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Depois do Comunismo, a Caminho do Século XXI

3.3 Descrição Breve dos Acontecimentos

3.3.4 Depois do Comunismo, a Caminho do Século XXI

Depois de 1989, Wojtyla não se dedica a celebrar a vitória sobre o comunismo. Durante os trabalhos do sínodo dos bispos da Europa, ele não quer que se mencione o seu papel nas mudanças de Leste. Diz a Navarro Valls: «Neste processo, é a Igreja que conta, não o Papa». Helmut Kohl, por seu lado, afirma que o Papa teve um papel decisivo no fim do comunismo e na reunificação da Alemanha, um processo que Wojtyla apoia, apesar dos antigos medos dos polacos em relação a um vizinho alemão que é forte. Algumas viagens de Wojtyla, imediatamente depois da queda do Muro, só são possíveis por causa do «milagre» do fim de um sistema que parecia que iria durar muito tempo.

Em 1990, o Papa faz a sua primeira viagem a Praga, onde existe um dos regimes mais duros para com a Igreja. Aqui, é acolhido pelo nonagenário cardeal Tomásek e pelo

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112 presidente Havel, com quem o pontífice tem uma relação muito cordial. Também está presente Alexandre Dubcek, que sobreviveu à repressão soviética de 1968, quando tentou realizar um «socialismo de rosto humano». Em 1996, quando passa pela porta de Brandeburgo, onde se elevava o muro que dividia Berlim, o Papa proclama que aquela é agora a «Porta da Liberdade». Em Berlim, ao lado do chanceler Kohl, crítico sobre a ética proposta por João Paulo II não evita exprimir a sua preocupação central pela Europa pós-comunista: «O homem livre está obrigado à verdade; de outro modo, a sua liberdade não passa de um lindo sonho que se desfaz ao acordar».

As viagens à Polónia, depois da queda do comunismo, são marcadas pelo apelo, às vezes severo, a que não se desperdice a grande ocasião, o milagre da liberdade reconquistada, esquecendo a fé e a «verdade do homem». João Paulo II é severo e mostra-se desiludido com os polacos que dão os primeiros passos no pós-comunismo. Pede um profundo espírito cristão e mostra-se alheio a qualquer saneamento do pessoal do regime anterior. Esta atitude de não saneamento distingue-o de uma parte dos católicos polacos360. A vitória política do Papa, em 1989, está na origem de uma renovada pregação do Evangelho no seu país e no mundo. Ele tem a consciência de que a liberdade reencontrada de muitos povos e a de que gozam os ocidentais arrisca-se a ser esbanjada ou a transformar-se em novas e inconscientes escravidões. Apercebe-se de que, num mundo globalizado, todos os países pobres ou com economia frágil, mas sobretudo o Sul, estão sujeitos às pressões das grandes organizações internacionais e dos média ocidentais. Neste sentido, fala de «colonialismo cultural».

Com a globalização dos média, o mundo vai assumindo modelos típicos da cultura ocidental. A globalização está a tornar-se a ocidentalização do mundo. A Igreja deve marcar fortemente uma presença no Sul, enquanto trava a sua batalha no Norte desenvolvido, que dita o modelo de vida.

Em 1992, o Papa faz uma viagem ao Senegal, à Guiné e à Gâmbia, países africanos pobres e muçulmanos, onde os católicos são minoritários. Um ano depois, ao Benim, ao Uganda, único país africano visitado por Paulo VI, e ao Sudão, que tem uma minoria cristã em sofrimento. Desloca-se à ilha de Gorée, no Senegal, de onde partiam navios carregados de escravos para a América. Fica a imagem de um Papa absorto em silêncio à porta da casa dos escravos, que dá para o oceano, por onde passaram, como gado, as cargas humanas, para nunca mais voltarem a África. João Paulo II quer sintonizar-se pessoalmente com a grande dor africana, com «o grito de gerações de negros feitos escravos». A ilha de Gorée é o lugar simbólico do sofrimento deste continente violentado e ainda violento.

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113 A libertação «cristã» dos pobres não foi uma bandeira levantada para lutar contra o marxismo ou a teologia da libertação, mas continua a ser uma preocupação central do Papa. Em 1994 convoca o sínodo dos bispos de África num decénio em que, com o fim da guerra fria se tinha tornado um continente estratégico, a África interessa pouco ao Ocidente, não obstante as significativas transições para a democracia em vários países. O sínodo quer dar uma nova orientação ao catolicismo do continente. Reúne diversos bispos africanos protagonistas das transições democráticas dos seus países; mas, como já se disse, recebe um pesado desmentido por causa do genocídio ruandês.

João Paulo II persiste em chamar os bispos a refletir sobre os vários continentes, convocando sínodos. Os anos de preparação para o Grande Jubileu são marcados por uma série de sínodos para a Europa, a Ásia, onde o Papa insiste no desafio de um grande continente não cristão, a América, Norte e Sul juntos com uma intuição relevante e a Oceânia. São os «estados gerais» de uma Igreja que se repensa num novo contexto político pós 1989. Com o seu sentido geopolítico, o Papa vê claramente que é necessário colocar a Igreja no novo quadro mundial, representado pela globalização, e que se deve como que refazer uma geografia do catolicismo. Os resultados nem sempre são brilhantes, como se conclui dos textos das exortações que promulga, tendo por base os trabalhos sinodais. Esses documentos são geralmente pouco originais, revelando que não existe por toda a parte uma cultura geral dos bispos ou do mundo católico capaz de registar as mudanças e de projetar eficazmente o futuro. O Papa avança mais rapidamente que o seu povo, que nem sempre consegue segui-lo nem desenvolver as suas intuições. Contudo, estes «estados gerais» continentais envolvem os bispos numa reflexão mais ampla sobre um mundo que mudou.

A Santa Sé e João Paulo II velam escrupulosamente por que o perfil da Igreja não seja confundido com o Ocidente. São contrários à guerra do Golfo; intervêm repetidamente em favor das populações muçulmanas da Bósnia-Herzegovina; condenam a guerra anglo- americana contra o Iraque. Independentemente destas intervenções políticas e humanitárias, precisamente depois do 11 de setembro de 2001, face à predominância da orientação da opinião pública e da política para uma lógica de choque de civilização e de religião, o Papa quer dar fortes sinais. Traça uma linha sem equívocos, pois também no mundo católico se manifestam não poucas perplexidades a favor de uma posição dialogante em relação aos muçulmanos. Deste modo, indica para o dia 14 de dezembro uma jornada de jejum dos católicos, precisamente na data em que conclui o Ramadão, o mês sagrado de jejum dos muçulmanos. Na história do catolicismo, é a primeira vez que isto acontece. Através da coincidência de um dia de jejum, o Papa afirma o valor da ligação religiosa entre os cristãos e os muçulmanos. O dia de jejum é um ato que envolve o povo católico do mundo inteiro,

114 precisamente no último dia do Ramadão dos muçulmanos. É o contrário do choque de civilizações; é a afirmação do reconhecimento do valor religioso do jejum e da oração dos muçulmanos.

O Papa volta a Assis, um lugar rico em iniciativas do seu pontificado. No dia 24 de janeiro de 2002, João Paulo II convida os líderes das Igrejas cristãs, do Judaísmo, do Islão e das religiões asiáticas, para orarem pela paz e para que os mundos religiosos se desolidarizem da lógica da guerra.

Precisamente depois do 11 de setembro, o Papa quer retomar pessoalmente «o espírito de Assis», tendo favorecido a celebração de encontros anuais, nesta linha, a partir de 1986. Participam muitos líderes espirituais do mundo, entre os quais o patriarca ecuménico Bartolomeu. Não faltam perplexidades no Vaticano: teme-se o irenismo do gesto, não da parte do cardeal Ratzinger, que participa pessoalmente e se mostra satisfeito com o encontro, enquanto se reclama um maior empenho contra o terrorismo e um repúdio do mesmo; algo destas preocupações entra também nos textos de Assis. Mas, substancialmente, apoiado por cristãos, judeus, muçulmanos e religiões asiáticas, o Papa afirma a rejeição da lógica do confronto. Entre os líderes religiosos, ele sobressai, não com um não codificado e retórico, mas um não real e prioritário. Trata-se de um facto inédito na história do pontificado romano.