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Influências filosóficas e históricas no pensamento moreniano

CAPÍTULO 2 A FUNÇÃO TERAPÊUTICA DO TEATR

2.1 Influências filosóficas e históricas no pensamento moreniano

Para o biógrafo de Moreno, René Maurineau (1992, p.34) qualquer assunto que traga à baila a questão das influências filosóficas no pensamento do fundador do psicodrama, passa pelas vertentes do hassidismo e também pelas ideias do filósofo Martin Buber. Ambos eram de origem judaica e tiveram suas obras marcadas por forte influência da doutrina hassídica. Essa doutrina rompeu com a forma tradicional do culto. O diretor religioso não era um rabino e sim um “tzaddik”. Homem de virtudes exemplares, que se toma como modelo.

Com ele se estabelece uma relação pessoal. Para ser esse líder religioso se requeria uma personalidade criadora e uma forte capacidade de encontro, ele conduzia para o

divino, mais por irradiação humana do que por doutrina; o contato pessoal era mais forte que os textos. Para Benjamin Nubel (1994, p.57):

o hassidismo desloca o centro espiritual do mundo divino para o humano, propondo a doutrina do homem e não de Deus. O centro da atenção passa a ser o homem, sua existência, seus desejos, suas aspirações, seu amadurecimento religioso e moral e os mecanismos dessas realizações.

A doutrina esperava proporcionar aos judeus o conforto para as dificuldades e sofrimentos do destino. Continha uma nova concepção de Deus. Ela propunha substituir a relação vertical por uma horizontal, um Deus próximo e presente, que está em todas as coisas do mundo e que pode ser aflorado. A concepção dessa relação horizontal com Deus influenciou a filosofia de Buber e posteriormente, as dinâmicas terapêuticas de Moreno. Ao conceber o homem não apenas como criatura, mas como centelha viva do criador que pode e deve ser aflorada; a resolução dos problemas passa a ter neste homem as suas soluções.

Não são mais necessários os intermediários, sejam eles dirigentes ou instituições. O homem tem acesso direto ao Criador, pois esse não está longe em um céu olímpico ou no teto da Capela Sistina e sim dentro do coração de cada um. A concepção horizontal de Deus passa a ser uma concepção política no sentido que refaz o homem como um produto do processo criativo, negando a visão de um Deus punitivo e dicotômico, libertando as criaturas da visão de ser um simples joguete entre aquilo que é bom e o que não é. Também dá a este homem a responsabilidade pelos atos e pelas suas conseqüências.

Brecht, Buber e Moreno foram contemporâneos e viveram os horrores da guerra, ao verem cidades e impérios destruídos. O primeiro viveu na Alemanha pré-nazista; os outros dois, na cidade de Viena, lá estudaram e assistiram o germinar de suas primeiras ideias. Moreno saiu de Viena com aproximadamente 32 anos e foi para os Estados Unidos. Martin Buber, depois de Viena foi lecionar em universidades alemãs, só saindo do mundo germânico por ocasião da deflagração da Segunda Guerra Mundial. O filósofo acabou ajudando na estruturação educacional do recém formado Estado de Israel. O dramaturgo exilou-se em diversos países fugindo dos nazistas e acabou indo morar também nos EUA.

O filósofo utilizou-se da religião hassídica, da ideia de um Deus acessível; o dramaturgo de um teatro não tradicionalista, que levasse o público a reflexões sociais; o médico resolveu juntar uma coisa e outra e estabeleceu as bases de um teatro terapêutico. No seu livro Psicodrama da loucura, onde traça correlações entre Moreno e Buber, o psiquiatra José Fonseca Filho (1980, p.31) escreveu o seguinte:

Buber fala de duas formas básicas pelas quais se pode influenciar na formação da mente e na vida dos outros. Na primeira impõe-se a atitude e opinião de alguém sobre outrem. Na segunda, o indivíduo descobre e alimenta na alma do outro aquilo que reconhece em si como certo. Aquilo deve estar bem vivo no outro, como uma possibilidade entre possibilidades, uma potencialidade que apenas precisa ser expandida, não por meio da instrução, mas por meio do encontro, da comunicação existencial, entre aquele que encontrou a direção e aquele que a está buscando.

Essas colocações valem também para a psicoterapia e o teatro, onde ambos não perdem esta noção de aprendizado, um aprendizado do viver, do viver em relação a outrem. O professor, o terapeuta e o diretor de teatro são muito mais efetivos quando estão simplesmente ali, quando são propiciadores de tais encontros.

Instrução intelectual de forma alguma é sem importância, mas só é realmente útil quando surge como expressão de uma verdadeira existência humana. Os bons resultados dependem da atmosfera e esta é criação conjunta. Tudo o que se passa neste encontro pode ser educativo, pois frutífera não é a intenção, mas a relação estabelecida entre os sujeitos.

As relações estabelecidas em tempo de guerra e de instabilidade política são alteradas. Moreno e Buber foram filhos da modernidade vienense em um momento onde a ascensão cultural foi paralela à decadência histórica. O então Império Austro-húngaro26 era

um conglomerado de várias nacionalidades, a ponto de o Hino Nacional ser cantado em 13 línguas. Nos registros históricos de 1867 a 1914, a família imperial conheceu a desgraça e a decadência. Só neste período, três herdeiros foram assassinados e a imperatriz cometeu suicídio. Um golpe definitivo para a dinastia dos Habsburgo.

A população de Viena quintuplicou em menos de 80 anos. Na virada do século, mais de dois terços de seus habitantes eram imigrantes e formavam a camada culta de médicos, advogados, jornalistas, banqueiros e comerciantes, em que 50% eram judeus. Embora pobre, o pai de Moreno também era um comerciante judeu que fazia parte desse grupo e que, apesar de nacionalidade turca, tinha vindo da Romênia, que atravessava uma grave crise econômica.

As descrições das condições de vida em Viena apontam para uma acentuada condição de miséria dos trabalhadores, um alto índice de alcoolismo e prostituição, com sérios problemas de saúde pública e moradia. Ao lado de tudo isto florescia uma vida cultural viva e

26 Situação política descrita pelo biógrafo de Moreno sobre Viena nas primeiras décadas do século XX (in Maurineau, 1992, p.143-152).

palpitante presente na literatura, música, arquitetura, teatro, ciência, antecipando uma modernidade que serviu de modelo à Europa.

Neste caldo de cultura, o jovem médico se propôs a trabalhar com prostitutas, a quem ajudou a formar uma associação e posteriormente, com refugiados tiroleses nos campos da Primeira Guerra, que são indícios de formação de um espírito contestador e uma simpatia pelas artes teatrais. Uma visão de utilizar o instrumental cênico para propiciar mudanças significativas naqueles que iam assistir aos espetáculos. Para Moreno (1982, p.76):

[...] o mais antigo e o mais numeroso proletariado da sociedade humana se compõe de vítimas de uma ordem mundial insuportável; é o proletariado terapêutico. Ele se compõe de pessoas que sofrem de várias formas de miséria: psíquica, social, econômica, política, racial e religiosa. E fico a pensar como posso ajudar a toda esta gente.

Momentos históricos contemporâneos, momentos de uma Europa agitada por movimentos culturais vanguardistas, mas também por líderes inescrupulosos que levaram o continente e a humanidade a duas guerras. A sensibilidade destes homens os levaram a perceber a importância de um teatro engajado com estes momentos políticos. Brecht, apesar de contestar o teatro tradicional, manteve as mesmas dinâmicas do teatro burguês: plateia, palco, atores e texto. O seu teatro épico trouxe um deslocamento do foco teatral para os espectadores. Moreno também deslocou esse foco para a plateia, mas quebrou a estética cênica, uma vez que encontramos espectadores com potenciais de autores e atores.