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Da complexidade do cenário e abrangência do texto Constitucional às indefinições do artigo

A crítica de incompatibilidade ao contexto atual e de envelhecimento que pesa à Constituição de 1988 e que procura justificar as tentativas de alteração de seus artigos é apontada por Menck (2008) como decorrente do excesso de detalhismo e da presença de textos divergentes. Seu caráter normalmente denunciado como ultrapassado e por vezes contraditório reflete o momento no qual fora produzida e a heterogeneidade de interesses presentes: um contexto ainda marcado pelo poder militar, pela inserção de movimentos populares no debate político como reflexo da luta pela retomada dos direitos civis e pela ação parlamentar de uma aliança

conservadora (MERCADANTE, 2008; SILVEIRA e SILVA, 2009) e culturalmente

estabelecida.

O emaranhado de transformações e disputas nos contextos mundial e nacional repercutem diretamente na formatação do texto, que na tentativa de se precaver de todos os possíveis contextos indesejáveis apresenta excesso de detalhes e propõe uma nova discussão futura através de regulamentação por leis complementares - fato que desencadeia críticas sobretudo relativas à condição à que fica submetida: influência de grupos de pressão e de forte representação parlamentar:

Em termos gerais, em praticamente todas as "concessões" foi mantida a tradição brasileira: a técnica protelatória. O que é isso? Nada mais do que deixar para depois, para a ação legislativa, o poder de "regulamentar" os

referidos artigos constitucionais. Com isso, duas coisas tornam-se possíveis e prática constante: regulamenta-se o que interessa às elites, e não se regulamenta o que é de interesse da maioria trabalhadora; como há a necessidade de regulamentar, quando há pressão, aproveita-se para propor Emendas Constitucionais com o objetivo de redefinir o tal direito, sempre na perspectiva de reduzir direitos - em nome de economia de recursos e de diminuir a participação popular no controle das instituições estatais e das políticas públicas - sempre em nome da falta de preparo da população para estas tarefas complexas (POLETTO, 2009, p.115).

Crítica que chama a atenção para o conflito presente no contexto de definição da Constituição e que coincide com o posicionamento do Partido dos Trabalhadores à época, que em a influência diversos momentos denunciou na formulação do texto dos grupos de elites ainda fortalecidos no recém cenário pós-ditadura - como consta no pronunciamento de Luiz Inácio Lula da Silva, na época deputado e líder do partido:

O PT, por entender que a democracia é uma coisa importante – que foi conquistada nas ruas, nas lutas travadas pela sociedade brasileira –, vem aqui dizer que vai votar contra este texto, exatamente porque entende que, mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituição1 (BOLETIM NACIONAL, out.1988).

Se de um lado a abertura da Constituinte à participação cidadã prometia limitar a incorporação de propostas do neoliberalismo - em ascensão mundial e conhecidas através das administrações de Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (Estados Unidos), atendo-se às desigualdades e acrescentando ao texto princípios de preservação da presença do Estado em atividades e setores cruciais para justiça social e o desenvolvimento nacional; de outro, sofrera de fato pressão de uma aliança conservadora (Centrão) determinando, dentre os avanços reivindicados, aqueles que seriam acatados.

Em meio aos diversos blocos suprapartidários que atuaram na Assembleia Nacional Constituinte, o 'Centrão' pode ser considerado um dos mais relevantes. Tratando-se de uma aliança apoiada pelo Poder Executivo na qual participavam PMDB, PFL, PDS, PTB, PL, PDT e PDC, e definida por Florestan Fernandes (1989)

1Na votação que realizou-se em 22 de setembro foram registrados 474 votos a favor do texto constitucional e 15 votos contra (todos do PT, embora um deputado do partido tenha votado a favor - João Paulo Pires de Vasconcellos (PT-MG)). Mesmo o voto tendo sido contrário ao texto o partido assina a Constituição reconhecendo sua importância para o desenvolvimento de um 'novo' país, como consta em documento reunido pela Fundação Perseu Abramo intitulado 'A Carta está pronta. E a luta continua' (PT na luta constituinte. n. 10, out.1988 - In: CENTRO SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA.. PT e a Constituinte 1985-1988, FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, N6, ANO 5, 2011).

como um bloco cuja união e atuação era favorável aos interesses do capital atuava em favor de interesses específicos de grupos culturalmente estabelecidos, tais como ruralistas, empresas internacionais e representantes do capital (COELHO, 1999),

muitas vezes em detrimento do empresariado nacional2. Sendo notável também sua

proximidade com empresas do setor de comunicações3, e com o poder Executivo -

governo Sarney, no cumprimento de suas demandas (SOUZA, 2001; RODRIGUES, 1987), tendo em troca o favorecimento na atuação política.

Durante a ANC a participação do grupo foi expressiva: 126 dos 303 parlamentares do PMDB que compunham a Assembleia eram integrantes do 'Centrão', 105 dos 135 do PFL, 32 dos 38 do PDS, 15 dos 18 do PTB, 5 dos 7 do PL, 3 dos 26 do PDT e 4 dos 6 do PDC (MENEGUELLO, 1988; RODRIGUES, 1987), e estavam a frente de importantes comissões e subcomissões concentrando-se nos cargos do PMDB de relatoria e presidência - sendo o primeiro preferência na medida em que o permitia maior e mais direta influência nos textos a serem produzidos.

Embora o posicionamento favorável ao mercado por parte de grupos de forte expressão como este, nasce o texto constitucional de 1988 com o intuito de estabelecer no país um modelo de capitalismo organizado e humanizado - distinguindo-se da lógica desregulada e livre de funcionamento do mercado. Contudo, este interesse demonstrou-se frágil ao longo dos anos subsequentes à aprovação do texto. Presente mais no discurso do que na prática vai aos poucos desaparecendo, sobretudo na década de 1990 com a subordinação à Economia global, cujo modelo é o

capitalismo autorregulado4 (MERCADANTE, 2008).

2 Embora o Centrão tivesse ligação com o empresariado brasileiro, na disputa de interesses, dada sua proximidade com o poder Executivo, o último era privilegiado prejudicando os primeiros (SOUZA, 2001).

3 Segundo Lamarão (2001) em média 20% dos parlamentares participantes da ANC estavam ligados ao setor das comunicações fosse por vínculo pessoal, como proprietários, sócios ou cotistas de empresas jornalísticas, ou pelo fácil acesso e presença nos meios de comunicação em massa. Lima (1998) ressalta que concessões de emissoras de rádio e televisão, interesse dos membros do Legislativo e mais fortemente do Centrão, serviram de moeda política na troca de apoio para o grupo no poder Executivo. 4 Tema de abrangente discussão a globalização, da Economia neste caso, trouxe novos parâmetros de atuação e de análise de desempenhos econômicos para o contexto mundial e também brasileiro. Situação que prevê um enfoque muito maior no capital do que na produção, culminando em um debate que leva ao surgimento de outro conceito - o de mundialização. Conceito este que segundo Lebaron (2003) permite considerar tal processo como um fenômeno social e uma dinâmica política que altera as chaves cognitivas de compreensão da sociedade. Inicialmente utilizado por François Chesnais problematizava o fenômeno da globalização, contrapondo-se à esta noção vista como liberalizante sobre o capitalismo mundial.

Assim na tentativa de cumprir o diálogo com o contexto nacional de retorno às liberdades civis, com o interesse em controlar a economia nacional marcada pela falência do Plano Cruzado, aumento galopante da inflação e retração dos setores produtivos, e inserir-se no modelo de economia globalizada, diversas alterações no texto constitucional passam a ser propostas com o objetivo de flexionar seu conteúdo. Por meio de justificativas de refinamento e aperfeiçoamento aliadas à manobras como as medidas provisórias, questões importantes são submetidas à grandes alterações.

As privatizações apresentam-se como exemplares. Entendidas como modernizadoras, buscaram reclassificar os princípios da empresa estatal na Sociedade aproximando-os daqueles presentes nos modelos da "nova empresa" que surgiam no plano privado (PEDROSO NETO, 2006). Processos que ganharam peso diante da influência da política neoliberal nos quais os governos Collor e Fernando Henrique

Cardoso foram considerados seus principais defensores5 (LIMA DA COSTA, 2009).

É válido, portanto, atentar-se aos contextos em que as propostas de alteração do texto constitucional se apresentaram como necessárias e os grupos envolvidos neste processo, levando em conta o complexo jogo político - notável arena de circulação de interesses que disputam a definição do campo do poder.

O artigo 192 da CF o qual versa sobre o Sistema Financeiro Nacional é um dos que por muito tempo mantiveram-se inalterados, concentrando disputas entre visões de mundo que abarcavam propostas divergentes sobre a conduta político- econômica e mais precisamente sobre o entendimento do que poderia ser encarado

como desenvolvimento – uma das atribuições do artigo6. As discussões concernentes

às alterações a serem realizadas no art.192 envolviam tanto o problema normativo sobre a necessidade de uma ou várias leis complementares para a regulamentação do SF, como a mudança na visão sobre a administração financeira brasileira e a

5 Vale ressaltar que contaram também com o apoio de atores específicos, importantes na disseminação e legitimação desta lógica que se deslocaram do mundo da produção para o do capital - em sua maioria, consultores ou gurus gerenciais, contribuindo para a estruturação de uma nova lógica muito disseminada por um incipiente segmento da mídia, especializada em negócios (DONADONE, 1999 e 2000).

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A redação atual do seu caput, o qual versa sobre a relação entre a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional e o desenvolvimento do país aparece da seguinte forma: “Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar (...)” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL In: A Constituição e o Supremo. Disponível em:

consideração de pontos específicos do avanço econômico frente às problemáticas enfrentadas em seu contexto, a exemplo da estabilização da moeda e o domínio da inflação (OLIVEIRA FILHO, 2008 e TOR, 2013).

Sem a regulamentação do artigo 192, não havia portanto delimitações legítimas específicas para as ações a serem tomadas na construção do espaço financeiro brasileiro, prevalecia no âmbito do Sistema Financeiro a Lei n. 4595 de 31 de dezembro de 1964 sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, e que criara o Conselho Monetário Nacional7. A partir dela o Banco Central seria responsável pela execução das normas vindas do CMN - responsável pela política monetária e de crédito. Foi tomando como norteadora a Lei de 1964, que outras leis e resoluções também se estabeleceram, mesmo depois da Constituinte, tais como aquela que pronunciava sobre alterações na composição do Conselho Monetário Nacional em que apenas o presidente do BC, o Ministro da Fazenda e o Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão passam a ser membros (Lei n0. 9069, de 29 de junho de 1995) e a resolução criando o Fundo Garantidor de Crédito - FGC

(Resolução do CMN n0. 2211) por meio da competência atribuída ao CMN pela Lei

n0.4595 - o artigo 192 permanecia assim ignorado.