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João Paulo II: «Não Pode haver uma Guerra Santa» (1991)

O dever da intervenção militar para a comunidade internacional em caso de violação grave do direito foi proclamada numerosas vezes por Pio XII443, o qual tinha violentamente condenado o esmagamento da insurreição húngara pelo exército soviético444. Mais uma vez, entre o princípio e a situação concreta, o fosso é considerável, como nos mostrou a guerra do Golfo em 1991.

A maioria das reações episcopais contentaram-se com grandes declarações de princípio pouco comprometedoras sobre a justiça e a igualdade, acordo necessário entre os homens como que foi dito ao jornal Libération: «A hierarquia eclesiástica deixou-se levar pelo habitual exercício de estilo que consiste em não tomar parte claramente». Mais cruelmente, Jean Toulat escreveu: «Como que para esconder o seu embaraço alguns refugiaram-se no convite à oração. Uma“arma” de escolhas certas na condição de conduzir ao compromisso»445.

Foram tomadas posições divergentes entre os bispos. Em Inglaterra, o cardeal Hume, arcebispo de Westminster, declarou: «Eu creio que ir fazer a guerra no Golfo não pode ser definido como imoral», a maior parte dos bispos americanos, o seu presidente Monsenhor Pilarczyk, arcebispo de Cincinnati, anunciaram: «a guerra é sempre uma tragédia e um sinal de fraqueza humana», recusando garantir a operação. Na Alemanha, o bispo de Mayence. Monsenhor Karl Lehmann afirmou a inevitabilidade da guerra e comparou o ataque de Saddam Hussein sobre o Koweit à de Hitler contra a Polónia. Os bispos de Fulda e de Berlin aprovaram a guerra, enquanto que o de Limbourg e alguns outros a condenaram. Em França, de um lado o arcebispo de Rennes, declara: «Não acredito que se possa dizer que esta guerra seja ilegítima», o cardeal-arcebispo de Lyon, admite que «é necessário escolher entre a guerra e a desgraça, e entre a guerra e a injustiça, melhor será a guerra», e do outro o bispo de Evreux que escreveu uma carta aberta àqueles que pregam a guerra e a fazem fazer aos outros, é assim que os bispos de Poitiers, Besançon, Bordeaux, Toulouse, e outros ainda, que se

443

R. COSTE, Leproblème du droit de guerre dans la pensée de Pie XII, 310-320. 444

Enciclica Datis nuperrime, AAS 48 (1956) 745-748. 445

147 opuseram também à guerra; o bispo de Perpignan, Monsenhor Chabbert, foi o mais explícito de todos:

Será preciso portanto combater no Koweit por causa do mau cheiro do petróleo? Será necessário salvar alguns regimes riquíssimos onde certos, alguns em matéria religiosa, são de uma rara intolerância? As democracias ocidentais terão elas tal interesse em apoiar estes estados plutocratas? (…) Não nos deixemos atrair por disputas jurídicas que tenderão a provar que se trata de uma guerra justa. O direito comanda um verdadeiro diálogo no respeito pela justiça, um firme desejo de sucesso de chegar a um acordo mútuo, mesmo se for preciso fazer concessões de um lado e do outro, caso os erros sejam partilhados446.

A clivagem é nítida: guerra justa para uns, injusta para os outros, mesmo no seio da Igreja. Quanto às declarações coletivas, elas exprimem um consenso, que não toma posição. Assim os bispos de França, em dezembro de 1990, condenaram a violação do direito internacional por parte de Saddam Hussein mas afirmam que a guerra não é um meio adaptado para endireitar esse direito447.

Mais nítida é a posição de organismos católicos como Pax Christi, que condenou a ação iraquiana e lembra as contradições, a hipocrisia e a injustiça a duas velocidades dos Ocidentais:

Depois dos anos, a comunidade mundial conhece a natureza do regime do presidente Saddam Hussein, com a restrição das liberdades políticas e pessoais, os abusos de outros direitos do homem e o emprego deliberado de armas químicas contra o Irão e a população Kurda, sem nenhuma restrição aparente do comércio mundial, da ajuda económica, e do abastecimento contínuo de armas militares por parte de muitos países. (…) A reação rápida e severa sobretudo dos países ocidentais, à violação territorial do Koweit pelo Iraque pôs em relevo a ausência de uma resposta equivalente a muitas outras violações territoriais ao Médio-Oriente e outros lugares448.

Quanto ao Papa, ele está resolutamente a favor de uma solução pacífica. Neste sentido entre o mês de agosto de 1990 e o mês de março de 1991,interveio cinquenta e cinco vezes, enviando inclusive mensagens pessoais aos dois presidentes. O essencial da sua posição resume-se em três pontos: houve uma violação do direito; mas «a guerra é uma aventura sem retorno» e não é um meio para endireitar o direito; o meio para endireitar o direito é a negociação, ligando todos os problemas do Próximo-Oriente: Libano, territórios ocupados por Israel, Koweit.

Depois da guerra, a 4 e 5 de março de 1991, o Papa reuniu em Roma os representantes dos episcopados dos países preocupados com o conflito. No discurso de abertura pronunciado

446

Citado por J. TOULAT, op. cit., 97. 447

«Déclaration sur la crise du Golf et le prix de la paix», La Documentation Catholique 2018/12 (1990) 1111. 448

148 nesta ocasião, João Paulo II retoma a lista das situações de injustiça existente no Próximo- Oriente; inquieta-se com a sorte das minorias cristãs desta região; questão que parece ter pesado na sua decisão contra a guerra, e designa nomeadamente a Arábia Saudita, membro indispensável da aliança anti-iraquiana, como um país intolerante449. Convida depois todos os dirigentes a tratar dos problemas económicos do terceiro mundo, principal fonte dos conflitos na hora atual. Enfim, num parágrafo que excede os limites geográficos e cronológicos da guerra do Golfo, declara que a ideia de «guerra santa» é incompatível com a fé450.

Esta declaração que suscitou muito pouco eco, é portanto capital. É talvez o resultado mais importante do caso do Golfo no domínio das relações entre a Igreja e a guerra. Esta tomada de posição, discreta, é comparável ao reconhecimento pela Igreja do erro cometido no processo de Galileu. A guerra do Golfo, à qual ambos os lados do conflito quiseram dar a aparência de uma guerra santa forçou o Papa a clarificar as coisas451. Declarando absurda para um cristão a expressão «guerra santa» João Paulo II condenou implicitamente todas as cuzadas e guerras santas do passado e do futuro. Nove séculos depois do apelo de Urbano II, a página foi voltada por João Paulo II, uma página de erros sangrentos, sobre a qual foram também escritos os nomes de santos canonizados. Reler a história da Igreja à luz desta declaração levou a muitas revisões. Ela não deverá ter mais guerras santas, guerras levadas a efeito em nome do Deus dos exércitos. Os representantes da Conferência islâmica e das Igrejas ortodoxas exprimiram logo de imediato a sua satisfação seguida das propostas de João Paulo II452.

Outro ensinamento da guerra do Golfo é a confirmação da impotência da Igreja face à guerra no mundo contemporâneo. O efeito das tomadas de posição maioritariamente hostis à guerra por parte do episcopado e dos novos movimentos católicos foi nulo. Quanto às intervenções do Papa, estas passaram silenciosamente para os media.

449

«Il ne peut pas y avoir de “guerre sainte”», La Documentation Catholique 2025/4 (1991) 321. 450

Ibidem, 322. 451

Monsenhor Henri TEISSIER, arcebispo de Argel, declarou: «É claro que a crise do Golfo não é confessional. Enquanto os milhares de islamitas do Magrebe procuraram fazer uma leitura confessional do conflito, apresentando a aliança dos aliados como uma cruzada Judeo-cristã contra o Islão e os muçulmanos». Ibidem, 326.

452

Mensagem de H. ALGABID, secretário geral da Conferencia islâmica: «O mundo muçulmano foi sensível aos repetidos apelos de Vossa Santidade em favor da paz na região do Golfo, uma paz fundada no direito, na justiça e na equidade. Seguem-se também com grande consideração os preciosos esforços que vós não cessaste de implantar no sentido de uma contribuição concreta das Igrejas cristãs à instauração da paz no Médio Oriente e à consolidação do diálogo islamo-cristiano que, estou convencido, constitui um fator determinante para a paz e o progresso da humanidade, particularmente nestes vastos espaços onde muçulmanos e cristãos vivem lado a lado, depois de séculos, partilhando os mesmos medos e as mesmas esperanças». Ibidem, 323. Comunicação final dos patriarcas e dos bispos:«Rejeitar todas as motivações ou interpretações religiosas que podem ser atribuídas à guerra do Golfo, na qual não poderemos ver nem um conflito entre Oriente e Ocidente, muito menos um conflito entre islão e cristianismo. Como nos disse o Santo Padre, “não pode haver guerras santas”…» Ibidem, 327.

149 Para Jean Toulat, João Paulo II foi censurado. Devemos estar indignados; e no entanto o facto é revelador: quando os líderes políticos decidem fazer a guerra, a mais alta autoridade da Igreja não se pode opor. Cada um fará orelhas moucas. 1914-1918, 1939-1945 deram provas disso; 1991 confirma a constatação, ilustrada por múltiplos exemplos: como no caso da condenação do terrorismo453, as denúncias do comércio das armas, da guerra psicológica, das despesas com o armamento, de todos os conflitos localizados454.