relação de sequencialidade temporal existente entre dois eventos.

A utilização do AÍ na indicação de consequência seria, por sua vez, proveniente de seu emprego na indicação de sequenciação temporal, por pressão de contextos de uso que permitiam o surgimento da inferência de que as informações sequenciadas cronologicamente por esse conector estariam também em uma relação de causa- consequência. Por sua vez, o uso do AÍ na indicação de sequenciação textual deve ter vindo de seus usos na expressão da sequenciação temporal e da consequência, em contextos em que não ficava claro se de fato havia relação de cronologia temporal e/ou de causa/consequência entre as informações interligadas, podendo estar em jogo apenas a indicação de que ambas as informações relacionam-se ao mesmo tópico.

Na próxima seção, vejamos se os resultados obtidos de fato apontam um maior uso do conector E na indicação de sequenciação textual e do conector AÍ na indicação de sequenciação temporal.

dêixis locativa anáfora locativa anáfora temporal sequenciação temporal

consequência sequenciação textual