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2 OS AGENTES RESPONSÁVEIS PELOS DEZ QUIXOTES

2.4 AGENTES: AUTORIDADE E FAMA EM CADA EDIÇÃO

2.4.2 Carlos Jansen, das armas às letras

2.4.1 Metodologia para coleta de dados

Além da pesquisa bibliográfica e buscas na internet, utilizamos entrevistas com os tradutores/adaptadores e alguns editores, seguindo o protocolo de Peter Flynn (2003). Após extensa pesquisa bibliográfica sobre a vida e as atividades da pessoa a ser entrevistada, procurou-se estabelecer uma conexão com os agentes ao dizer que esta pesquisadora era também uma tradutora, recriando suas trajetórias através de entrevistas diretas, informando-os do projeto de pesquisa em questão, fazendo o possível para elaborar questões semiestruturadas e abertas, para descobrir realmente como tudo aconteceu dentro de cada adaptação do Quixote. Buscaram-se padrões e semelhanças, elementos usados para testar a hipótese de retradução.

2.4.2 Carlos Jansen, das armas às letras

O professor Carlos Jansen, apesar de sua grande importância dentro da história da literatura infantojuvenil brasileira, não tem ainda uma biografia completamente desvendada. Não temos certeza em que ano nasceu, seu nome de batismo, ou a ascendência nobre de seus pais3; os biógrafos apenas confirmam o lugar de nascimento: Colônia, Alemanha.

Chegou ao Brasil em 1851 como soldado do exército contratado pelo imperador D. Pedro II para lutar na Guerra da Cisplatina (1825-1828). Ao término do conflito, Jansen, como muitos dos 1800 mercenários Brummers4, não retornou para a Europa. Instala-se no Rio Grande

do Sul como professor do Colégio Porto Alegre, e logo começa a colaborar na imprensa (Laytano, 1974: 34).

Naturalizado brasileiro, e parte integrante de sociedades literárias, publica seu primeiro romance, na revista Guaíba, semanário no qual era o principal editor5, impresso na também

3 Jansen aparece com mais frequência como nascido em 1823, mas encontramos também 1829. A bibliografia

sugere que era filho natural do oficial do exército prussiano Anton Herbert Jansen e a princesa Henriette Charlotte de Wied-Neuwied, e há divergências quanto ao seu nome: Carl Jacob Anton Christian Jansen, aportuguesado para Carlos Jansen, mas chamado por Lobato e Hallewell de Carlos Jansen Müller.

4 Brummer significa resmungão. Apenas trezentos soldados voltaram para a Alemanha, os outros aceitaram terras

e se mesclaram com a vida da promissora jovem nação, transformando-se em comerciantes, agrimensores, médicos e professores, e até mesmo políticos.

5 Hohlfeldt (2003: 67-123) cita outras obras publicadas como folhetim, inclusive obras em alemão, depois

recém-formada Tipografia Brasileira-Alemã, de sua propriedade. Em 1863 lança um livro de gramática, primeiro de uma extensa lista de livros para uso escolar que ele publicaria mais tarde no Rio de Janeiro. Nessa época ainda exercia a função de inspetor de colonização, atuando como agente intérprete de imigrantes que chegavam ao Rio Grande do Sul (Laytano, 1974: 39 e 63). Muda-se para Buenos Aires em 1870 com sua esposa brasileira, que dá à luz seu oitavo filho naquela capital. Em 1878, já morando no Rio de Janeiro, consegue a cátedra de Língua e Literatura Alemã no prestigiado Imperial Colégio D. Pedro II.

Com inegável vocação de educador, ao perceber a ausência de livros de literatura escritos em português do Brasil, inicia a série de livros clássicos da literatura infantojuvenil, cânon já estabelecido na Europa, dentro da qual está a adaptação do Quixote.

Recordando o conceito de memória afetiva, é bastante provável que Jansen em sua juventude tenha lido e apreciado as adaptações de clássicos feitas por Franz Hoffmann. A obra na qual ele se baseou para adaptar o Quixote, foi publicada na Alemanha em 1844. Portanto, não seria estranho que ele voltasse às suas origens no momento de escolher uma matriz para sua série de livros imprescindíveis para a formação de seus alunos6.

Dom Quixote foi publicado em 1886 pela mesma editora que publicou todos os livros feitos por Jansen para o público escolar, Laemmert & Co. Criada em 1838 pelo alemão Eduard Laemmert e seu irmão Heinrich, também livreiro, a empresa começou publicando com muito sucesso o Almanak Laemmert, mas quase não publicavam livros didáticos7.

Hallewell está convencido de que Garnier era o grande editor de livros escolares, portanto, qual é a razão para a ligação Jansen-Laemmert? Elencamos aqui alguns pontos de coincidência: origem alemã em comum; experiência técnica com tipografia e em almanaques e o primeiro romance de Jansen, O patuá (1880). A obra apareceu na Revista Brasileira (1880), editada por Laemmert. Não pode ser apenas acaso que no mesmo ano surja a publicação da

para os leitores brasileiros”, mas sem os devidos créditos de tradução. Adaptou diversos livros didáticos escritos originalmente em inglês, francês e alemão lançados entre 1880 e 1885 pela Laemmert. Ver mais detalhes em Laytano (1974: 40-41) e Hohlfeldt (2003: 70-71).

6 Contos seletos das Mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé e Contos seletos (contos europeus) em 1885,

Viagens de Gulliver às terras desconhecidas (1888), Aventuras pasmosas do celebérrimo Barão de Münchausen ou a fiel e verídica narrativa das memórias extraordinárias e aventuras admiráveis daquele narrador imortal

(1891), Contos para filhos e netos [1889?]. Arroyo (1968: 175) acredita que ele tenha traduzido, mas sem receber o devido crédito, “muitos contos de autores alemães para os leitores brasileiros”.

7 Com várias informações sobre todo o Império, o almanaque em 1875 chegou a ter 1.700 páginas em sua edição

anual. Hallewell apresenta um exemplo, que interessa aqui por mostrar a influência de uma instituição como agente. Um dos poucos livros que essa editora vendia antes de Jansen, Aritmética, apenas entrou na lista do catálogo da editora em sua terceira edição. Segundo autobiografia do autor, C. B. Ottonni, apesar do sucesso das duas primeiras edições feitas por sua conta, ele ouviu boatos de que o influente Colégio D. Pedro II havia desaprovado sua obra e preferiu vender os direitos autorais a Laemmert em 1864, que passou a editar o livro, o qual manteve sempre ótimas vendas (Hallewell, 2005: 232-250).

primeira obra didática assinada por Jansen, Geografia física. Pela clara influência do Colégio D. Pedro II no incipiente sistema educacional brasileiro, faz muito sentido que Laemmert tenha se interessado em publicar Jansen. Além de jornalista e escritor, o educador estava no ápice de sua carreira, ocupando a cátedra de Língua e Literatura Alemã na instituição de ensino mais importante e respeitada do Império, detalhe que por si só, com certeza, garantia boa vendagem.

O prefácio da obra cervantina foi assinado por José Ferreira de Souza Araújo (1848- 1900), formado em medicina, um dos fundadores do periódico Gazeta de Notícias(1875-1947)8.

Apesar dessas credenciais, Araújo era muito menos célebre que outros prefaciadores de Jansen9.

A explicação pode estar na carta escrita em 1887 de Jansen para Rui Barbosa. Além de contar que era mal pago, descreve seu projeto de uma biblioteca juvenil, “para ensinar a ler a geração presente”, e modestamente afirma que não é águia, mas se contenta em adaptar as “boas obras que em original nos faltem” e informa que Araújo patrocinou sua adaptação do Quixote. Pelo tom da carta à Águia de Haia, disponível na íntegra em Arroyo (1968: 172-174), percebemos que eram amigos e se visitavam.

Carlos Jansen morre em 1889 e em 1901 a segunda edição de seu Quixote sai com o selo Laemmert & Cia, nome que os herdeiros dos irmãos germânicos deram à empresa em 1891.

Como dito antes, as obras da coleção juvenil foram reeditadas pela editora Minerva, dentro da coleção “Livros Básicos da Literatura Infantil”, apontando Terra de Senna como responsável pelas edições refundidas ou muito melhoradas. Carlos Jansen apenas é creditado nas primeiras edições, perdendo-se essa informação nas seguintes, algo que o velho Brummer talvez nem reclamasse, afinal suas adaptações foram readaptadas por Senna e, pelo menos no caso do Quixote o texto final foi extremamente modificado, perdendo toda a sua graça e elegância inicial.

8 Araújo inovou ao publicar textos de escritores como Olavo Bilac, Machado de Assis e Eça de Queiroz, no

primeiro suplemento literário da imprensa brasileira. Segundo Molina (2011), a publicação seguiu uma linha política liberal, apoiando os republicanos. Foi o primeiro jornal a fazer campanha para a abolição da escravatura e lutar pela liberdade religiosa (ritos africanos eram proibidos por lei).

9 Machado de Assis permite que um artigo seu entre como prefácio de Mil e uma noites; Sílvio Romero, colega de

Jansen no Colégio D. Pedro II e fundador da ABL, introduz Robinson Crusoé e Rui Barbosa prefacia seu Gulliver. Esse panteão de celebridades prefaciando obras de literatura infantojuvenil nunca mais se repetirá.