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Na encíclica Pacem in terris133 a paz situa-se na perspetiva de uma vida humana fraternal baseada na ordem criacional querida por Deus.

A paz na ordem internacional nunca poderá ser a consequência de um equilíbrio entre potências políticas e militares, mas o resultado de um comportamento pacífico e justo que se suscita a partir do «ethos» individual e social.

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Discurso ante o oitavo congresso mundial de médicos celebrado a 30de setembro1954, PIO XII, « La guerre et la paix –L’éxperimentation sur l´homme morale et les droits médicaux», Documentation catholique 1184 (1954) 1281-1290.

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45 A encíclica aborda o tema da guerra de maneira breve utilizando, porém, um tom profético que mantém vivo até hoje todo o interesse das suas reflexões. Em virtude dos princípios expostos «as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas»134. Lamenta o Papa a desgraça de que, com frequência, «os povos se vejam submetidos ao temor como lei suprema», e reconhece que possivelmente é este temor de serem agredidos (ou seja o propósito de dissuadir), e não o desejo da paz, que os leva a inverter grandes pressupostos em gastos militares135. Porém, esta situação deve ser mudada:

(…) resta esperar que os povos cheguem a (…) compreender com claridade crescente que entre os principais deveres da comum natureza humana, há que colocar o que as relações individuais e internacionais obedeçam ao amor e não ao temor (…)136.

Neste contexto devemos situar os aspetos concretos da encíclica que mais nos afetam: … a justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com essa corrida ao poderio militar, que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente, que sejam banidas as armas atómicas; e, finalmente, que se chegue a um acordo para a gradual diminuição dos armamentos, na base de garantias mútuas e eficazes. Já Pio XII nosso predecessor, de feliz memória, admoestou: A todo o custo se deverá evitar que pela terceira vez desabe sobre a humanidade a desgraça de uma guerra mundial, com suas imensas catástrofes económicas e sociais e com as suas muitas depravações e perturbações morais137.

O vigor deste texto, que chega a pedir a proibição das armas atómicas, convertê-lo-á em ponto de referência essencial para aqueles padres que nas situações conciliares pediam uma postura firme do Vaticano II contra a guerra e as armas ABC138. Para João XXIII, o desarmamento nuclear mútuo é pressuposto necessário para a paz na terra e isso por causa da «terrível potência destruidora que os atuais armamentos possuem, e do temor para com as horríveis calamidades e ruínas que tais armamentos acarretariam»139.

Imediatamente a encíclica diz algo que se vai tornar bastante conflitivo e difícil de assimilar:

Por isso, não é mais possível pensar que nesta nossa era atómica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados140.

134 Pacem in terris, nº 125. 135 Ibidem, nº 127. 136 Ibidem, nº 128. 137 Ibidem, nº 112. 138

Confrontar, por exemplo, o discurso do cardeal Alfrink na terceira sessão conciliar; nele compara o conteúdo da encíclica com a postura de um dos textos prévios submetidos a discussão, o denominado texto de Zurique. O discurso original latino poderá ser consultado em AASS III 6, 459-461.

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Pacem in terris, nº 127.

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46 Esta frase, considerada em si mesma, parece negar toda a justificação lógica ou moral da defesa armada nos nossos dias. Por exemplo: Para João XXIII a guerra tornou-se absurda, quer dizer, ilógica, porque as armas nucleares a converteram num meio «não-apto» para restabelecer o direito violado. Tal não significa que, em termos absolutos, já não faça sentido falar da justiça ou injustiça das guerras; nem que estas tenham deixado de ser justas ou injustas segundo os casos. Ao qualificar a guerra como absurda, João XXIII move-se no plano especulativo e não no plano jurídico.

A tradução oficial italiana atenuou consideravelmente a força do original latino «per cui riesce quasi impossibile pensare che nell´era atómica, la guerra possa essere utilizzata come strumenti di giustizia». Alguns autores assinalaram a relevância desta tradução – traição141. Com objetivos opostos outros opinaram que «absurdo» (alienum a ratione) em matéria que deve ser regulada pelo uso da razão (lei natural) é o mesmo que dizer imoral142. Esta frase tornar-se-á polémica nas discussões prévias à aprovação do texto definitivo da GS. O rascunho imediatamente anterior à redação final incluía-a no seu número 84 (agora número 80) sem citar a sua procedência143. O seu conteúdo provocou em alguns padres conciliares uma forte reação de oposição só contida porque se tratava de uma citação textual de uma encíclica papal. Apesar disso, houve uma proposta que solicitou a sua retirada por a considerar «sententia falsa sicut iacet, contradit n. 83, lin. 17-19»144. Ou seja, sentença falsa que contradizia o direito à legítima defesa reconhecida aos estados noutra parte do texto. A comissão encarregada de avaliar os modos recebidos recebeu fortes pressões para que esta frase fosse suprimida. Porém, segundo a sua interpretação, a dita sentença não estava em contradição com o princípio de legítima defesa, caso mais…

…todas as coisas podem ser entendidas a partir do contexto, tendo em conta que a verdade das coisas que se disseram no número anterior não é negada na seguinte, e tendo em conta que neste caso se trata de ações de guerra total que, evidentemente, excedem em muito os limites da legítima defesa145.

A jeito de resumo, e a fim de refletir na peculiaridade do pensamento de João XXIII, poderemos afirmar que enquanto que em Pio XII são convenientes as afirmações acerca de uma guerra justa ou injusta com propostas para diminuir os confrontos militares, a situação muda completamente com João XXIII (1958-1963). As ideias acerca de uma utilização

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G. BERETTA, «Religendo la Pacem in terris», Rivista di Teologia Morale 66 (1985) 54. 142

E. CHIAVACCI, «Etica della pace et legge del domínio», Bozze 2 (1982) 32-33. 143

Cf. O texto original a que nos referimos, AASS IV 6, 533.Esta frase fora incluída em último lugar por ter sido solicitada por um orador nos debates da 4ª sessão conciliar.

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Cf. «modo número 8», AASS IV 7, 589. 145

47 permitida ou não permitida de armas de qualquer tipo estão totalmente ausentes das suas declarações. Pelo contrário, tenta fazer sobressair aqueles meios através dos quais se possa chegar a descartar a guerra como instrumento da política.