• Nenhum resultado encontrado

A doutrina moral católica acerca da paz concentrou-se ao longo de quinze séculos na denominada «doutrina da guerra justa»121. Esta doutrina teve a sua raiz no pensamento de S. Agostinho,122 foi sintetizada por S. Tomás123 e posteriormente desenvolvida e aplicada à nova situação dos estados soberanos e às guerras da colonização pela Escola de Salamanca, na qual sobressaiu o pensamento de Vitoria124, e a Escola de Teologia da Companhia de Jesus, sobretudo com Suárez e Molina125, vindo a repetir-se sem qualquer atualização ou aprofundamento até Pio XII.

Na Idade Média, alguns autores chegaram mesmo a justificar o uso da violência armada com o único objetivo de fazer com que um povo pagão se tornasse cristão126. Apenas com F. de Vitoria se poria cobro a tais pretensões.

A teoria da guerra justa tolera, mediante determinadas condições, um ataque ofensivo. Porém, ao mesmo tempo, subordin-o a um catálogo de critérios, submetendo-o a estreitos limites. Assim, para que um conflito armado fosse considerado legítimo deveria obedecer aos seguintes critérios:

a. A guerra deveria ser declarada e levada a cabo por uma autoridade estatal.

b. Deveria servir para defender bens e direitos de caráter essencial, postos em perigo por uma ameaça injustificada.

c. A defesa não deveria ser desproporcionada em relação ao ataque. Os meios utilizados deveriam ser adequados aos fins justos que prosseguiam. Não deveriam provocar mais danos do que os que uma defesa legítima requereria.

121

R.REUTHER, «Guerra y paz en la tradición cristiana», Concilium 215 (1988) 27-31. 122

Cf. Entre outras passagens das suas obras La Ciudad de Dios, Livro XIX, c.7 in Obras de S. Augustín, Madrid 1958, 1385-1386; C. PIETRI, «Paz y violência según S. Augustín», Teología y vida 1-2 (1984) 39-62.

123

T. AQUINO, Summa Theologica, II-IIae, q. 64. 124

Releccion «De indis, sive de iure hispanorum in bárbaros, relectio posterior» (19 de junho de 1539), in Obras

de Francisco de vitoria. Relecciones Teológicas (BAC 198), Madrid 1960, 811-858.

125

Acerca desta evolução histórica, cf. L. WALTERES, Five classical Just War Theories. A Study in the

Thought of Thommas Aquin, Vitoria, Suarez, Gentil and Grotius, New Haven 1971.

126

A. VAUCHEZ, «la notion de guerre au Moyen Age», Les quatre fleuves 19 (1984) 9-22; F. RUSSEL, The

40 d. Antes de se decidir pela utilização da violência deveriam esgotar-se todas as alternativas possíveis.

e. O mal produzido pela guerra não deveria ser maior do que a injustiça que se pretendia evitar.

f. A prática da guerra deveria respeitar as convenções internacionais. Sobretudo seria necessário discriminar entre combatentes e população civil.

g. Deveria existir uma perspetiva de êxito suficientemente justificada.

Porém, estes critérios não são suficientes. Uma vez que a ação armada se considera justificada à luz dos mesmos, a atividade militar havia ainda de ser submetida a duas regras que a limitariam, a saber:

a. O critério da proporcionalidade: o nível da força empregue deveria ser proporcionado ao bem que se pretendia alcançar. Por outras palavras: para que um ato militar fosse justificado deveria o bem que se pretendia alcançar ter mais peso do que qualquer consequência negativa que podesse resultar do mesmo.

b. O critério da discriminação: a força militar deveria ser utilizada de tal forma que se respeitasse a distinção entre combatentes e não combatentes. Em qualquer caso, a morte intencional de não combatentes seria rigorosamente proibida.

A valorização desta teoria provocou as mais diversas reações. Alguns insistem em manifestar os seus aspetos positivos para controlar e limitar uma violência que, de outro modo, teria sido mais desumana. Outros fixam-se mais na funcionalidade legitimadora de uma doutrina que permitiu e avalizou grande número de atropelos e conflitos armados, os quais vistos aos olhos de hoje carecem de toda a justificação. Estas duas posições têm muitos apoiantes. Os defensores da doutrina argumental destacam entre outros os seguintes valores:

a. Constitui um canal, embora precário, pelo qual jorra parte do espírito evangélico da Paz.

b. Serviu para racionalizar o impulso cego da violência.

c. Funcionou, durante séculos, como princípio limitador da guerra numas circunstâncias históricas nas quais a sensibilidade ética dos homens era mais pobre do que a atual.

d. Serviu para tornar menos desumano o desenvolvimento dos conflitos ao impor condições e obrigações ao comportamento dos contendores no campo de batalha. e. Se as suas condições tivessem sido rigorosamente observadas, ter-se-iam evitado muitos conflitos.

41 Porém os seus críticos enfatizam aquelas ambiguidades teóricas e as disfunções práticas que comporta. Entre elas são destacadas frequentemente as seguintes:

a. Identifica a legítima defesa com a defesa armada. Assim, não deixou lugar à abordagem e desenvolvimento de estratégia de ofensa não violenta.

b. Teorizou de costas voltadas para a realidade sem considerar suficientemente os interesses económicos, sociais e outros que sempre se escondem entre os argumentos que justificam a utilização das armas. Doutro modo, a doutrina da guerra justa é torna-se uma teoria formal e abstrata, facilmente manipulável para dar um álibi a motivos muitas vezes inconfessáveis.

c. De facto, em numerosas ocasiões serviu para legitimar, em nome do pensamento cristão, certas práticas imperialistas.

d. Resultou pouco permeável à crítica evangélica, mantendo-se práticamente imutável ao longo de muitos séculos.

e. Sofreu uma mudança na sua conceção e aplicação. Na sua genuína abordagem, a guerra foi considerada como um mal que, por sê-lo, só se poderia utilizar com base em estritas limitações. Porém, com o decorrer do tempo, a doutrina passou a ser usada como justificação de conflitos. Deste modo, produziu-se uma evolução significativa: se num primeiro momento a guerra era considerada, em última instância, como um fenómeno permissivo, determinadas interpretações da teoria clássica vêem o conflito bélico como uma dimensão do acontecer humano, perfeitamente admitido, ao qual se pode recorrer para conseguir objetivos políticos. O horror da guerra foi deste modo amortizado ao longo de vários séculos. O pensamento de Clausewitz seria a expressão laica mais acabada desta filosofia127.

Fazendo retrospetiva, não podemos evitar a impressão de que a Igreja foi excessivamente permissiva nas suas posições perante os conflitos armados que foram surgindo na Europa. Em muitos deles teve inclusivamente um papel de protagonista, dando alento a conquistas e batalhas, justificando atuações que hoje repugnam.

Não faz sentido discutir hoje em dia se a teoria da guerra justa foi ou não a melhor doutrina para a época. No entanto, os moralistas e professores de ética social da Igreja mantêm uma viva discussão sobre este pormenor. Entre os que afirmam a atualidade dos seus postulados podemos encontrar diversas posições: uns utilizam-na para justificar a discussão e inclusive o uso de armamento nuclear em determinadas circunstâncias, outros esgrimem-nos para chegar a conclusões opostas, outros ainda realçam os seus pontos fracos para propor alternativas não menos discutíveis. Em todo o caso, a doutrina da guerra justa é para o

127

42 cristianismo do século XXI francamente insuficiente na sua formulação clássica, por mais que as suas intuições básicas e muitos dos seus desenvolvimentos possam continuar a inspirar a reflexão moral dos nossos dias128. Esta debilidade fundamenta-se nos seguintes motivos:

a. Porque demonstrou uma capacidade muito limitada de impedir os conflitos armados. Na antiguidade, Roma pôde vencer e submeter setenta povos fazendo uso de guerras de legítima defesa, quer dizer, guerras justas. Através de um jogo hábil de alianças e provocações impunha-lhes regras para que os povos que queria conquistar lhe provocassem previamente uma afronta. Intervindo depois para vingar o direito e restabelecer a justiça. Este exemplo ilustra bem até que ponto a moral ocupa um papel secundário no que diz respeito à guerra. Assim, as partes em litígio invocavam justos motivos, considerando-se vítimas, obrigadas a defender os seus direitos.

A sociologia da guerra não deixa alternativa. Não é possível mandar um grupo de homens morrer no campo de batalha sem primeiro os convencer de que estão a lutar por um elevado ideal e contra um inimigo que cometeu uma grave injustiça. Isto explica o motivo pelo qual a doutrina da guerra justa foi na prática tão pouco eficaz.

b. Porque foi demasiado fácil manipular bem como como coartar ideologicamente para legitimar ações bélicas. Trata-se de uma teoria formulada num mundo em que as possibilidades críticas que puseram ao nosso dispor as ciências modernas não existiam. Porém, este perigo não é apenas apanágio do passado uma vez que tem hoje plena atualidade. Para ilustrar o que acabamos de dizer tenhamos em conta uma recente aplicação, muito sugestiva, dos princípios clássicos, realizada por W. O’Brien, relativa ao conflito do Médio Oriente. Este autor, depois de analisar e valorizar em detalhe, ao longo de 25 páginas, as intervenções militares de Israel e dos Estados Unidos contra a Tunísia e a Líbia (1985 e 1986, respetivamente) chega à conclusão de que tais intervenções se legitimaram plenamente pelos seus efeitos:

As minhas conclusões diferem manifestamente das do Conselho de segurança da ONU e das pessoas que persistem em propor uma legislação internacional jus ad bellum que não só é

128

A doutrina tradicional continua a ser um ponto de referência muito importante a nivel da teologia moral atual como o demonstram o grande número de artigos que a comentam. Entre eles destacam-se: D. O’ CONNOR, «A Reappraisal of the Just-War Tradition», Etics 85 (1974) 167-173; T. BAKKEVIG, «The Doctrine on Just War. Relevance and Applicability», Studia Theologica 37 (1983) 125-145, na qual o autor aplica a teoria moral clássica às novas estratégias da «guerra nuclear possível» de C. Gray e k. Payne; J. CHILDRESS, «Just War Theories: The Bases Interrelations, Priorities and Funcions of their Criteria», Theological Studies 39 (1978) 427- 445; J. CHLIDRESS, «Just War Criteria» in T.SHANNON (ed.) War or peace? The Search for New Answers, New York 1980; W. O’ BRIEN, «Just War Doctrine in Nuclear Context», Theological Studies 44 (1983) 191- 220; R. MILLER, «Christian Pacifism and Just War-tenets. How Do they Diverge?», Theological Studies 47 (1986) 448-472; J. KUNKEL, «Just War Doctrine and Pacifism», The Thomist 47 (1983) 501-512.

43 ineficaz, mas injusta. Por seu lado a doutrina da guerra justa permite fazer valorações de estratégias antiterroristas, que na minha opinião são realistas e justas129.

Deste modo, o teólogo americano, acérrimo defensor dos princípios clássicos que o levaram inclusivamente a justificar o uso do armamento nuclear debaixo de determinadas circunstâncias, aprova sem paliativos as citadas intervenções militares mediante um raciocínio cujo resultado final é francamente discutível.

c. Porém, porque a guerra moderna tem características que a tornam essencialmente distinta da tradicional devido ao alcance sem precedentes e ao enorme poder destrutivo das armas atuais, que ultrapassa todas as fronteiras, a nova guerra entre países desenvolvidos seria qualitativamente distinta de todas as guerras conhecidas até ao presente momento na história da humanidade. Por isso D. Mieth propõe, citando R. Schwager,

(…) a autossuperação de um modelo de pensamento moral. O qual significa que a doutrina do direito natural sobre a guerra justa ou a legítima defesa não é falsa em si mesma, porém comparada com a guerra moderna perdeu todo o sentido130.

Aos poucos vamos assistindo a uma mudança qualitativa na atitude ética dos cristãos capaz de dar resposta às mudanças que sofreram as características e os efeitos das novas armas. A Segunda Guerra Mundial e os sucessos de Hiroshima e Nagasaki contribuíram decisivamentepara este processo.