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Leonardo Chianca, de adaptador profissional a editor

2 OS AGENTES RESPONSÁVEIS PELOS DEZ QUIXOTES

2.4 AGENTES: AUTORIDADE E FAMA EM CADA EDIÇÃO

2.4.8 Leonardo Chianca, de adaptador profissional a editor

Leonardo Chianca nasceu em São Paulo em junho de 1960 dentro de uma família literata78. Para completar o círculo, casou-se, em segundas núpcias79, com Márcia Leite,

também escritora de literatura infantojuvenil. Escreveu e produziu peças radiofônicas, e começou a escrever inspirado em poetas como Ferreira Gullar, Drummond e Pessoa, além de contistas como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu e especialmente Cortázar, a quem homenageou ao nomear sua empresa de Edições Jogo da Amarelinha, que edita e produz livros na área educacional para editoras de todo o país, inclusive o Quixote de Rosana Rios, como veremos aqui.

Disse em sua entrevista (Anexo A) trabalhar com livros desde os dezoito anos e, sem esclarecer se terminou algum curso superior, contou ter feito “uma trajetória clássica, iniciando como revisor, depois redator e editor”, publicando seu primeiro livro, O menino e o pássaro, em 1992.

Chianca, assim como a próxima adaptadora, Rosana Rios, é o que chamamos de escritor profissional de literatura infantojuvenil. Desde que lançou seu primeiro livro, já publicou trinta obras, quinze delas são adaptações80. Estreou com Shakespeare em 1997, convidado pela

77 Portal Terra. Disponível em: <http://diversao.terra.com.br/noticias/0,OI900699-EI6425,00-

Walcyr+Carrasco+confirma+presenca+na+Bienal+do+livro.html>. Acesso em: 26 set. 2014.

78 As poucas informações recolhidas sobre o escritor e editor Leonardo Chianca foram confirmadas em entrevista

concedida por e-mail em agosto de 2014, integralmente disponível no Anexo, portanto suas citações estão referenciadas na mesma, assim como ocorrerá nos próximos autores, todos entrevistados por nós. Ele é sobrinho- neto do longevo advogado, jornalista e escritor Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), membro da ABL, e sobrinho da escritora de literatura infantojuvenil e educadora Maria Lúcia Amaral.

79 Sua primeira esposa foi uma argentina, nascida em Balcarce, província de Buenos Aires.

80 Pela Scipione: Romeu e Julieta (1997), Hamlet (1999), Muito barulho por nada (1999), Odisseia (2000), Ilíada

(2001), Os doze trabalhos de Hércules (2002) e Moby Dick (2004). Pela Escala Educacional: O conde de Monte

Cristo (2005), Os três mosqueteiros (2005) e Otelo (2005). Pela editora DCL, além do Quixote, também adaptou: Drácula (2006), Frankenstein (2007) e O mercador de Veneza (2008).

editora da Scipione, Samira Youssef Campedelli, hoje professora da ECA. Em sua entrevista, descreve como se sentiu temeroso ao aceitar o encargo, pois estaria “mexendo no texto de um Shakespeare”, algo que Chianca realmente fez e bastante. Suas cinco versões de peças do dramaturgo inglês partem de uma “premissa fundamental”: “mudança de gênero textual, de dramatúrgico para narrativo – de uma peça dividida em atos e cenas para um romance dividido em capítulos […] Essa questão, por si só, já justificaria uma adaptação”.

Por seu depoimento, deduzimos que esse adaptador domina bem o espanhol, (“não consigo ler Cortázar em português”), ao contrário da língua inglesa (“eu só leio bem em espanhol”), inclusive assume não ter consultado matrizes nessa língua ao adaptar as cinco peças de Shakespeare, optando por várias traduções em espanhol e português como fonte.

Depois de assinar nove obras, todas encomendadas pela Scipione, “com alguma negociação na escolha dos títulos”, passou a ser um nome reconhecido. Voltando à questão da

grife, o autor passou não somente a escolher quem e o quê adaptar, mas também foi contratado

pela editora Escala Educacional em 2004, para dirigir a recém-criada coleção de clássicos, cujo primeiro volume foi a adaptação de Rosana Rios, recrutada por Chianca.

Essa fama de bom adaptador de livros com boa vendagem81 proporcionou-lhe uma

grande liberdade e também uma deferência por parte dos editores, que o consultam e aceitam suas sugestões, como pode ser visto em suas declarações sobre sua autoridade. Note-se que ele confirma um dos resultados desta pesquisa, sobre retraduções lançadas em efemérides:

Sobre a escolha do Dom Quixote, a ideia surgiu a partir de uma longa lista de títulos que elaborei com a DCL, visando adaptá-los todos (uns dez ou quinze… ). Decidimos começar pelo Dom Quixote por ser uma obra emblemática […] e também devido às comemorações. […]

Para a adaptação de Dom Quixote, na DCL, tive total liberdade para realizá-la. Eu coloquei minha perspectiva sobre o tipo de adaptação que faria e a editora aceitou. Como fui convidado devido à minha experiência anterior (sete adaptações na Scipione), levei meu know-how para lá.

Mais adiante, ao ser perguntado sobre a autoria dos paratextos no final do Quixote, disse que, por ter iniciado a coleção da DCL82, sugeriu um formato e uma padronização para esses

textos finais, escritos pelo jornalista e historiador Claudio Blanc, com suas recomendações. Obviamente o adaptador conhece outras obras de Cervantes, partiu dele a sugestão de colocar

81 Chianca foi extremamente generoso e aberto em sua entrevista, apesar de mais de uma vez não se ater ao

perguntado, respondendo temas não explícitos na entrevista, ou simplesmente não respondendo parte da questão. Revelou, entre outras coisas, dados dificilmente conseguidos, como volume de vendas e tiragens: “As minhas adaptações na Scipione vendem muito bem, algumas em torno de quase mil exemplares por mês”. No caso específico de seu Quixote, informa que para o PNBE “foram impressos 29 mil livros, se não me engano. Para o mercado privado (adoções em escolas e livrarias), deve ter vendido uns 10 mil ou 15 mil livros”.

82 “Pela DCL, queriam que eu fizesse mais umas dez adaptações, mas não tenho conseguido parar para escrever

um trecho do prólogo das Novelas exemplares no paratexto de sua adaptação. As imagens foram selecionadas com a ajuda do adaptador. Sobre a ausência de notas, está convencido de que em adaptações para crianças “as notas são proibidas”, mas aceita o uso em livros para jovens ou jovens adultos; classificando portanto sua versão do Quixote para um público leitor mais jovem que a própria classificação da editora e das escolas – sexto ou sétimo ano do Ensino Fundamental.

Antes de passarmos para os detalhes sobre seu processo adaptativo ao escrever sua versão do Quixote, é interessante verificar sua opinião sobre o ato de traduzir e adaptar, posição que o autor explica muito bem em suas próprias palavras: “o tradutor é um adaptador e vice- versa. E em última instância, ambos são também autores (a própria Lei de Direitos Autorais vê assim)”. Na mesma resposta, Chianca confessa que sua vida é mais fácil que a de um tradutor, posicionando-se como um adaptador, em oposição a um tradutor, baseando-se em sua liberdade criativa83.

O curioso é que logo no início da entrevista, ao contar sobre seu processo adaptativo, Chianca assegura que busca respeitar e imitar o máximo possível o estilo do autor, e, apesar de não condenar apropriações, esclarece não utilizar essa técnica em suas versões, e menciona o humor no caso do Quixote:

Nas minhas leituras iniciais de um texto a ser adaptado, uma meta é respeitar o estilo

do autor, o máximo que for possível. Nesse sentido é como uma tradução: apesar de o tradutor ser um novo autor(ou coautor) da obra, ele deve se ater ao que já está criado, e tentar macaquear o estilo do autor o quanto for possível. O adaptador, idem.

[…] No caso do Cervantes, busquei perseguir o humor dele, ponto que considero fundamental (se consegui ou não, é outra história…) (itálicos nossos, colchetes e parênteses do entrevistado).

Ao ser perguntado sobre a questão da autoridade do adaptador/tradutor como segundo autor, reafirmou sua responsabilidade sobre o texto final, inclusive de torná-lo legível e agradável à leitura, mesmo que isso signifique não seguir o texto fonte, se este estiver mal

escrito, repetindo mais uma vez a frase destacada abaixo:

No meu caso acredito ser um adaptador com autoridade sobre o texto resultante.

Acredito que todo tradutor e/ou adaptador seja também autor, no sentido de que

reescreve o texto, para o bem ou para o mal, conforme sua competência, suas escolhas e a edição que o livro recebe. […] Quando você pega um texto mal escrito para traduzir, é muito difícil mantê-lo mal escrito na sua própria língua. Afinal, acredito,

todo tradutor é também um escritor (itálicos nossos).

83 “O tradutor tem de escolher uma edição estabelecida e mandar bala. O adaptador tem mais liberdade, pode

Mais adiante, Chianca sente necessidade de explicar sua posição como segundo autor, deixando clara sua relação subserviente aos autores dos clássicos que escreve, como adaptador e não como tradutor, fazendo questão de frisar novamente:

Quanto a sermos (considero-me um adaptador e não necessariamente um tradutor) um “segundo autor”, como você sugere ou suspeita, pode ser ou não. Em certo ponto, creio que sou um segundo autor, mas me sinto arrogante ao dizer isso, pois não posso (nem quero) me comparar aos autores originais das obras que adapto. Sinto que sou

coautor do texto resultante, mas não sou criador. O autor original é o criador e autor

do texto original; o tradutor ou adaptador é apenas o autor do novo texto gerado, alguém que poderá permitir que aquela obra venha a ser conhecida de alguma forma. Pode parecer óbvio, mas é bom esclarecer o que sinto em relação a essa questão (aspas do autor, itálicos nossos).

Essa última afirmação é algo contraditória, pois surge logo após o entrevistado demonstrar uma franca simpatia pelas adaptações, dois parágrafos antes, na mesma resposta, na qual defende as reescrituras como uma forma de manter obras clássicas vivas84.

Ao contar sobre como adaptou o Quixote, obra que classifica, assim como os outros clássicos, dentro do grupo de escrituras longas que devem ser reduzidas, cortadas, diferentemente das peças shakespearianas, que possibilitam o uso da história inteira em uma adaptação (“justo num formato de um texto de cem, cento e poucas páginas”), e ele não precisa escolher o que contar, somente como. No caso do livro de Cervantes, teve de se perguntar quais aventuras interessariam ao jovem leitor, além da aventura dos moinhos de vento85.

Assim como no caso das adaptações de Shakespeare, Chianca descreve suas referências e também suas diversas fontes, edições críticas em espanhol, traduções integrais e adaptações prévias, nas quais estranhamente não cita Lobato, que, por ter nascido em 1960, certamente circulava junto com o mencionado Lessa quando ele era criança:

No caso do Dom Quixote, usei algumas edições integrais em espanhol, principalmente devido às notas, que me ajudavam a compreender melhor o texto. Usei também a tradução do Sergio Molina […]. Li a boa adaptação do Gullar, a quem amo como poeta. Tentei ler algumas outras adaptações, como a do Orígenes Lessa e a do Angeli,

84 “Aliás, há um argumento no mínimo curioso utilizado por alguns poucos (cada vez menos, por sorte) intelectuais

‘puristas’ que se dizem contra adaptações (o que será que quer dizer ‘eu sou contra adaptações’? É tão estranho…). Costumo perguntar algo como: ‘E quem vai ler Homero nos dias de hoje, se não for um estudioso maluco da academia – se é que ele de fato lê tudo…?’. E a pessoa costuma dizer: ‘Então não leia…’. Pergunto: ‘E deixa a obra morrer?’. Ela diz ‘Sim…’, mas costuma ficar corada com a patetice dita. Se quero avacalhar, sigo adiante e pergunto se ela não lê autores em idiomas que desconheça, já que o texto terá sido reescrito, modificado, adaptado ao português…” (marcas do autor).

85 “No Dom Quixote também busquei alguma estruturação da narrativa, mas não tive competência para deduzir ou

construir por mim mesmo. Dom Quixote entra no grupo de textos cujas adaptações reduzem o tamanho do original […]. Assim, me perguntei: o que interessa a esse leitor jovem para quem vou escrever? Foi assim que decidi contar algumas das saídas de Quixote, algumas de suas aventuras. E quais dessas aventuras interessam a esse leitor? Claro que os caminhos eram inúmeros. Na minha cabeça, a principal delas é a dos moinhos de vento; se tivesse de representar apenas uma, seria essa. E quais mais iria narrar? E assim fui construindo minha armadura” (itálicos do entrevistado).

mas não gostava do tom e não segui adiante para não me contaminar pelo que não queria pra mim. Não me lembro de outras para comentar…

Chianca explicita sua maneira de trabalhar, a pesquisa que elabora antes de realmente começar a escritura86 e descreve a dificuldade em iniciar o processo, que no caso do Quixote

durou cinco meses, “pois implica acertar o tom da narrativa, a linguagem, a fala de cada personagem, o ritmo, o estilo”, e que, em alguns livros, como o de Cervantes, opta por escrever o início de sua versão para o final87.

Chianca volta a reivindicar a liberdade do reescritor, “mas procurando sempre respeitar o estilo”, ao explicar o inédito batismo do ruço como Malhado88. Infelizmente o adaptador não

ofereceu explicações para outras mudanças que fez, bem mais radicais, que chamam a atenção por sua originalidade, como o cura que assume o disfarce de donzela e se transforma na princesa Micomicona; ou a inexplicável atração de Maritornes – criada da estalagem de Palomeque, mal representada na imagem, ilustrada como uma velha horrível, quase uma bruxa – por Sancho Pança89.

Ao tocar no assunto dos direitos autorais, os quais Chianca detém desde o início de sua carreira, ele nos suplementa com importantes detalhes, e passa a impressão que os supõe como direitos do adaptador, informação que colide com aquela que obtemos de sua contratada, Rosana Rios, que, como veremos ainda neste capítulo, não conserva os direitos de seu Quixote.

Você me pergunta também sobre a questão dos direitos autorais [D. A. ]. Trabalhar com textos em domínio público abre essa margem para a editora que publica, permitindo o pagamento de D. A. Na DCL, recebo 10% de D. A. sobre todas as vendas. Na ocasião da escritura, pagaram-me um valor de adiantamento na entrega dos originais, estratégia usada como estímulo; depois esse valor é descontado nas prestações de contas futuras.

Nas adaptações que fiz para a Scipione, o D. A. é bem mais baixo, de 2%, mas, em vez de adiantamento, havia um fee, um bom pagamento feito na entrega e que não era descontado depois. […] Na Escala Educacional, o D. A. de 2% foi copiado da Scipione, mas foram mais mesquinhos, e em lugar de fee havia adiantamento mesmo.

86 “Começo o garimpo de exemplares que usarei para a empreitada, juntando e comprando livros. Inicio a pesquisa

e à medida que avanço, vou tomando anotações sobre tudo que me pareça relevante: contexto histórico da obra e do autor, personagens, enredo, curiosidades, interpretações diversas, polêmicas, cenário, ambientação, vestuário… e vou mergulhando em detalhes.”

87 “Às vezes, não consigo começar pelo começo, como foi o caso do Dom Quixote, em que a última coisa que fiz

foi o primeiro capítulo, particularmente os dois ou três primeiros parágrafos, que considerava fundamentais. No original já são fundamentais; e na minha adaptação também queria que fossem. Escrevi e reescrevi os primeiros parágrafos muitas e muitas vezes […]. Em geral, na média, esse tempo deve ser de uns cinco meses, às vezes um pouco mais ou menos.”

88 Chianca é o único dos adaptadores deste corpus a dar um nome à montaria de Sancho, Malhado: “Faço para me

divertir um pouco, para dar algum toque extra, procurando sempre respeitar o estilo, ser pertinente com a obra”.

89 Bertin (2008: 122) analisa as adaptações shakespearianas do mesmo adaptador em sua dissertação e encontra,

assim como aqui, inexplicáveis inserções: “Chianca produz um texto com pequenas alterações e incorpora conteúdo ausente no texto de Shakespeare” e “A adaptação de Chianca traz muito do texto original, contudo tem uma estrutura estranha” (Ibid. : 119).

Ao final da entrevista, ao ser perguntado se a adaptação da obra cervantina havia tido algum impacto em sua carreira, respondeu que especificamente o Quixote não, mas sim o conjunto de sua obra: “Creio que me tornei um adaptador reconhecido no mercado. Recebo muitos convites para escrever novas adaptações; o problema é que não tenho conseguido conciliar a escrita com a vida de editor”. Realmente não encontramos nenhuma obra sua lançada desde 2008. Atualmente vive muito ocupado entre as empresas, Edições Jogo da Amarelinha90

e a editora Pulo do Gato91, que fundou em 2011 com a esposa Márcia Leite92, na qual diz

estarem investindo sua “longa expertise na área” e todo o seu tempo. Leonardo Chianca parece percorrer o caminho inverso de Lobato, deixando de lado sua carreira de adaptador para se transformar em editor, especializado em literatura infantojuvenil, é claro.