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UM CENÁRIO COMPLEXO, GRANDES PAUTAS EM DISPUTA: O DEBATE RECENTE NO CONGRESSO

Com a regulamentação do artigo 192 em aberto desde a Constituinte, o debate sobre a regulamentação do Sistema Financeiro volta a ocupar o cenário político brasileiro quando é lançada a proposta de alteração do mesmo pelo então Senador José Serra, em 1997. Seu objetivo era revogar todo o artigo 192, o inciso V do artigo

1631 e o artigo 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias2 da

Constituição Federal. Considerada uma proposta extremamente radical, não obtém apoio necessário para aprovação, mas torna-se parcialmente válida a partir da iniciativa do relator da proposta, o Senador Jeferson Péres (PDT/AM), em 1999, que lança mão de algumas das ideias já apresentadas por José Serra através de um Substitutivo aonde se propunha manter as diretrizes do caput e as determinações quanto ao capital estrangeiro e às cooperativas de crédito.

De tramitação longa, sua discussão no Congresso Nacional é dividida em diversas etapas que preveem a análise de sua probidade e posteriormente de seu conteúdo para que então se tenha início o debate que buscará aportes para sua aprovação, modificação ou anulação - por este fato teve parte de sua tramitação no Senado desenrolada no início do segundo mandato de FHC, e na Câmara no período

1 O inciso V do Art.163 da CF - da Tributação e do Orçamento, tratava em sua versão inicial da fiscalização das instituições financeiras, a serem submetidas a uma lei complementar. Após a alteração obtida via EC-040 de 29/05/2003, passa a ter como princípio a “fiscalização financeira da administração pública direta e indireta” (SENADO, 2013).

2 O Art.52 da CF - do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, partia da necessidade de fixar as condições propostas pelo art.192. Enquanto as condições de tal artigo não fossem estabelecidas, estariam vedadas a instalação no Brasil de novas instituições financeiras domiciliadas no exterior; o 2 O Art.52 da CF - do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, partia da necessidade de fixar as condições propostas pelo art.192. Enquanto as condições de tal artigo não fossem estabelecidas, estariam vedadas a instalação no Brasil de novas instituições financeiras domiciliadas no exterior; o aumento percentual de participação no capital de instituições financeiras com sede no país (de pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior) – não se aplicando às autorizações resultantes de acordos internacionais (PORTAL DO SENADO, 2013).

das eleições presidenciais de 2002, concluindo-se nos primeiros meses do governo Lula.

O debate sobre o Sistema Financeiro tem, portanto, particular importância ao se desenrolar ao mesmo tempo em que era disputada a Presidência da República por candidatos assumidamente distintos no plano político e em suas concepções econômicas. Diante deste fato, assume-se que o debate ocorrido no Congresso Nacional reverbera/reproduz, em determinado momento, as inflexões da disputa que ocorre não apenas no campo político mas também no campo cultural, na medida em que cada um dos candidatos representa um projeto de país. Como visto, José Serra, candidato da situação, representando algo muito mais próximo de uma agenda pautada pelo fortalecimento do mercado com foco, portanto, em um projeto econômico, enquanto Lula, candidato do principal partido de oposição ao governo de FHC, com um projeto pautado pelas preocupações sociais.

Embora as alterações tenham sido também aprovadas pela Câmara dos

Deputados, resultando na Emenda Constitucional EC n0.40 de 2003, o novo texto não

trouxe de fato definições acerca das atuações concretas do Sistema Financeiro Nacional - as possibilidades de regulamentação, bem como o posicionamento a ser adotado em seu julgamento continuam em aberto, o que abre espaço para mais disputas no âmbito da discussão sobre Estado e Finanças (IANONI, 2010a; OLIVEIRA FILHO, 2008, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2013).

Para que seja possível compreender o curso do debate aqui referido é necessário entender o processo de tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no Senado e na Câmara dos Deputados, que por se tratar de uma alteração no texto da Constituição requer idas e vindas nas análises das duas Casas bem como uma aprovação em quórum diferenciado.

No Senado a proposta passa primeiramente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) onde o prazo para sua avaliação inicial é de 30 dias. A partir de então é designado um relator que terá metade do tempo desta comissão para realizar um parecer a ser apresentado e submetido à voto - chegado a um acordo o parecer do relator se transforma no parecer da Comissão. Se durante o período de análise forem sugeridas modificações na proposta serão necessárias assinaturas de senadores de dentro e de fora da CCJ para que se torne válido esse novo pedido de

proposição. Passando pela CCJ o parecer é lido em expediente, recebendo seu número

e publicado em avulsos no Diário do Senado Federal3, após esta publicação o texto

pode entrar na ordem do dia. Feito isso, a PEC é discutida em primeiro turno durante 5 sessões deliberativas ordinárias consecutivas, onde emendas podem ser apresentas desde que com quórum de 1/3 de assinaturas dos senadores. Não havendo proposição de emendas a PEC pode ser votada em dois turnos (com prazo de cinco dias entre cada um deles), sendo o primeiro com votação nominal - devendo constar um quórum de 3/5 dos senadores. Apresentadas em primeiro turno as emendas podem tanto alterar o mérito quanto a redação da proposta enquanto em segundo turno, somente é possível alterar sua redação. Seguidos estes passos a PEC volta à CCJ para receber parecer em um processo semelhante àquele de quando fora proposta.

Ao ser enviada para a Câmara dos Deputados, a proposta de emenda à Constituição é analisada pela CCJ, testada em sua admissibilidade seguindo então para a Comissão Especial (CE) onde são nomeados seu presidente, três vices e um relator os quais serão responsáveis pelo parecer da proposta. Sua tramitação na Comissão Especial tem um prazo de quarenta sessões ordinárias sendo as dez primeiras com possibilidade de apresentação de emendas ao projeto. Realizadas as votações e aprovado o texto, o parecer final da Comissão Especial é encaminhado ao plenário servindo de orientação à tomada de decisão. Para ser aprovada no plenário a PEC deverá contar com o apoio de 3/5 da composição da Câmara em cada um dos dois turnos tendo entre eles um espaço de pelo menos cinco dias. Aprovada em primeiro e segundo turnos a proposta volta à Comissão Especial para sua redação final incorporando as emendas que forem propostas. Posteriormente a este processo segue para a promulgação.

A proposição de 1997

A proposta de Emenda à Constituição4 apresentada ao Senado pelo então

Senador José Serra em 11 de junho de 1997. Tramitou por dois anos na casa, tendo como presidente e relator, respectivamente, o Senador Bernardo Cabral (PFL-AM) e o Senador Jefferson Peres (PDT-AM). Foi encaminhada à Câmara dos Deputados em 16 de junho 1999.

Apresentando-se como ex-membro da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças na Assembleia Nacional Constituinte, e portanto, conhecedor dos acontecimentos que levaram à presente estrutura dos artigos 163 e 192 da Constituição, José Serra constrói seu argumento diante do relato sobre o momento específico em que a Carta Magna fora escrita e seu posicionamento frente à ordenação do texto: desde o início contra sua formatação por não concordar com a existência no texto de matérias que normalmente deveriam ser reguladas por leis ordinárias. Contudo, não tendo na época alternativas de opor-se ao projeto devido à questões que julgava essenciais para o momento, tal como o contexto brasileiro que levava os constituintes a desejarem detalhar minuciosamente no texto constitucional os temas que eram objeto de debate na sociedade brasileira, e por acreditar que os ajustes necessários viriam da Comissão de Sistematização, onde se poderia retirar os diversos pontos que não caberiam em um texto constitucional - o que não ocorrera.

Assim posto, baseando-se nos enganos ocorridos na época, chama a atenção em sua proposta para a importância de reestruturar os objetivos que acabaram, pela redação, sendo distorcidos de seu sentido inicial a exemplo do inciso V do art.163 no qual aparece como exigência a "fiscalização das instituições financeiras". Segundo apresenta, a proposição tratava da fiscalização da Administração Pública e não das instituições financeiras.

No tocante ao artigo 192, o anteprojeto apresentado na Constituinte era composto apenas por menção à lei ordinária e não complementar - sendo o texto

4 A proposta possui 29 assinaturas válidas em seu registro, como cumprimento dos requisitos constitucionais. Assinam a proposta os senadores Casildo Maldaner (PMDB-SC), José Roberto Arruda (PSDB-DF), Humberto Lucena (PMDB-PB), Carlos Bezerra (PMDB-MT), Gilberto Miranda (PFL- AM), Esperidião Amin (PPB-SC), Nabor Júnior (PMDB-AC), José Bianco (PFL-RO), Lúcio Alcântara (PSDB-CE), Ramez Tebet (PMDB-MS), Bello Parga (PFL-MA), Lúdio Coelho (PSDB-MS), Edison Lobão (PFL-MA), Romeu Tuma (PFL-SP), Coutinho Jorge (PSDB-PA), Waldeck Ornelas (PFL-BA), Elcio Alvares (PFL-ES), João Rocha (PFL-TO), José Eduardo (PTB-PR), Júlio Campos (PFL-MT), Joel Hollanda (PFL-PE), Fernando Bezerra (PTB-RN), Sérgio Machado (PMDB-CE), Gilvam Borges (PMDB-AP), José Fogaça (PPS0RS), José Agripino (PFL-RN) e seu propositor, José Serra (PSDB- SP).

contestado por José Serra resultado da transformação que ocorrera ao longo dos trabalhos da Subcomissão e Comissão à época. Tais leis (originalmente ordinárias) regulariam as cartas patentes - na afirmação de não serem negociáveis e transferíveis; estabeleceria condições para a participação do capital estrangeiro em instituições financeiras - dois temas de grande relevância para o período, e trataria da organização do Banco Central e das instituições financeiras privadas. Este era o modelo previsto ao início mas que recebera em sua redação final o que Serra chamou de "atos impossíveis de serem definidos" (SENADO FEDERAL, 1997, fls.06), neste caso a limitação da taxa de juros reais e a transferência de poupança de uma região à outra, descaracterizando os objetivos primeiros da Subcomissão.

Assim, mediante a proposta de revogação do artigo 192 da CF, bem como o inciso V do artigo 163 e o artigo 52 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, questiona o uso de lei complementar ao invés de lei ordinária5 chamando

ainda atenção para o cenário que torna todo o processo de regulamentação do artigo 192 mais dificultoso: a determinação do Supremo Tribunal Federal, quando da disputa pela auto-aplicabilidade da taxas de juros entre BC, poder Executivo e PDT, em se efetuar a regulamentação via uma única lei complementar - que exige quórum qualificado para ser aprovada.

O fato era que à maneira como o artigo 192 fora estruturado na década de 1988 durante a Constituinte as dificuldades de alteração do curso sobre o Sistema Financeiro se daria pelas exigências de aprovações das proposições. Neste caso, o objetivo de Serra era por fim à todos os empecilhos contidos no artigo facilitando o processo de debate individual sobre temas relacionados ao SF. Da maneira como era apresentado deveria haver um consenso sobre todos as pautas referentes ao Sistema Financeiro editadas por uma única lei complementar - além da dificuldade de um consenso sobre todos os assuntos possíveis sobre a temática ainda seria necessária a aprovação em quórum diferenciado.

5 As leis ordinárias e complementares diferem tanto em exigência de quórum numa votação quanto em matéria: a lei ordinária requer maioria simples em votação e pode ser exigida de modo residual, enquanto uma lei complementar exige maioria absoluta e aparece em matérias específicas da Constituição, com um processo de votação muito mais trabalhoso. Assim, na defesa de uma alteração de lei complementar para lei ordinária justifica seu ponto de vista comparando a lei do Sistema Financeiro a outras que funcionam por lei ordinária e que são tão importantes quanto, tal como o Código Civil, o Penal e a Lei das Sociedades por Ações.

A apresentação dessa proposta ocorre no final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas somente com a possibilidade de Lula chegar ao poder é que há uma movimentação maior na tentativa de aprovar a proposta para que ao menos as possibilidades de atuação do SF fossem destravadas.