• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1. INFÂNCIA E ADOLESCENCÊNCIA: TRAJETÓRIAS E TRANSFORMAÇÕES TECIDAS NAS RELAÇÕES SOCIAIS E INTERPESSOAIS

1.2. Infância e Adolescência: da invisibilidade para o avanço dos direitos

1.2.1. A categoria social de estudo

Da passividade de ser, de receber e de obedecer, a infância percorreu longo caminho até ser percebida com capacidade de expressão e de manifestação de vontade. Embora atualmente este “reconhecimento” esteja sacramentado em várias legislações, considerando-se a brasileira e outras em nível internacional, bem como o mesmo esteja em ebulição e redescobertas em algumas áreas das ciências como a sociologia da infância, ainda é bastante recente esta mudança nos padrões para se definir, delinear programas públicos, conceituar e respeitar a criança como cidadão de direitos.

Segundo Sarmento (2005) e Marchi (2009), a sociologia começou a intensificar e a especificar os estudos da infância na década de 1990, passando a considerá-la como uma categoria da estrutura social. Até então, o eixo de estudo focava-se nas relações dos grupos socializadores com os quais a criança mantinha sua dependência, tais como a família e a escola. Quando a infância passa a ser vista como parte destes grupos, cuja identidade se constrói nesta interação e, portanto, permanece atingida pelos mesmos problemas, tem-se

34

um novo paradigma impulsionado pelos estudos realizados nos EUA e na Europa. No Brasil, segundo Marchi (2009), esta nova disciplina é recente. Surgiu vinculada à Sociologia da Educação, em grande parte em razão do rompimento que promove em relação aos conceitos clássicos de infância, criança e socialização, elementos-chave nos estudos pedagógicos12.

Sarmento (2005) define com clareza a proposta deste campo de estudo ao salientar que a sociologia da infância, como tem sido denominada,

[...] propõe-se a constituir a infância como objecto sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para eles. Porém, mais do que isso, a sociologia da infância propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vista que toma as crianças como objecto de investigação sociológica por direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada. A infância é concebida como uma categoria social do tipo geracional por meio da qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura social. (SARMENTO, 2005, p.361)

Tal reflexão nos permite observar que a infância não pode ser vista fora da estrutura social que está inserida, tanto na dimensão intrafamiliar, quanto na dimensão ampliada da sua interação com as instituições sociais, na medida de seu desenvolvimento, sendo que as condições sociais e os espaços que ocupam as diferenciam. Sua origem contribui para o amplo leque de possibilidades para que possa vir a ter um desenvolvimento sadio e equilibrado, estudar, brincar, de ter uma alimentação adequada e satisfatória, receber cuidados devidos, entre tantos outros fatores que a individualizam e sinalizam sua condição.

Os países definem as diferenças em relação às possibilidades das quais crianças desfrutam em termos de legislação, capacidade de proteção e desenvolvimento socioeconômico, porém, tais diferenças também se fazem em um mesmo país, em um

12 “Sociologia da Infância” é a denominação que os novos estudos sobre a infância recebem no campo de língua portuguesa (decorrente de sua denominação em língua francesa sociologie de l’enfance). No campo anglófono, esses estudos são conhecidos como the social studies of childhood”. (MARCHI, 2009, p.240).

35

mesmo Estado e em um mesmo território de pertencimento. No entanto, como ressalta Sarmento (2005, p.301), “para além das diferenças e desigualdades sociais que atravessam a infância, esta deve ser considerada, no plano analítico, também nos factores de homogeneidade, como uma categoria social do tipo geracional própria”.

O autor exemplifica esta homogeneidade ilustrando que crianças não votam, que em quase todos os países a escola é obrigatória, pelo menos durante a realização do primeiro ciclo, são seres em desenvolvimento, precisam de cuidados e de proteção jurídica, dependem do adulto para satisfação de suas necessidades básicas, e assim sucessivamente.

Este debate fica enriquecido com a reflexão da representação de uma categoria social que apresenta uma face de homogeneidade e, ao mesmo tempo, se diferencia por sua individualidade. Neste sentido, a sociologia da infância busca distinguir semântica e conceitualmente, a infância atribuída como categoria social do tipo geracional e criança que integra esta categoria como um ator sujeito social pertencente a um grupo social. Assim, para além da biologização da infância, no sentido de seu desenvolvimento físico e da psicologização, ampliam-se os espaços para a possibilidade da infância criar e modificar culturas.

Este foco vem sendo privilegiado na sociologia da infância, nas propostas de pesquisas etnográficas com crianças para que sejam ouvidas e manifestem seus desejos e opiniões nos contextos em que estão inseridas: “que os investigadores pensem nas crianças em contextos específicos, com experiências específicas e em situações da vida real” (DELGADO E MÜLLER, 2005, p. 353), “fazendo-as participar na produção dos dados sociológicos sobre suas maneiras de ser, sentir, agir e pensar” (MARCHI, 2009, p. 240), de modo que, neste contexto, a alteridade da criança passe a ser um diferencial.

Alteridade em relação à possibilidade efetiva de modificar, de transformar e de colocar em movimento mudanças, além de ser o agente causador destas, por suas manifestações verbalizadas, expressas nas brincadeiras, contidas nos modos de se relacionar com as demais crianças, de se socializar e de vivenciar esta socialização. De responder aos estímulos externos que recebe quando inicia sua socialização e também dos internos que se situam no plano da família e das pessoas adultas que estão em interação,

36

formando seu rol referencial13. Situações que devem facilitar a importância da percepção de sua individualidade e que, normalmente, devem ser observadas quando se quer aprofundar o conhecimento em relação à criança e suas formas de ser e de estar no mundo da cultura, da legislação, da educação, do lazer, do brincar, entre outros.

Observa-se, deste modo, uma mudança de paradigma que, de acordo com Marchi (2009, p. 239), ultrapassa a concepção vertical e unilateral de inserção da criança no mundo adulto rumo à concepção multidimensional, “na qual a criança é vista como um parceiro, um também agente de sua própria formação [...] da socialização de seus pares e, mais que isto, da “parentalização” que se estabelece a partir de sua presença na família”.

Em relação à “parentalização”, Javeau (2005) menciona os papéis dos “outros significativos” na vida da criança, compostos e desempenhados por uma multiplicidade de pessoas, citando padrastos e madrastas sendo que, contemporaneamente, devido aos novos arranjos familiares, também podemos acrescentar irmãos de diferentes pais na ampliação que se faz com a extensão da família em arranjos recombinados, sem esquecer que se insere nesse elenco, a questão de uniões homoafetivas, abarcando outro rol de “outros significativos” em interação com a criança. Esta situação [...] “supõe que reencontrar “uma alma de criança”, [...] das vias de passagem entre os universos adultos e os universos infantis, constitui certamente, atualmente, um desafio cada vez mais difícil de levantar”. (JAVEAU, 2005, p.387)

Esta multiplicidade indica que não é possível falar em uma “cultura infantil” e sim em várias que se formam e vão sendo construídas muito particularmente na vida de cada criança, o que nos permite afirmar que falar de infância é falar da pluralidade de ser criança e dos diferentes modos que crianças passam por esta fase da vida. Nem sempre o princípio idealizado de infância se concretiza no modo de ser criança em parcela significativa de crianças. Crianças aliciadas para a guerra e para o tráfico, forçadas ao trabalho infantil,

13 Mollo-Bouvier (2005, p.392) chama atenção para a importância de se transpor a clássica definição de Durkeim da socialização como um processo de assimilação dos indivíduos aos grupos sociais, para a “perspectiva interacionista que salienta a dinâmica das interações na aquisição de know-hows e insiste no vínculo entre conhecimento de si e conhecimento do outro, construção de si e construção do outro”. Marchi (2009,p.234) também faz referência à necessidade de se ultrapassar a concepção durkheimiana de socialização/educação assinalando a passagem criança objeto ou produto da ação adulta para a condição de ator de sua própria socialização. Segundo a autora, o esforço é o de revelar que, nos “papéis” de “filho” e “aluno”, a criança não é mero receptáculo de socialização numa ordem social adulta.

37

exploradas sexual e comercialmente, crianças espancadas, são alguns exemplos a partir dos quais podemos ver as práticas e as representações (sociais e adultocêntricas) imbricadas também em relação à sociedade, abrangendo desde as relações econômicas e seus impactos, até os estilos de vida da criança e do mundo adulto. Neste sentido,

[...] o grupo social das crianças participa dos fenômenos de dominação que concernem à sociedade inteira [...] com os efeitos do desenvolvimento biológico, dos efeitos do desenvolvimento simbólico (o que chamamos ordem cultural das coisas), dos efeitos do desenvolvimento das relações de poder, desde o microcosmo familiar até as bases propriamente políticas da sociedade, não se deve nunca perder de vista a dimensão social das combinações intersubjetivas. (JAVEAU, 2005, p. 388)

Podemos afirmar, desta forma, que a dimensão social das combinações intersubjetivas que individualiza a criança, nos dias atuais, pode ser bastante diferente em cada uma, em especial para aquelas que são violadas em qualquer um de seus direitos fundamentais. Deste modo, a identidade é uma questão estruturante. Nogueira Neto (2005), afirma que é na luta pela legítima identidade que a análise deve ser tematizada sobre quaisquer sujeitos sociais, inclusive crianças e adolescentes. Atribuída como um conceito estruturante que produz a subjetividade, este processo de constituição da identidade

[....] nos constroem como sujeitos sociais [...], procuram colocar-nos no lugar que nos é atribuído enquanto esses sujeitos sociais. As identidades são construídas, ativadas e reconstruídas, estrategicamente, na interação, pelo conflito, no processo de socialização de cada um, no processo de construção do seu projeto de vida. Elas dependem do reconhecimento dos outros atores sociais. Nascem da diferenciação, e não da reprodução do seu idêntico. A marca da identidade é o sentido de “pertença” a certas categorias ou a aspectos culturalmente significante da sua biografia pessoal. (NOGUEIRA NETO, 2005, p.23)

O autor ainda avalia que em cada momento histórico, identidades são mais ou menos dominantes e, por isso, mais midiáticas: embora a construção da identidade geracional seja recente na história, nas ultimas décadas estamos vivenciando a identidade cidadã da criança e do adolescente – “Quaisquer que sejam os seus marcos-limite, estabelecidos pelo direito, pela biologia, pela sociologia, pela psicologia, esses ciclos etários se destacam dos outros ciclos etários” (NOGUEIRA NETO, 2005, p. 24). Contudo, o autor lembra que esta identidade também é adjetivada pela dominação hegemônica do

38

mundo adulto que percebe a criança e o adolescente a partir do viés negativo (menores delinquentes, pobres abandonados, desnutridos, drogados, maltratados), estabelecendo “um processo de adjetivação que recalca e oculta a identidade do ser criança (ou ser adolescente) e sua essência humana, num processo claro de coisificação [...] de apartação e institucionalização, de inclusão-exclusora - formas diversas de desumanização” (NOGUEIRA NETO, 2005, p. 25). Deste modo, salienta a importância do fortalecimento de uma identidade infanto adolescente.

Corroborando esta questão, Sarmento (2005, p.365) analisa que a construção histórica da infância lhe atribuiu um estatuto social, cujas bases ideológicas e normativas produziram seu lugar na sociedade, contudo, “esse processo, para além de tenso e internamente contraditório, não se esgotou. É continuamente atualizado na prática social, nas interações entre crianças e nas interações entre crianças e adultos”.

O autor menciona que são partes integrantes desse processo, as variações demográficas, as relações econômicas e seus impactos nos diferentes grupos etários, as políticas públicas, bem como os dispositivos simbólicos e os estilos de vida de crianças e de adultos. O que nos auxilia a compreensão de que a geração da infância é uma contínua mudança e as variações dessas dimensões não decorrem sempre no mesmo sentido. As alterações provocadas pelos avanços tecnológicos é um exemplo. A era da informática e como consequência a inclusão digital, alterou significativamente o modo do brincar, produziu nova geração de brinquedos e acabou por desenvolver um tipo especifico de consumo no mercado que, segundo Sarmento (2005), traz impacto na composição de uma “infância global” consumidora dos mesmos produtos, mas que por outro lado, faz aumentar a assimetria condicionada ao poder de compra. Condição que produz distâncias entre crianças e adolescentes em razão da classe socioeconômica a que pertencem. Assim, um dos marcadores essenciais de diferentes infâncias é dado pela classe social que condiciona os desejos fabricados globalmente com as (im) possibilidades de os concretizar.

Mollo-Bouvier (2005) também analisa estes fatores e acresce em sua análise os diferentes tipos de “investimentos”, que rebatem desde a estruturação afetiva dos pais, perpassam a implementação de políticas públicas de proteção social e até as econômicas:

A criança é não apenas portadora de passado e de futuro, de esperança e de nostalgia, como também de investimento, em todos os sentidos do

39

termo: investimento afetivo que monopoliza tanto a afetividade do casal como a capacidade emocional da coletividade; investimento material, também, para preservar ou melhorar os bens ou a posição social da família; e investimento para a sociedade: a criança do demógrafo e a do economista permitem predizer o tempo de sobrevida de uma sociedade ou escalonar em longo prazo o problema do pagamento de aposentadorias ou das orientações das políticas orçamentárias. Assim, as políticas de saúde, de proteção social e de educação implementadas pelo Estado encontram um eco nas estratégias familiais que “investem” na saúde, na educação e nos lazeres de seus filhos. (MOLLO-BOUVIER, 2005, p.399)

Os lugares marcados pela infância na sociedade são, portanto, contraditórios e incoerentes. Esta questão permite a associação com as práticas educativas parentais que foram se aprimorando no compasso em que a sociedade começava a contemplar a diferenciação da criança do mundo adulto e em que, na contemporaneidade, tal prática educativa parental se expande para além dos pais, ao incluir a rede de parentesco mais ampla, a rede da vizinhança e o complexo dos arranjos e recombinações das famílias.

Nesse sentido, Montandon (2005) ressalta que o efeito do estilo educativo dos pais pode ser reduzido, anulado ou ampliado pelas interações da criança com outras pessoas e também pelo estilo educativo que a criança conhece na escola. Todavia, “tudo depende dos contextos e das situações. Ainda estamos longe de saber quais práticas são efetivas para que crianças e em que contextos” (MONTANDON, 2005, p. 501), mas por outro lado, não podemos esquecer que é possível enumerar algumas práticas educativas familiais negligentes e violentas sendo, algumas das quais, resultantes da negligência e da violência institucional que sofrem as famílias, construindo um ciclo vicioso com a reprodução intergeracional dos mesmos “problemas”. Esta temática será retomada no capítulo 4.

Deste caminhar de construção da infância como categoria social e sua representação no contexto macro, do imbricamento entre as fases da vida, o curso da vida e a demarcação desta etapa específica do desenvolvimento sem ser apenas uma “passagem”, podemos salientar que no Brasil, a sustentação legal para estes avanços se realizou com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por não ter se materializado linearmente e sem embates, é importante conhecer os principais aspectos do movimento histórico de construção deste instrumento inovador e gerador de várias controvérsias, bem como sua dimensão educativa em relação à criança e ao adolescente como cidadãos sujeitos

40

de direitos. Tais controvérsias ainda se mantêm nos dias atuais, mesmo depois de vinte e três anos de sua promulgação.

1.3. Os direitos humanos da criança e do adolescente e a historicidade do