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PRINCIPIOS PRIORIDADE ABSOLUTA PROTEÇÃO INTEGRAL

1.3.2. Estatuto da Criança e do Adolescente: marco de inovações

É possível afirmar que o ECA promoveu uma mudança no método, na gestão e no conteúdo, inovou em várias frentes ao inserir um sistema de garantia de direitos e a nova concepção de cidadania para a criança e o adolescente. Inovou ao definir um sistema participativo de formulação, controle e fiscalização das políticas públicas, não se resumindo, portanto, em um conjunto de leis isoladas. Deu vida aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e aos Conselhos Tutelares. Promoveu não apenas uma modernização de instrumentos jurídicos, mas alterou paradigmas e, sobretudo, promoveu uma mudança cultural ao gerar novos valores, novos procedimentos e condutas, ao oferecer princípios básicos (éticos e metodológicos), bem como diretrizes a serem seguidas por todos os órgãos e instituições públicas, privadas e do terceiro setor, que tenham por objeto o atendimento à criança e o adolescente.

Sua linguagem também foi inovadora ao marcar o rompimento com algumas categorias que se identificavam muito mais pelo lado negativo, a exemplo dos termos “menor”, que entra em desuso e passa a ser substituído por criança e adolescente; orfanatos por abrigos; menor delinquente por autor de ato infracional. Nesse sentido, trouxe mudanças conceituais significativas para romper com rótulos negativos. E, para respeitá-los como sujeitos de direitos, em especial porque sua condição não lhe é inerente e sim provocada pelo contexto socioeconômico, pela ausência de cuidados familiares, pela negligência dos serviços e programas públicos de atenção, retira da criança sua estigmatização, até então nomeada pejorativamente.

Sedimentou-se, assim, uma mudança de paradigma em relação à concepção da infância e da juventude, até então relegada a um segundo plano, para ganhar relevância e

19 Termo adotado na Declaração Universal dos Direitos da Criança (Princípio 1º) e utilizado por Wanderlino Nogueira Neto (2005) ao salientar a necessidade de cuidado integrado, de modo a diferenciar das categorias de situação de risco e vulnerabilidade social que, segundo o autor, são expressões da assistência social e não do Estatuto da Criança e do Adolescente.

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prioridade, devendo ser respeitadas como cidadãos de direitos em sua condição peculiar de desenvolvimento, havendo responsabilizações para violações dos direitos, de modo que a responsabilidade pela infância passa a ser de todos os cidadãos que, direta ou indiretamente, estejam vinculados a ela.

O ECA é referência para os programas que foram sendo construídos, cada qual de acordo com os objetos mais específicos, a exemplo do PNCFC (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, 2006) ,que trata do direito de convivência familiar e comunitária e do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo, 2006) que trata da implantação do sistema de medidas sócio-educativas ao adolescente que comete ato infracional20.

O Estatuto passou por um período de revitalização com a Lei 12010 de 03 de agosto de 2009, que ficou popularmente conhecida como a Nova Lei Nacional da Adoção quando, na realidade, aprimorou vários artigos, de forma a aperfeiçoar e regular os procedimentos em relação à convivência familiar e comunitária e seus derivativos. Algumas destas alterações automaticamente modificaram os procedimentos dos órgãos e instituições, em especial aquelas que estão diretamente inter relacionadas à convivência familiar.

Esta revitalização passou por um processo de releitura, cujos acréscimos e modificações procuraram readequar o ECA ao momento atual. Importante salientar que este processo não esteve isento da contribuição e da participação dos profissionais envolvidos, dos órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população em geral, quando as propostas de alteração foram abertas a consulta pública, além de inúmeras reuniões e fóruns de debates que construíram as sugestões de alterações. Esta movimentação também não ficou isenta de conflitos de interesses políticos – um deles foi a não regulamentação da adoção por casais homossexuais, que a princípio constava no texto original, sendo necessárias negociações políticas que acabaram por suprimir este artigo a fim de se garantir a aprovação da Lei 12010 no Congresso Nacional.

Ainda no ano de 2009, outro marco relevante foi a 8ª. Conferencia Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente realizada em dezembro, que aprovou um total de

20 O SINASE foi legalmente instituído pela Lei 12.594 em 18 de janeiro de 2012 e em maio de 2013 a elaboração do documento foi colocada sob consulta pública.

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sessenta e sete propostas para embasar a formulação do Plano Decenal de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Várias delas, se voltam para a questão da divulgação e do respeito pelos direitos humanos, a exemplo da inclusão dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente como tema transversal e estruturante na educação básica, em observância a Lei Federal nº 11.525/2007, que torna obrigatório o ensino dos direitos da criança e do adolescente no Ensino Fundamental, tendo como referência o Estatuto da Criança e do Adolescente21. Da mesma forma, a inclusão deste tema no ensino superior nas áreas de ciências humanas, jurídicas e da saúde, incluindo também os cursos de licenciatura.

Outro exemplo é a deliberação para fomentar os processos de mobilização social e comunicação quanto à divulgação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, informando sobre os tipos de violações e de violências e as providências para prevenção, proteção e defesa. Disseminar o Estatuto nos meios de comunicação e produzir materiais educativos, especialmente direcionados à família, à escola e às instituições públicas e privadas, também foi proposta elaborada na 8ª. Conferencia Nacional.

A questão da participação da criança e do adolescente nos espaços de constituição de cidadania (eixo quatro da Conferência) vem agregar e complementar essas questões, na medida em que reconhece a necessidade da participação da criança e do adolescente nas decisões a seu respeito e como procedimento que contribui como parte da sua formação para a cidadania. Nesse sentido, Nogueira Neto (2005) analisa que mais radicais e também mais efetivos os discursos e práticas emancipatórias se tornam, se o nível de consciência e organização de crianças e adolescentes chegasse a ponto de construírem uma participação proativa efetivando o protagonismo infanto juvenil:

A participação proativa de crianças e adolescentes, no mundo familiar, social e político, passaria a se dar a partir deles próprios, e não como concessão do mundo adulto e como decorrência de políticas, programas e projetos artificiais que, no mais das vezes, promovem de fora para dentro esse “protagonismo” e ao mesmo tempo o emolduram e domesticam. (NOGUEIRA NETO, 2005, p.8)

21 Esta Lei alterou o artigo 32 parágrafo 5º da LDB: O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático adequado. (incluído pela Lei 11.525, de 2007).

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Salienta o autor que nesse movimento a favor da criança e do adolescente, novas alternativas devem ser procuradas, tanto em relação às instâncias públicas, quanto aos mecanismos estratégicos – políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e jurídicos, para que se tornem em verdadeiros instrumentos de mediação. Uma dessas alternativas o autor visualiza na prática da promoção e proteção dos direitos humanos da criança e do adolescente.

Deste modo, entendemos que o protagonismo e a participação também se condicionam ao acesso à informação que deve ser viabilizado por processos qualificados de formação dos atores e dos profissionais que estão rotineira e constantemente inseridos nestes espaços – professores, pedagogos, educadores, assistentes sociais, psicólogos, médicos, etc. Nesse sentido, a universidade tem um papel expressivo, porque pode criar espaços que fomentem os debates e o ensino dos direitos humanos da criança e do adolescente, em especial para as profissões que irão lidar com este segmento nos mais diversos setores e das mais diferentes formas.

Mediante as reflexões deste capítulo, para tecermos as considerações finais, é necessário retomar a questão de fundo em relação ao reconhecimento da criança e do adolescente como cidadãos sujeitos de direitos, sendo o Estatuto a referência e premissa estruturante para qualquer ação que se volte a este segmento. A representação social da infância na sociedade brasileira identifica a multiplicidade de fatores que compõem a forma e o quadro de ser criança e toma um corpo especial quando analisada em interface com a legislação vigente dada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Os direitos humanos, ancorados em um plano mais abrangente que toma como parâmetro o movimento universal-mundial, delineia uma correlação e uma articulação com os demais direitos específicos (mulheres, crianças e adolescente, idosos, etc.) representando importantes mudanças, sustentadas em processos históricos específicos de lutas dos movimentos sociais em busca da democracia e do avanço dos direitos, embora ainda nos encontremos percorrendo alguns caminhos de implantação.

Sob a ótica dos direitos humanos e do princípio de igualdade perante a lei (formal), conforme enuncia Nogueira Neto (2005), sua aplicação deve ser feita sem exceção, isto é, o princípio da universalização das normas jurídicas tem como destinatário todo e qualquer

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cidadão, inclusive crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos. Já o princípio de igualdade na lei (material), segundo o autor, demanda uma diferenciação em face da desigualdade das situações que faz prevalecer a diversidade de cada pessoa. Nesta esteira, Santos (1997, p.30) pontua que as pessoas têm o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza, muito embora seja um “imperativo muito difícil de atingir e de manter”.

Assim, a apropriação de um conceito formal liberal de igualdade requer atenção, pois pode não representar a “liberdade de ser diferente e singular” (NOGUEIRA NETO, 2005) e nem a ampliação para os “domínios econômicos e sociais” (SANTOS, 1997), o que para a criança e para o adolescente representa garantir sua identidade de direitos, sua condição de sujeito de direitos, bem como “quanto sua “liberdade de ser diverso e singular”, ou seja, sua condição de pessoa em crise (saudavelmente em crise!) quanto à sua essência humana e geracional”. (NOGUEIRA NETO, 2005, p.11).

Dentro desta perspectiva, recorremos a Santos (1997), quando afirma que as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana pode, eventualmente, levar a uma concepção mestiça de direitos humanos que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma “constelação de sentidos locais” e se constitui em redes de referências normativas capacitantes:

Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local (SANTOS, 1997, p. 23)

Adotando esta assertiva em relação ao Estatuto, podemos identificar que o mesmo sustenta o diálogo intercultural sobre a criança e o adolescente sem recorrer a falsos universalismos em suas referências normativas, sendo efetivamente guia emancipatório quando seus princípios estruturantes – proteção integral, prioridade absoluta e superior interesse, que sustentam a condição de sujeitos de direitos, forem efetivamente apropriados e absorvidos pelo contexto cultural brasileiro.

Temos, portanto, que “as regras de cidadania, contempladas no ordenamento jurídico, não devem permanecer como declarações retóricas” (MAIOR NETO, 2006, p.

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124), pois crianças e adolescentes em risco não podem aguardar a “natureza das coisas”, ou que o “processo histórico” venha a interferir para a materialização do que lhes foi prometido como direitos fundamentais. “Entretanto, levando-se em conta que a lei, por si só (e por melhor que seja), não tem o condão de alterar a realidade social – o exercício dos direitos nela estabelecidos é que vai produzir as transformações desejadas”.

Como vimos, Bobbio (2004) afirma que os direitos humanos nos tempos atuais não carecem de fundamentação e sim do desenvolvimento de capacidade dos povos de protegê- los. Transportando esse raciocínio para o Estatuto da Criança e do Adolescente, também podemos dizer que nesses vinte e três anos de sua existência, não se trata mais de fundamentar os direitos da criança e do adolescente, mas de protegê-los e de reestruturar nossa capacidade de respeitá-los, o que toma um corpo especial em nossa sociedade.

O desconhecimento do que esse movimento de construção de direitos da criança e do adolescente representou e o que representa no conjunto dos demais direitos, bem como a amplitude dessa conquista, são fatores que demonstram a necessidade que se faz de insistir na divulgação do ECA para o conhecimento mais específico. Decorridas estas duas décadas, ainda podemos questionar: Qual é a representação do Estatuto para uma sociedade que quer e deseja cuidar de suas crianças e adolescentes de maneira a respeitá-los e a considerá-los como cidadãos de direitos? Como a sociedade respeita e compactua com os pressupostos contidos no Estatuto?

Percebemos, portanto, que através de algumas questões pontuais, nem sempre as respostas são afirmativas. Adolescentes que cometem ato infracional, são exemplos: de tempos em tempos, quando vem a público um fato grave que envolve adolescente, se faz mobilizações para o rebaixamento da maioridade penal no cenário político e na mídia, como se isso fosse sanar a questão da violência, porque o Estatuto só protege o adolescente, não pune, “devolve para os pais”22. Em outros aspectos também alguns discursos são

22 É importante frisar rapidamente que o adolescente que comete ato infracional é muito mais vigiado e responsabilizado do que um adulto. De imediato ele tem medidas socioeducativas aplicadas, a exemplo da medida de privação de liberdade, diferente do adulto que normalmente se utiliza de prerrogativas legais que lhe favorecem a “liberdade”. Além disso, reduzir a idade não representará necessariamente contenção da violência. A violência é um fenômeno multicausal e/ou multidimensionado que não se “controla” apenas com medidas punitivas e o adolescente não está imune às influências, que nesta fase, podem ser mais representativas do que na fase adulta, em se falando de um amadurecimento saudável. Tema que será tratado no capítulo 3.

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incorporados no senso comum, a exemplo de que a partir do ECA, o adolescente não pode mais trabalhar, ou de que os pais não podem bater nos filhos, de que os professores perderam o respeito porque só foram eleitos direitos e não deveres aos alunos.

Por outro lado, o fato que aparentemente está assumindo relevância é a questão de como assegurar direitos numa sociedade em que a violência com todas as suas derivações traz, na prática, situações complexas advindas da realidade social, ou seja, ainda convivemos com altos índices de trabalho infantil, de exploração sexual de adolescentes, de violência e abusos dos mais variados tipos. Convivemos com a falta de vagas em creches, com a insuficiência de políticas públicas de atendimento, com precário sistema de saúde, entre outros, o que nos permite afirmar que as mudanças desejadas ainda estão se processando e não estão totalmente contempladas.

Entretanto, de uma forma geral, podemos dizer que a efetividade dos avanços conquistados requer aprendizados. Aprendizados de prevenção, de participação e de capacitação, para garantir que os desvios de interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente não sejam causas de violações de direitos.

Uma vez que os direitos podem ser violados ou ameaçados pela família, pela sociedade e pelo Estado e, sem a pretensão de esgotar situações tão relevantes e complexas, a articulação e a integração das políticas sociais setoriais e, consequentemente, dos serviços e dos atores sociais (operadores desses serviços) é questão de fundo para que os improvisos sejam evitados e as intervenções se estruturem em melhores condições. Isto não significa apenas a existência da rede de serviços, vai além, ao demandar uma conexão, estruturada e integrada, para que os serviços dialoguem e se comprometam, conjuntamente, em oferecer atenção necessária. O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente desenhado pelo ECA e materializado por Resolução do CONANDA, embora seja um Sistema complexo e amplo, retrata bem esta necessidade, conforme poderemos verificar no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 2. O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO