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Reincidência X Tipo de Delito

CAPÍTULO 4. O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Vimos que os avanços trazidos pelas legislações e também pelos campos de estudos como o da sociologia da infância, trouxeram a construção de um novo paradigma de interpretação. Marcaram a mudança de concepção, deixando a infância de ser vista apenas como um tempo de passagem. Todavia, crianças e adolescentes ainda continuam invisíveis em muitos aspectos na sociedade adultocêntrica, em especial aquelas que vivem em situação de acolhimento institucional (abrigadas) e, portanto, com seu direito de convivência familiar violado, isto é, de viver, conviver e de se desenvolver em sua família. Assim, as questões que ancoram as reflexões deste capítulo estão voltadas para a convivência familiar e seus desdobramentos.

Foram privilegiadas questões gerais de família, embasadas na perspectiva sócio- histórica, que possibilita compreender o movimento de diferentes formatos e arranjos de organizações familiares. O tema família no Brasil neste início de século XXI se tornou foco central de algumas políticas públicas sociais e, em especial, da assistência social, recebendo um investimento que foi deixado de lado por algumas décadas, para voltar a ganhar relevância. Procuramos mostrar as alterações no padrão ideal de família, que passa a ser desconstruído, na medida em que a ênfase se desloca da consanguinidade pura e simples, para as alianças e afinidades. Neste cenário as funções de cuidado, solicitude e capacidade de proteção dos seus membros são privilegiadas. Enfocamos os avanços trazidos pelo arcabouço legal, cujas legislações oferecem o padrão de proteção do Estado, no qual a família deve ser objeto de atenção. Tais avanços também oferecem os parâmetros para definições conceituais, ao alargar concepções de família.

Esgotar todos os recursos para a permanência da criança na família antes da medida judicial de acolhimento é a prerrogativa de base, porém, o significado e a representação do rompimento do vínculo familiar e da medida protetiva de acolhimento institucional permanecem como desafios que encontram, em nosso país, expressão: aproximadamente 54 mil crianças e adolescentes vivem em abrigos, o que vem demonstrar a recorrência de manutenção das raízes históricas da cultura de institucionalização.

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Esse transitar insere-se no contexto das políticas sociais em duas vertentes: prevenir e evitar o acolhimento institucional, mantendo a criança e o adolescente em sua família, ou criar condições de se promover a reintegração familiar, quando ocorre o acolhimento. Como ainda encontramos acolhimentos justificados pela pobreza, que no conjunto dos demais motivos, acaba se sobressaindo, localizar este debate no plano ampliado das políticas sociais oferece margem para o pressuposto de que quanto mais crianças e adolescentes acolhidos em determinado território, menos os serviços derivados dessas políticas estão conseguindo atingir a população alvo desta demanda, isto é, crianças, adolescentes e família. Em outras palavras, quanto mais as políticas sociais ampliarem a sua cobertura com qualidade, a tendência é a de que menos crianças e adolescentes necessitem de medida protetiva de acolhimento institucional.

Neste contexto do direito da convivência familiar, questionamos: É possível afirmar que o direito à convivência familiar também encontra expressão na educação? Qual a sua representação? Que diálogos podem ser construídos?

Buscando algumas possíveis respostas, recorremos ao Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006) para mostrar que, do total de 138 ações propostas, 20% delas tem interfaces direta com a educação como parceira na garantia do direito à convivência familiar e que delas decorrem possíveis inter-relações, tais como: i) identificar condicionantes que favoreçam ou ameacem a convivência familiar; ii) participar da elaboração de estratégias de integração da rede de atendimento às famílias e no desenvolvimento de ações educativas sobre cuidados e educação de filhos; iii) ampliar a oferta dos serviços de educação infantil de zero a cinco anos; iv) estimular a criação de oficinas culturais enquanto espaço de reflexão e para fortalecer a convivência familiar e comunitária e a prevenção da violência contra crianças e adolescentes, entre outros. No conjunto dos demais atores, a educação se constitui em espaço que oferece várias possibilidades de fortalecimento da convivência familiar e tem sido chamada a integrar-se, cada vez mais, nas articulações das políticas públicas sociais.

Tendo em vista que o rompimento do vínculo familiar encontra expressão nos serviços de acolhimento institucional, olhar a relação do abrigo com a escola permite entender o quanto esta pode se tornar um local que contribui, ou não, para romper as barreiras discriminatórias que se formam em torno da criança e do adolescente acolhido institucionalmente. Para demonstrar uma

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alternativa de prática interdisciplinar embasada na perspectiva da intersetorialidade, priorizamos algumas considerações mais gerais sobre as audiências concentradas, ocorridas no âmbito da justiça da infância e da juventude. As audiências concentradas têm a finalidade de revisar a situação processual de crianças e adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vistas a assegurar o direito de convivência familiar, seja pela via da reintegração familiar, o que prioritariamente deve ser buscado, seja pela colocação em família substituta.

É preciso ressaltar que nossa intenção não foi analisar ou avaliar as audiências concentradas e sim pontuar a possibilidade de se instituir e de se construir espaços de práticas interdisciplinares, referendando que o compromisso do trabalho em rede entre todos os atores/operadores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, é condição fundamental para assegurar a proteção integral e, neste caso específico, para promover avanços que sinalizem em direção à garantia direito da convivência familiar de crianças e adolescentes privados deste direito por viverem em instituições de acolhimento.

4.1. Família: trajetórias, pertencimento e os marcos legais

Família é tema inacabado em qualquer momento histórico e em qualquer perspectiva teórica que sustente sua fundamentação, tendo em vista o processo contínuo de transformações e de remodelagens por que passou e continua passando nos tempos atuais. Modificações que não permitem uma conceituação acabada, dada a complexidade de questões que lhe são inerentes – questões afetivas, emocionais, comportamentais, financeiras, econômicas, de poder, de moral e de valores.

Falar de família é falar de seus movimentos e ajustes, de suas combinações e recombinações. De sentimentos, costumes e organização do cotidiano. De sua inesgotável capacidade de sobrevivência (DONZELOT, 2001), de suas funções de reprodução (biológica e da ordem estabelecida). De formas de ser e de estar nesse complexo núcleo que os seres humanos identificam como seu. Núcleo composto por singularidades, segredos, mitos, memórias (boas e ruins), que se constitui em espaço único na vida dos indivíduos, espaço de significados e

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representações, cujo modelo idealizado se distancia cada vez mais de um padrão geral para se aproximar de modo específico para seus integrantes, com dinâmica própria e peculiar.

Losacco (2011) questiona o que é família e se todos, pessoas e instituições (judiciário, executivo, legislativo e sociedade civil organizada), ao utilizarem esse conceito querem expressar a mesma coisa. As pessoas e as instituições nem sempre comungam da mesma expressão quando se fala de família. Esse tema requer um estranhamento (SARTI, 2005) ao ser analisado, porque emergimos dele e cada qual tem o seu modelo de família internalizado, aqueles que não a tem, estão em busca deste pertencimento.

Em que pese uma não linearidade do tema, há estudos clássicos que se dedicaram ao desvendamento das inúmeras “formas” de famílias, compostas no decorrer dos tempos. Tendo por base a perspectiva histórica de construção social desta temática, é possível identificar nos trabalhos de Àries (2006) e de Donzelot (2001) importantes elementos que nos conduzem a uma aproximação mais clara do tema. Donzelot afirma que a família não está:

Nem destituída nem piedosamente conservada: A família é uma instância cuja heterogeneidade face às exigências sociais pode ser reduzida ou funcionalizada através de um processo de flutuação das normas sociais e dos valores familiares. Assim como estabelece uma circularidade funcional entre o social e o econômico. (DONZELOT, 2001, p. 13).

Àries, (2006) constrói seu estudo com base nos calendários, nos documentos e na iconografia, identificando pelo menos três fases características da família que trouxeram mudanças significativas em sua constituição e dinâmica: a vida pública da família (séculos XV e XVI), o intermediário (século XVII), a vida privada da família (século XVIII), trazendo o prenúncio da família burguesa moderna.

Segundo o autor, nos séculos XV e XVI a família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental. A linhagem familiar era valorizada em contraposição à noção de núcleo. A rua era o local onde as pessoas mantinham as relações sociais e onde a aprendizagem da criança era feita. A rede de dependência existente caracterizava as relações na sociedade. Já no século XVII, as novas configurações que a família vai assumindo são marcadas pela especificação dos cômodos da casa e pela educação fornecida cada vez mais através da escola, se tornando o

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instrumento da iniciação social da passagem do estado da infância para o estado adulto. Na medida em que a família começou a se distanciar da sociedade e da vida pública, inicia-se o seu processo de vida privada, tornando-se uma sociedade-núcleo. Ingressa-se, portanto, em um sistema de classe e consolida a concepção de núcleo, composto pelas figuras paterna e materna e pelos filhos. Com isso, a valorização da consanguinidade foi um forte indicador da caracterização da família, cujo padrão ficou instituído na figura paterna como provedora e chefe de família, enquanto que a figura materna passa a ser associada aos cuidados da prole e da casa.

Esta concepção ainda vai levar mais de dois séculos para se transformar e dar lugar reconhecido a outras formas de constituição de uma família, por exemplo, pelos laços afetivos (adoção) e a outros padrões, como as famílias monoparentais chefiadas por mulheres e as uniões homoafetivas.

As tonalidades contextuais que foram se configurando na dinâmica do processo histórico, identificaram momentos que marcaram etapas de evolução e superação de padrões culturais, caracterizando a mutabilidade da instituição familiar. Neste sentido, temos algumas “fases” características da “família modelo-burguesa”, cujas transformações se processaram conforme as demais transformações ocorridas nos planos social, cultural, tecnológico e jurídico. Segundo Lopes (1994), as remodelações nos grupos organizados em redor das relações de parentesco são marcadas por mudanças gerais que influenciam, de acordo com o momento histórico e o contexto, transformações nas relações intragrupais. Assim, a família pode se configurar de diferentes formas/arranjos conforme as diferentes sociedades e seus respectivos momentos históricos.

Na contemporaneidade, segundo Sarti (2005), embora ainda seja difícil localizar a linha condutora que se encaminha na sua exata definição, torna-se difícil sustentar a ideia de um modelo adequado. Para a autora, embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações, as mudanças que se processam abalam o modelo idealizado e adequado. A literatura antropológica contesta a aparente “naturalidade” da família apresentando-a como criação humana mutável, conforme nos mostra Bruschini (1989):

A família tem sido conceituada por esta disciplina como grupo de indivíduos ligados por elos de sangue, adoção ou aliança socialmente reconhecidos e organizados em núcleos de produção social. É um grupo de procriação e de consumo, lugar privilegiado onde incide a divisão sexual do trabalho, em função