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2 OS AGENTES RESPONSÁVEIS PELOS DEZ QUIXOTES

2.4 AGENTES: AUTORIDADE E FAMA EM CADA EDIÇÃO

2.4.5 José Angeli, da guerrilha ao Quixote

José Angeli Sobrinho, nascido em Aratiba em 1944, faz esta história das adaptações do

Quixote voltar ao Rio Grande do Sul. Caçula de seis irmãos, ficava embrenhado na biblioteca

criada por seu pai lendo exemplares que trazia de suas viagens à Argentina como exportador de madeira. Ele cresceu lendo “clássicos da literatura universal em francês, italiano, espanhol e, claro, em português” (Angeli, 2007: 244). Morou no Paraná e, depois de se casar, muda-se para Alegrete em 1961. Mantém a família trabalhando como técnico em Contabilidade, e cursa a faculdade de Economia até o golpe militar de 1964.

Enquanto Orígenes Lessa se perdia por Castilla - La Mancha com a dupla cervantina, José Angeli Sobrinho, codinome Meirelles, lutava contra outros gigantes e logo ficaria bem mais machucado que nosso cavaleiro em suas desventuras.

As narrativas disponíveis sobre essa turbulenta época são ainda poucas, especialmente em relação a este grupo, pequeno e pouco conhecido, Movimento Comunista Revolucionário (a partir daqui, MCR)43. Foi preciso fazer o percurso de investigação descrito em nota para

descobrir como nosso poliglota e leitor voraz, aos 26 anos, se transforma em um guerrilheiro que entra em um armazém de caça e pesca e rouba todos os armamentos, histórias que não estão nos paratextos de suas obras.

O MCR foi fundado em 1970 por dois militantes expulsos do POC – Partido Operário Comunista: Antônio Pinheiro Sales e Paulo Walter Radtke. Os dois se juntaram com a organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), fato que levou os órgãos de inteligência a colocar o MCR como uma célula do VPR (Orvil, 1988: 729-757). O MCR existiu por apenas cinco meses, fez sete ações – duas que acabaram em fiasco – e era composto por dez ou onze membros44, extremamente jovens, que foram todos presos, torturados e, um dos mais jovens, suicidado…

43 Utilizamos a excelente pesquisa histórica apresentada na dissertação de Silva (2011), o livro reservado feito pelo

Exército brasileiro, Orvil (1988), até pouco tempo inédito, e a obra de Pinheiro Sales, Confesso que peguei em

armas; visando obter um panorama através de três visões, a acadêmica, e as narrativas dos dois lados do conflito.

Os dados foram também comparados com a edição do Comitê Pró-Anistia geral dos presos políticos no Brasil, editada por Maria Isabel Pinto Ventura em Portugal, 1976 e documentos da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Departamento Estadual de Ordem Política (DEOPS). Disponível em: <http://200.144.6.120/upload/Deops/OS/BR_SPAPESP_DEOPSOS000352.pdf>. Acesso em: 25 out. 2014.

44 Sales era professor, formado em Sociologia e estudante do quarto ano de Direito. Segundo Orvil, os outros

integrantes eram: Brilo Kan-Iti Suzuki, Cezar Cresqui, Hélio Zanir Sanchotene Trindade, José Angeli Sobrinho, Ulisses Arpini, Ivan Braescher Ferreira, Juarez Santos Alves, Mailde Cresqui e Ana Maria Rocha da Silva. Silva (2012) adiciona Paulo Bohn e César Cresqui e conta que, com exceção de Sales e Angeli, todos os outros eram jovens estudantes. César Cresqui tinha apenas dezessete anos. Trindade, provavelmente morto em sessão de tortura, foi sepultado como suicida. Estranhamente o nome dele não aparece na lista dos cidadãos a ser indenizados pelo Estado, nem tampouco o de Ferreira e Paulo Bohn e Suzuki, o único do qual não foi possível checar nada

É na terceira jornada45 do grupo que entra José Angeli Sobrinho. Segundo seu amigo

Cláudio Ribeiro, os dois abandonaram o PCB após a saída de Prestes, entraram no PDT e formaram parte da executiva estadual do partido. Sabemos que ele foi incorporado como novo militante do MCR, algo confirmado por sua declaração do DOPS de Porto Alegre, na qual diz ter sido aliciado por Radkte e Pinheiro Sales, mas, como o próprio Sales não dá detalhes de como isso aconteceu, fica a incógnita.

Angeli estava no grupo que realizou uma rápida e limpa operação, rendendo o casal dono da loja de caça e pesca em poucos minutos e levando vários tipos de armamentos e munição. Parece que, assim como dom Quixote, que antes de sair recupera as armas de seu bisavô, Angeli resolveu se armar. E nada melhor que uma loja de caça para conseguir o que precisava.

Um dia depois das comemorações de Sete de Setembro, forçaram o tesoureiro a abrir o cofre da SAMRIG, indústria produtora de óleo de soja, e levaram tudo, deixando mais uma vez panfletos explicando a ação (Silva, 2011: 747). As duas últimas ações do grupo foram executadas com êxito. Apesar disso, em dois dias quase todos os integrantes do MCR estavam presos. Os materiais, armamentos, panfletos, placas de carro e documentos falsos foram apreendidos, e os ativistas, enquadrados todos na rigorosa Lei de Segurança Nacional de 1969.

Pinheiro Sales (2007) conta o final dessa história. Foi o adaptador do Quixote quem ajudou Eder Simão Sader (futuro fundador do PT) a fugir pela fronteira antes de ser preso. Angeli foi barbaramente torturado, e quase perdeu um olho após um murro recebido no pau de arara.

O antigo companheiro de armas revela um pouco da personalidade de José Angeli. Era ele que tentava travar conversas com quem estivesse de guarda, geralmente jovens interioranos que pensavam que seriam hipnotizados pelos “terroristas comunistas” que estavam nas celas que vigiavam; Angeli puxava canções italianas, fazia brincadeiras e contava boas histórias – criando vários finais diferentes para as narrativas, tornando o cárcere mais suportável46. Ficou

sobre sua vida pós-guerrilha nem se está ainda vivo, como é o caso dos outros, exceto Angeli, que morreu sem saber de sua indenização. Edital do Estado de RS, publicado no Diário Oficial (16 ago. 2013). Disponível em: <https://arquivopublicors.files. wordpress.com/2013/08/edital-publicado-doe-16082013-pag-15-20.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

45 A primeira ação não foi bem-sucedida, um roubo ao Banco do Brasil de Gramado (26 jul. 1970). Depois ocorreu

outro assalto, ação armada ou expropriação, segundo a narrativa, a duas fábricas de cigarros (13 ago. 1970), dois grupos distintos atacando simultaneamente. Mas, conforme Silva (2011), apenas um dos planos deu certo.

46 “O Angeli era o companheiro que mais conhecia música. Que inventava brincadeiras engraçadas e que mais

estórias tinha para contar, valendo-se ainda do recurso de apresentar várias versões para cada uma delas. Dentro de pouco tempo, fomos proibidos de cantar!… Continuamos contando casos, trocando e comentando velhas experiências vividas, lendo o dicionário” (Sales, 2007: 89).

preso também no presídio da Ilha da Pólvora, desativado desde 1983, hoje sendo restaurado como ponto turístico.

Ao ser solto em 1973, mudou-se para Morretes, pequena cidade histórica do século XVII no litoral do Paraná, e trabalhou um tempo como agrimensor, ao lado de posseiros, grileiros, jagunços e outros agricultores (Miecoanski, 2012).

Curitiba foi a cidade que o acolheu como escritor. Lançou duas obras em 197947 e

roteirizou HQ para adultos na editora Grafipar. Também como freelance, colaborou para jornais, revistas, programas de rádio e agências de publicidade. E pelo que escreveu seu amigo dessa época curitibana, Angeli continuou, mesmo depois de tudo, uma pessoa alegre, e cercou- se da melhor safra de intelectuais de Curitiba, como Paulo Leminski e outros, com os quais se encontrava quase todos os dias48. Morreu em Morretes em dezembro de 2012.

De alguma maneira, alguém o indicou para que ele adaptasse a obra em 1985, e seu Dom

Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura até hoje é republicado pela mesma editora, Scipione49.

Na época era uma empresa jovem e estava começando uma bem-sucedida trajetória no ramo de paradidáticos.

A adaptação de Angeli foi um dos primeiros grandes sucessos da coleção Reencontro

Literatura50, pela qual foi contratado para adaptar outros livros dessa série Aventuras: Os três mosqueteiros (1994); Os miseráveis (1995); O conde de Monte Cristo (2001); Ilíada (2002); e Martín Fierro (1991), único livro de literatura infantojuvenil seu não mais republicado

atualmente. Essa série originou a coleção Reencontro Infantil, voltada para um público infantil, para a qual Angeli adaptou todas as versões acima (exceto o Martín Fierro), inclusive o seu

Quixote.

47 A cidade de Alfredo Souza (1979/2007), Prostituta por opção – Amanhã não leremos jornais (1979) e O sino

da madrugada (2011). Também escreveu para o jornal Diário de Notícias, revista Atenção, para programas de

rádio e agências de publicidade. Ver mais na resenha de Henrique Chagas (2007), Henrique. “Livro é um ‘faroeste’ sobre colonização do Paraná” (Curitiba, 13 jul. 2007). Blog Verdes Trigos,. Disponível em: <http://www.verdestrigos.org/agora/2007_07_08_archive.asp>. Acesso em: - 02 jun. 2015.

48 Cláudio Ribeiro (2012) é o único que faz referência à sua adaptação do Quixote, com uma ilustração, e termina

da seguinte maneira: “Saiu da sensatez que sempre protege, e partiu sem resistência à loucura que arrebata porque somos inventores da arte. Que às vezes se confunde com a vida. Vai meu Dom Quixote e, como ele mesmo diria: Sonhar o sonho impossível… [letra da música da peça Impossible Dream, adaptada por Chico Buarque e Ruy Guerra]”. Brasil Cultura, Curitiba, 8 dez. 2012. Disponível em: <http://www.brasilcultura.com.br/sociologia/jose- angeli-sobrinho/>. Acesso em: 10 dez. 2014.

49 “A editora Scipione é vendida em 1999 e junto com a Ática forma a Abril Educação, parte do Grupo Abril e o

grupo francês Vivendi Universal Publishing. Seu catálogo oferece mais de 750 obras paradidáticas e cerca de quinhentos títulos didáticos. Já receberam prêmios como Jabuti, FNLIJ e Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). Juntamente com a Editora Ática, a Editora Scipione forma a Abril Educação, líder no mercado de livros didáticos do setor privado.” Site Scipione. Disponível em: <http://www.scipione.com.br/SitePages/Colecao.aspx?cdColecao=369&Exec=1>. Acesso em: 12 out. 2014.

50 Além de Angeli, assinam obras para a coleção: Tatiana Belinky, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Marilise

Rezende Bertin, Leonardo Chianca, Laura Bacellar, José Louzeiro, José Arrabal, Joel Rufino dos Santos, Edy Lima, Edla Van Steen, Carlos Heitor Cony e Ana Maria Machado, entre outros menos conhecidos.