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CAPÍTULO 2 A FUNÇÃO TERAPÊUTICA DO TEATR

2.3 A Teoria moreniana dos papéis

2.3.1 Catarses e teatro terapêutico

O termo catharsis é uma palavra grega que significa purificação, purgação e o seu significado foi mudando com o tempo e sendo utilizado por diversos teóricos nos campos da filosofia, do teatro e da psicoterapia. Os médicos gregos, para expurgar os miasmas, utilizavam dois tipos de operadores, uns físicos e outros constituídos de “palavras sagradas”. Platão considerava a palavra como possuidora de aspectos curativos e catárticos, enfatizando o valor terapêutico do logos. Segundo ele, é a palavra que tem potencial para realizar o ato de persuasão, conseguindo a purificação da alma por meio da harmonia.

Aristóteles utilizou o termo para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia. Para esse filósofo, a tragédia é a imitação de uma ação virtuosa e realizada que, por meio do temor e da piedade, suscita a purificação de certas paixões. A plateia se identifica com um dos personagens, com o herói trágico e através desta identificação purga-se de males, esquecendo seus próprios problemas em detrimento do que foi visto no palco. De acordo com Moreno (1993, p.423):

[...] Aristóteles sustentou que a catarse purifica a mente dos seus espectadores, colocando um espelho diante deles, gerando temor e piedade, libertando-os da tentação de cair no abismo da loucura e da perversão.

O poder do logos na ótica de Platão está implícito nesse conceito aristotélico. Os médicos gregos também falaram de operadores físicos, Moreno de certo modo, utiliza-se do instrumental cênico com essa finalidade ao afirmar que uma total espontaneidade será plenamente alcançada no teatro terapêutico. Embora seja difícil esquecer as imperfeições estéticas e psicológicas no ator normal, é mais fácil tolerar imperfeições e irregularidades numa pessoa anormal, num paciente.

A teoria moreniana ainda vai estabelecer diferenças entre uma catarse passiva ou estética. Essa se produz no espectador quando está diante da representação, no cenário de uma obra teatral, que terá um argumento fornecido por um autor e que exigirá uma ressonância

afetiva com o que nela acontece. Diferentemente, na catarse ativa ou ética, há um envolvimento maior que não ficará restrito aos espetáculos, mas que atua no sujeito produzindo modificações de ordens pessoais e sociais.

Sigmund Freud retomou o conceito aristotélico transportando-o para o consultório, achando que, caso se conseguisse dar vazão aos afetos contidos – utilizando-se da expressão verbal – seria possível proporcionar um caminho resolutivo para os pacientes. Na ótica psicanalítica, a catarse ab-reativa suscita a possibilidade de evocar e reviver os acontecimentos traumáticos provocando uma descarga dos efeitos patogênicos.

A concepção freudiana, seguindo os passos de Platão, prioriza a palavra como norteadora do movimento catártico. O paciente, com ajuda das análises em cima do seu discurso, traz à tona elementos inconscientes, revivendo o trauma e utilizando-se do logos, pode torná-los conscientes.

No psicodrama, a personagem passa a ser o paciente e o caráter fictício do mundo do dramaturgo é substituído por uma estrutura desse paciente, seja esta real ou imaginária. Moreno devolve o conceito ao palco e utilizando-se de ferramentas teatrais, a palavra, o discurso, pode se transformar em cenas. A cena desenvolvida surgiu através de manifestações, verbal ou não, do outro.

Ao ser dramatizado, o objetivo não é somente estético e sim a busca de um entendimento, de uma catarse. O espectador passa a ter potenciais de expectador, ela passa a ter expectativas com relação ao que está sendo dramatizado, uma vez que as cenas podem ter relações diretas com a sua individualidade.

A teoria psicodramática considera a catarse como um fenômeno que se produz juntamente com a realização espontânea e simultânea de todo um processo de criação, já que vai se desenvolvendo com a própria dramatização, para que a partir dela, a cena traumática possa ser integrada à vida do paciente. Para o pai da psicanálise, a palavra é a desencadeadora do movimento catártico; para o mentor do psicodrama, a cena detém esse potencial.

Essa potencialidade do palco e da palavra é repensada em Brecht. Ele considerava que o teatro tem outras funções além da estética. O dramaturgo via a plateia não como elemento passivo a quem se deveria distrair por algumas horas, mas sim como agentes sociais que tinham um compromisso político com o mundo em que viviam. Para ele a catarse não deveria ser apenas um “expurgar de sentimentos encobertos” e sim uma possibilidade de reação diante dos acontecimentos históricos.

A catarse para Brecht deveria ser algo que se perpetuasse além da sala de espetáculos: o público deveria ter empatia com a trama mostrada, porém não a ponto de cegar o quanto ele próprio era co-responsável pelo o que estava “errado” no mundo em que vivia. Brecht fala-nos de uma catarse de reação, em que os integrantes da plateia eram considerados protagonistas de suas próprias vidas. Aqui há um ponto de interseção com a filosofia moreniana, que acredita que cada um tem o poder de modificar sua existência e com isso modificar o ambiente a sua volta e quiçá, a sua rede social.

Nas análises de Rosa Cukier (2002, p.42), outra catarse possível é aquela proporcionada pela experiência religiosa. Nessa, a purificação produz-se no próprio indivíduo, sua vida pessoal torna-se um espetáculo público, é uma catarse ativa, um resgate da ação espontânea de um ou diversos membros do grupo. Nela há um valor ab-reativo da dramatização que é incorporado à vida do indivíduo.

Em Aristóteles e em Brecht, o processo de realização efetua-se no palco, graças a um personagem simbólico. Na experiência religiosa, o processo é subjetivo e tem lugar na pessoa que busca a catarse. Esses desenvolvimentos, que seguiam caminhos independentes foram sintetizados pelo conceito psicodramático de catarse.

Ao sintetizar esses conceitos, Moreno criou o termo catarse de integração, que é a mobilização de afetos ocorrida na interrelação de dois ou mais participantes de um grupo terapêutico, durante uma dramatização. Para Cukier (Ibidem, p.47):

dos gregos conservou-se o drama e o palco, da experiência religiosa o espectador enquanto autor de seus processos. A abordagem psicodramática vai lidar com problemas pessoais, principalmente e visa à catarse pessoal.

Essa catarse possibilita a um ou mais desses participantes a clarificação intelectual e afetiva das estruturas psíquicas que os impedem de desenvolver seus papéis, abrindo-lhes novas possibilidades existenciais. Tais possibilidades mudam o foco do teatro moreniano. A partir do teatro da espontaneidade, o médico romeno começou a descobrir um sentido terapêutico para as encenações.

De acordo com Menegazzo (1995, p.46), falar de catarse de integração é falar de atos de compreensão, possibilidades de transformações que Moreno comparou com novos nascimentos. Esses fenômenos fomentam a liberação de papéis fixados facilitando assumir novas condutas, completando aspectos não resolvidos no modo de ser. A plateia ao se colocar e ser protagonista de suas cenas é responsável direta pelo desenvolvimento e pelas finalizações das mesmas.

Nessa mesma linha de conduta podemos estabelecer as possíveis catarses desencadeadas pelos teatros do brasileiro Augusto Boal. Uma cena é trazida a palco, há um envolvimento sentimental, um desencadeamento de uma catarse que não vai se restringir apenas a expurgar os males, mas a modificá-los. As cenas podem ser transformadas, a plateia é mobilizada para fazer as mudanças pertinentes.

Os teóricos aqui analisados desenvolveram e ampliaram o conceito da catarse aristotélica, que era o efeito do drama no público. Em Moreno e na experiência religiosa, o indivíduo torna-se inteiro, completando alguma etapa de seu processo de identidade, utilizando-se da palavra e de operadores físicos. Nos teatros de Brecht e de Boal, a plateia se identifica com um personagem, mas pode ir além dessa identificação, pode transformá-la e se transformar em agente modificador dela mesma e do seu momento histórico.