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A análise tradicional das causas das guerras dificilmente se aplica, segundo Holsti96, aos conflitos intraestatais: «Dado que a maioria das guerras ocorridas depois de 1945 se desenrolaram no interior dos Estados, qual é a pertinência política e intelectual dos conceitos e práticas decorrentes das experiências europeias e da guerra fria que diagnosticaram e prescreveram soluções para o problema de guerras entre Estados?» A análise clausewitziana, baseada no confronto de Estados com exércitos disciplinados e campanhas militares cuidadosamente preparadas, parece mais do que inadequada. Já não são os Estados que conquistam e se defendem mas, em várias regiões, as suas etnias e os seus senhores da guerra para quem esta se mostra mais lucrativa do que a sua resolução pacífica. Duas teses, objetiva e subjetiva, explicam de maneira muito diferente a dinâmica das guerras etnopolíticas. Contudo, em ambos os casos, há razões para recear que elas não estejam a diminuir. É claro, também nos dois casos, que não se deve exagerar a irracionalidade destas guerras, uma vez que elas têm a sua lógica.

a. O etno-realismo, último nado da família realista, transpõe os postulados desta escola de pensamento para as relações intraestatais e explica os conflitos armados e as guerras por condições inerentes e objetivas. O etno-realismo tem as suas raízes numa visão fundada sobre os grupos em conflito. Robert Gilpin97 já indicava que «os seres humanos se confrontam em última análise como membros de um grupo e não como

93

Ibidem, 180. 94

A. BIHR, «Le crepuscule des Etats sans nacion», Manière de voir (1999) 22-24. 95

Y, SADOWSKI, op. cit.,. 96

K. HOLSTI, op.cit., 14. 97

34 indivíduos isolados». Robert Gilpin98 postulava também que todos os humanos aspiram a três coisas: «viver, propagar e dominar». Os etno-realistas aplicam estes postulados à sua análise particular das relações de poder e de segurança entre etnias, tal como os realistas e neorrealistas fizeram no quadro das relações entre Estados. É possível resumir as suas conclusões em quatro pontos. M. Brown e Roe99 propõem excelentes sínteses do etno-realismo:

(1) A identidade étnica e a sua afirmação são um fenómeno natural e portanto inerente à estruturação das relações humanas. O etno-realismo adota uma visão «primordialista» dessa estruturação: as divisões naturais entre etnias são normais e provocam tensões, como as tensões entre os Estados. Os conflitos étnicos são rivalidades nas quais «os grupos se definem a partir de critérios nacionais ou étnicos... e se reclamam de interesses coletivos contra o Estado e outros atores políticos»100. Esses conflitos são uma consequência inevitável da concorrência entre etnias, da mesma maneira que a guerra decorre inexoravelmente da competição entre Estados101. As rivalidades amplificam-se quando são acompanhadas por projetos «hipernacionalistas» fundados sobre «a exclusividade estatal» para uma etnia em prejuízo das outras102.

(2) As relações entre etnias resultam em conflitos porque deixam de estar sujeitas à autoridade efetiva do Estado. Quando este último se fragiliza e desmorona, instala-se uma anarquia interior que se assemelha à prevalente no sistema internacional. «O conflito é precipitado pelo medo do futuro vivido através do passado», explicam Lake e Rothchild103. Os fenómenos do «cada um por si», de desconfiança, de falsas perceções, de más informações, de cenários catastróficos manifestam-se e provocam conflitos. «Cada grupo procura controlar o Estado ou separar-se dele para poder dirigir o seu próprio Estado, diminuindo

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IDEM, «The Richness of the Tradition of political Realism» in Robert O. Keohane (ed.), Neo-realism and its

Critics, Colombia University Press, New York 1986, 305.

99

M. BROWN, Ethnic Conflict and International Security, Princeton University Press, Princeton 1993; P. ROE, «The Intrastate Security Dilemma: Ethnic Conflict as a Tragedy?», Journal of peace Research 36/2 (1999) 183- 202.

100

T. GURR, «Minorities, Nationalists and Ethnopolitical conflict», 53. 101

C. KAUFMANN, «Possible and Impossible Solutions to Ethnic Civil Wars», International Security 20 (1996) 136-175.

102

D. WELSH, «Domestic Politics and Ethnic Conflict», Survival 35/1 (1993) 63-80; S VAN EVERA, «Hypotheses on Nationalism and War», International security 18/4 (1994) 5-39.

103

D. LAKE – D. ROTHCHILD (eds.) The International Spread of Ethnic Conflict. Fear, Diffusion and

35 assim a segurança de todos os grupos e a capacidade para o Estado existente de garantir essa segurança»104.

(3) O dilema de segurança tanto age sobre as etnias como sobre os Estados. Com medo de ser atacada por uma outra etnia e não podendo confiar nela, uma etnia toma medidas que possam ser vistas pela outra como ameaçadoras. Ambas as etnias se armam e manifestam veleidades ofensivas. Como resultado, a segurança obtida por cada uma delas contribui para a insegurança de ambas. Esta espiral conduz a uma guerra quando uma das etnias emprega a força contra a outra de maneira preventiva105. O dilema de segurança é frequentemente a principal causa dos confrontos étnicos: «Quando os grupos verificam que só podem aumentar o seu bem-estar à custa dos outros, isolam-se numa competição em que cada qual procura apoderar-se dos recursos e do poder do Estado»106. Além disso, o dilema torna difícil a resolução pacífica do conflito devido às atitudes de certos dirigentes étnicos que podem querer continuar o conflito, recorrendo à “batota” e a mais violência a fim de manter a sua credibilidade e a sua autoridade. Esses dirigentes comparam-se então a «promotores de desordem» (spoilers segundo a expressão de Stedman)107.

(4) A difusão e a escalada dos conflitos étnicos seguem igualmente a lógica que existe entre os Estados. Operam ambas segundo os cálculos de preservação ou de expansão da influência de uma etnia contra uma outra etnia. Assim, as rivalidades exprimem-se por alianças, conquistas territoriais, aquisição de armas, operações preventivas, seguindo reações similares aos Estados. A difusão traduz-se pela exportação de um conflito étnico para uma região limítrofe ou para um outro Estado; a escalada ocorre quando o conflito implica atores e potências externas que pretendam defender ou promover interesses geopolíticos. Tanto a difusão como a escalada, sobretudo em simultâneo, aumentam os riscos de desintegração e de guerra intraestatal, na medida em que a propagação do conflito étnico segue a teoria dos «dominós». O conflito é então contagioso e transporta-se de um local para outro108. Ele é o fruto de «maus líderes» e de «maus vizinhos» que se

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S. SAIDEMAN, «Is pandora’s Box Half Empty or Half Full? The limited Virulence of Secessionism and the domestic Sources of Disintegration» in D. LAKE - D. ROTHSCHILD (eds.), the International Spread of Ethnic

Conflict, Fear, Diffusion and Escalation, Princeton University Press, Princeton 1998, 135.

105

B. POSEN, «The Security Dilemma and Ethnic Conflict», Survival 35 (1993); S. SAIDEMAN, op. cit.. 106

D. LAKE – D. ROTHCHILD, Containing Fear: The Origins and Management of Ethnic Conflict»,

International Security 21 (1996) 45.

107

J. STEDMAN, «Spoiler Problems in Peace Processes», International Security 22/2 (1967) 5- 53. 108

R. GAGNON, « La désintégration yougoslave: un cadre fertile pour la théorie de dominos?» in Études

36 encontram em «más vizinhanças», segundo a fórmula choque de Michael Brown109.

b. O «identitarismo» ou a crise identitária alicerçam-se, segundo a tese construtivista, numa dinâmica psicológica. Os conflitos étnicos parecem ser produto de feridas narcísicas na identidade dos grupos; com efeito, essas feridas e a vontade de as sarar pelo recurso à violência são sobretudo «construídas» por líderes étnicos e políticos. Tais crises não são necessariamente ancestrais ou inevitáveis; correspondem a desequilíbrios cognitivos provocados e alimentados pelo medo sentido pelo grupo de desaparecer ou ser diminuído110. Além disso, esse medo é frequentemente justificado e manipulado por «promotores» etnopolíticos.

c. Para os construtivistas, a violência não é inerente (escola realista) mas condicional às atitudes e à aprendizagem individual e coletiva da natureza, socialmente construída da etnicidade111. Esta aprendizagem é motivada e alimentada por estruturas sociais e atores que propagam uma certa visão do que significam a identidade e a sobrevivência da etnia. Não é a identidade que mobiliza os indivíduos, mas os indivíduos que mobilizam a identidade. A etnicidade está longe de ser portadora de conflitos naturais. A violência tanto pode ser «educada» como «domesticada». Tudo depende das atitudes, dos discursos e das perceções veiculadas112. O identitarismo, particularmente étnico, é muito mais frequentemente «uma criação das elites, que se apoderam, deformam e por vezes inventam aspetos da cultura do grupo que representam, a fim de preservar a sua existência e o seu bem-estar ou para ganhar vantagens políticas e económicas para o grupo e para si mesmas»113.

d. Por conseguinte, os conflitos étnicos resultam de crises de identidade e de discriminação. Quando estas últimas se manifestam, as normas de comportamento são sujeitas a profundos questionamentos e a ataques destinados a modifica-las radicalmente. A construção de ameaças e um processo de vitimização servem especialmente para redefinir as identidades visando eventualmente alterar o equilíbrio étnico, pela força. Têm por objetivo satisfazer indivíduos, líderes ou coletividades que pretendem canalizar a mudança identitária para fins de legitimidade de grupo, de

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M. BROWN, «The Causes of International Conflict» in Klare e chandrani (eds.), World Security. Challenges

for a New Century, St. Martin’s Press, 3ª ed., New York1996, 180-199.

110

F. THUAL, op. cit., 45. 111

J. ELLER, From Culture to Ethnicity to Conflict: An Anthropological Perspetive on International Ethnic

Conflict, University of Michigan Press, Ann Arbor 1999.

112

M. BROWN, op. cit.; K. BUSH, «Identity-Based Conflict: Rethinking Security in a Post- Cold War World»,

Global Governance 3 (1997) 308-328.

113

37 afirmação de autoridade ou de chauvinismo nacionalista114. «Numa crise identitária, escreve Thual, o ator principal tem automaticamente necessidade de se sentir ameaçado por um, dois, três ou mais países vizinhos ou próximos»115.

e. Ativistas étnicos ou «promotores etnopolíticos» exploram os períodos de perturbação para atiçar a ameaça. Utilizam os símbolos étnicos para mobilizar o apoio popular, especialmente num contexto em que a fraqueza, ou o desabamento, das instituições faz com que a identidade se apresente como a última e única muralha de defesa. Igualmente, oferecem uma compreensão única e muito subjetiva das diferenças identitárias que exprimem em discursos de guerra, visando mobilizar e reorientar as populações para novas identidades. «Em suma, os promotores políticos traduzem e ao mesmo tempo alimentam os medos étnicos para aumentarem a sua própria influência»116, ao mesmo tempo que encorajam o desenvolvimento de uma identidade chauvinista, xenófoba e exclusiva face às outras identidades (o exemplo perfeito é o de Milosevic, na Sérvia desde 1987, e de Karadzic, na Bósnia desde 1991).

Para os etno-realistas, tanto como para os realistas em geral, a melhor maneira de prevenir e conter a anarquia intraestatal indutora das rivalidades étnicas e dos dilemas de segurança que provocam conflitos armados é dar simplesmente ao Estado o que lhe pertence: o controlo da sua soberania e da sua autoridade. Esta conclusão é reafirmada, não sem surpresa, por Kalevi Holsti após a sua longa análise das guerras do «terceiro tipo». Pergunta ele: quem quereria trocar a Islândia pelo Sudão, ou o Japão pelo Myanmar? «A alternativa ao Estado pode não ser uma sociedade universal em harmonia, mas uma fragmentação em feudalidades, um governo de gangues, de massacres comunitários e de limpeza étnica (...). Estados fortes são um ingrediente essencial à paz no seio e entre as sociedades humanas»117. Mohammed Ayoob118 vai mais longe: «sem a atribuição de uma ordem política pelo Estado, qualquer outra forma de segurança será provavelmente inatingível ou, no melhor dos casos, fugidia». A construção do Estado no terceiro mundo é, para Ayoob, a principal razão das guerras do futuro119. Essa construção, porém, continua a ser de uma importância capital para

114 B. CRAWFORD – R. LIPSCHUTZ, «Discourses of War: Security and the Case of Yugoslavia» in K. KRAUSE – M. WILLIAMS (eds.), Critical Security Studies, University of Minnesota Press, Minneapolis 1997; V. GAGNON, «Ethnic Nationalism and International Conflict: The Case of Serbia», International Security 19 (1995) 130-166.

115

F. THUAL, op. cit., 42. 116

D. LAKE - D. ROTHCHILD, op. cit., 20. 117

K. HOLSTI, The State,War, and the State of War 12-13. 118

M. AYOOB, «Defining Security: A subaltern Realist Perspetive», in K. KRAUSE – M.WILLIAMS (eds.),

Critical Security studies, University of Minnesota Press, Minneapolis 1997, 132.

119

IDEM,, «Westephalia with a Difference: War and State Making in the Third World», Texto apresentado na conferência sobre The Future of War, St. Petersburg, fevereiro 1999, 25.

38 propiciar a um Estado frágil a sua saciedade territorial, a sua coesão social e a sua estabilidade política. Estarão lembrados de que a paz de Vestefália «criou um sistema de Estados soberanos para diminuir as guerras civis viciosas de religião?», insiste Nye120. Teremos regressado ao ponto de partida, uma vez que o Estado foi inventado para pôr termo às guerras pré-modernas? Será possível evitar também a repetição das guerras modernas? O desafio consiste em fazer evoluir as sociedades e países do Sul para a fase pós-moderna, o que parece julgar-se alcançável porquanto a intervenção (a ingerência) internacional tem justamente por missão exportar o triplo modelo liberal da paz democrática, económica e institucional. Falta ver se esta estratégia poderá diminuir ou eliminar as guerras e os conflitos armados no Sul, como parece estar a acontecer no Norte.

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CAPÍTULO II

EVOLUÇÃO DA DOUTRINA CATÓLICA

DE PIO XII A PAULO VI