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Embora as eleições de 2002 tenham tido como principal confronto aquele entre os candidatos Lula (PT) e José Serra (PSDB), as considerações sobre o primeiro estiveram, durante todo o período sempre voltadas para a sua comparação com Fernando Henrique Cardoso. Esta disputa, explorada mais adiante, requer a compreensão da indumentária simbólica que cada um dos envolvidos carregava junto de si. Frutos de duas realidades distintas são confrontados na cena política como representantes de dois caminhos entre os quais a Sociedade deveria se decidir.

No plano das construções metafóricas, a serem também exploradas, as distinções entre os candidatos revelam os desejos em torno da construção da Sociedade brasileira por aqueles que as produzem e reproduzem. Sendo assim, antes

de serem apreciadas, exigem a caracterização de cada um de seus envolvidos9 para

que seja possível identificar na disputa quais credenciais possuem maior peso na legitimação como candidato à presidência. Cabe ainda, o questionamento sobre a competição que se estabelece entre Fernando Henrique e Lula, na medida em que Serra era o candidato da situação. Muito provável, como já demonstrado, sua pouca força política até mesmo dentro do partido reverberou de modo insuficiente, aos olhos da mídia, como um perfil capaz de vencer a sede de conquista que Lula representava após três tentativas de chegar ao Poder Executivo.

De origem humilde, filho de casal de nordestinos - pobre e nordestino, Luiz Inácio Lula da Silva é o retrato de muitos brasileiros que enfrentaram a saída de sua terra natal para estados mais desenvolvidos, com maiores oportunidades. É também, para alguns, símbolo de força e de luta dada a trajetória percorrida até de fato a sua transformação em candidato legítimo.

Seu perfil sindical é fruto do período desenvolvimentista trilhado por Juscelino Kubitschek, do processo de rápida industrialização da região do ABC na

Grande São Paulo10 e das investidas de seu irmão, frei Chico, militante do PCB em

tempos de ditadura, para que frequentasse as reuniões no sindicato. Deste contato, surge a possibilidade de ocupar vaga de suplente na diretoria do sindicato, em 1969, assumindo posteriormente a sua diretoria, e em 1975 a presidência. Passa então a liderar os movimentos de reivindicação da classe trabalhadora - comanda entre 1978 e 1980 greves gerais cujas proporções o tornam um dos maiores nomes da oposição no cenário político do país, culminando em sua prisão por um mês (CPDOC).

No mesmo período, surge o Partido dos Trabalhadores cuja visibilidade no plano político arrecada apoio e influência de intelectuais, religiosos, artistas, estudantes e militantes egressos da luta armada. Lula é eleito seu primeiro presidente e no curso de sua carreira política eleito deputado federal em 1986. Durante a constituinte, à frente do Partido dos Trabalhadores concentra sua presença em

9 As informações aqui apresentadas foram retiradas dos perfis dos três políticos dos sites do Senado e da Presidência, do Verbete Biográfico do CPDOC e de páginas dos partidos aos quais os três personagens se filiam.

10 A região, durante o período, foi uma das mais industrializadas do país com a presença de grandes metalúrgicas mundiais como Scania e Volkswagen.

comissões cujas conquistas permeavam os direitos civis e sociais (direito à greve, à licença-maternidade, à redução da jornada de trabalho).

Torna-se ao longo dos anos opositor crítico e político do governo de FHC mostrando-se claramente contrário à política econômica de recessão e de manipulação do câmbio para a estabilização da moeda nacional, à programas de privatização e de recuperação de instituições financeiras como o Proer (Instituto Lula, 2002). Por três campanhas intentou o Poder Executivo perdendo para Fernando Collor e Fernando Henrique, no primeiro e segundo mandato. Em 2002 sai vitorioso na disputa levada à segundo turno com o então ex-ministro do Planejamento e da Saúde de FHC, José Serra, também filiado ao PSDB e candidato da situação.

Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, de elevada origem social compartilha de um círculo familiar notadamente relevante para a história brasileira. De seu bisavô - chefe do Partido Conservador de Goiás durante o Segundo Império, senador e presidente de província, à seu pai - de carreira militar, como general, participante das revoltas tenentistas, oficial de gabinete do ministro Góes Monteiro e posteriormente deputado federal por São Paulo, tivera na família outros membros com importante papel no cenário político nacional - a exemplo também de seu tio Augusto Inacio do Espírito Santo Cardoso, ministro da Guerra de Vargas durante o período de 1931 a 1933. Como ressalta Garcia (2004, p.288) "seu círculo familiar mais direto esteve no palco dos acontecimentos da Revolução de 1930" havendo também participações em campos antagônicos como no levante de 1932.

Nascido no Rio de Janeiro sua formação escolar se deu em colégio de bairro nobre em São Paulo, frequentado por descendentes de famílias afluentes - desde cedo tivera aulas particulares de francês, comum, segundo Garcia (2004) às famílias abastadas e cosmopolitas do Brasil na Primeira República. Cursa a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP tendo como principal professor Florestan Fernandes (de origem modesta, descendente de imigrantes portugueses e que cumpre seus estudos secundários a partir de exames supletivos). Durante o período universitário, o marxismo torna-se distintivo para a imagem do jovem sociólogo (GARCIA, 2004, p.291) o qual nos anos 1950 junto a um grupo formado por jovens

professores e estudantes reunem-se para a leitura de O Capital, de Karl Marx11.

No campo acadêmico dirigiu o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho

(Cesit) a partir de sua aproximação com Alain Touraine12, tendo sido também diretor

do Cebrap época em que fora convidado a elaborar o novo programa do MDB, presidido por Ulysses Guimarães, transformando-se em seu grande interlocutor.

Em seu exílio, durante o golpe militar, percorreu as mais prestigiadas instituições internacionais, como o Instituto de Estudos Avançados de Princeton

(EUA), o Collège de France (França) e a Comissão Econômica para a América Latina

e o Caribe (Cepal) e o Instituto Latino Americano de Planejamento Econômico e Social (Ilpes) no Chile.

A partir do contato com Ulysses Guimarães, Fernando Henrique se candidata em 1978 ao Senado - em sublegenda que somava seus votos ao de Franco Montoro (PSDC), assumindo o cargo quando este se candidata a governador. Neste momento, segundo mostra Garcia (2004), há uma baixa na produção de análises sociológicas ou de ciência política e um aumento do número de trabalhos cujo intuito era defender suas tomadas de posição e escolhas de alianças, o que evidencia sua concentração nas atividades políticas.

Embora as investidas no campo da política tenham ocorrido desde os anos 1950 ao lado de seu pai - participando, por exemplo, das campanhas pelo monopólio estatal do petróleo e pela criação da Petrobras, sendo posteriormente convidado para o cargo de editor da revista do Partido Comunista 'Problemas' - destinada aos intelectuais e para membro do conselho editorial da revista marxista Fundamentos, fundada por Caio Prado Jr., sua grande guinada no mundo da política se dera a paritr de meados dos anos 1970.

Em 1985, candidata-se à prefeito de São Paulo, sendo derrotado e em 1988 atua na Assembleia Constituinte como Senador. É na década de 1990 indicado como Ministro das Relações Exteriores e posteriormente para Ministro da Fazenda com a responsabilidade de promover a estabilização monetária - ação bem sucedida que lhe

11 Faziam parte deste grupo José Arthur Gianotti, Octavio Ianni, Ruth Cardoso, Roberto Schwartz, Michael Lowy, dentre outros.

12 Sociólogo francês cuja obra dedica-se à sociologia do trabalho e dos movimentos sociais, teve

assegurou a Presidência nas eleições de 1993.

Sobre a guinada de Fernando Henrique para um lado mais distante das suas lutas iniciais Garcia (2004, p. 296) ressalta:

Note-se que, após contribuir para a consolidação da idéia de um partido de trabalhadores, o que pode ser seguido pelas suas intervenções nos jornais de oposição à ditadura, como Opinião e Movimento, não acompanhou seus antigos colegas da USP, nomes emblemáticos das ciências sociais paulistas como Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, entre outros, na criação do PT, preferindo continuar seu itinerário em companhia daqueles que constituíram seus capitais políticos antes de 1964 ou na época do regime militar.

José Serra, filho da classe média, cursou engenharia civil na Escola Politécnica de São Paulo - período em que tem início seu contato com o movimento estudantil. De presidente da UEE, União Estadual dos Estudantes de São Paulo torna- se membro da Ação Popular e chega à presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1963 permanecendo por um período em que ocorre os principais acontecimentos políticos e sociais da época.

Com a ascenção do regime militar vai para exílio na França uma vez que a UNE13 passa a ser considerada ilegal e seus dirigentes perseguidos. Logo depois, transfere-se para o Chile onde atua como professor e pesquisador da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo sido também professor e pesquisador do Instituto de Economia da Universidade do Chile - momento em que Fernando Henrique Cardoso também estivera no exílio.

Durante este período, realizou os cursos de planificação e desenvolvimento econômico no Institut International de Recherches et de Formation en voe du Développement Harmonisé, Economie et Humanism,e na França; o curso de planificação de desenvolvimento econômico na Universidade do Chile - onde obteve título de mestre em Ciência Econômica. Após o golpe militar, que derruba o presidente Salvador Allende no Chile, vai para os Estados Unidos e se torna doutor em Economia pela Universidade de Cornell e também professor no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton.

De volta ao Brasil, em 1978, candidata-se à deputado federal pelo MDB mas

13 A UNE tinha intensa atuação e defendia a proteção dos interesses nacionais e ampliação das liberdades democráticas.

tem sua candidatura impugnada. É neste momento que se torna professor da Faculdade de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e aproxima-se ainda mais de Fernando Henrique Cardoso e de outros intelectuais como Luís Carlos Bresser-Pereira e André Franco Montoro Filho durante a campanha de Fernando Henrique para o Senado, em 1978 pela legenda do MDB. Com o fim do bipartidarismo ingressa no PMDB assumindo a coordenação do programa de governo de Montoro tornando-se posteriormente seu Secretario de Planejamento. Participa da campanha de Tancredo Neves, sendo escolhido para coordenar a equipe de economistas responsáveis pela elaboração do programa econômico do candidato juntamente com Celso Furtado, Helio Beltrão, Luciano Coutinho, Sebastião Marcos Vital, Sérgio Quintela e Sérgio de Freitas - comissão transformada na Copag (Comissão do Plano de Ação do Governo).

Em meados dos anos 1980 disputa o mandato de deputado na Assembleia Nacional Constituinte pelo PMDB, tornando-se relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, e membro da Comissão de Sistematização na constituinte. Ao final da década de 1980 participa da fundação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) notadamente composto por políticos egressos do PMDB. Sob a legenda do PSDB candidata-se à prefeito de São Paulo, sendo vencido por Luísa Erundina (PT). Em 1990 se reelege à deputado federal com o apoio da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).

Com a eleição de FHC, Serra é cogitado para Ministro da Fazenda mas logo seu nome é substituído pelo de Pedro Malan, indo então para o Ministério do Planjamento. Em 1996 é convidado a assumir o Ministério da Saúde, aceitando apenas em 1998 substituir Carlos Albuquerque, dando prioridade à saúde básica e ao Programa de Saúde da Família intensificando também a política de incentivo à produção de genéricos, o combate ao tabagismo e quebrou a patente da AIDS.

Em 2002 é anunciado como candidato à sucessão do presidente FHC o que gera desavenças no partido diante de apoiadores do governador do Ceará Tasso Jereissati. Ao longo do período eleitoral Serra se enfraquece a partir da escolha de um nome do PMDB para candidato à vice-presidente, ação que gera o rompimento com o PFL, o qual lança a candidatura de Roseana Sarney - que não dura muito. Mesmo com Reseana impedida de continuar a briga pelo posto presidencial, o PFL se mantém distante do PSDB e ao final de 2002, já em período próximo às

eleições perde o apoio também do PTB e do PPB. Vai às urnas enfrentando Lula cuja coligação era fortalecida pelos partidos PCdoB, PCB, PMN e PL - a partir da indicação de seu candidato à vice José Alencar. Com disputada acirrada em primeiro turno, disputa o segundo com Lula tendo apoio dos dois outros principais candidatos do primeiro turno - Ciro Gomes e Anthony Garotinho.

A partir das trajetórias apresentadas pode-se perceber que Lula em sua trajetória galgou um cenário que lhe permitiu a construção de um perfil voltado para a luta e enfrentamento da realidade até supera-la. De menino pobre à lider sindical e deste à disputa presidencial sua trajetória lhe conferiu um perfil forte, que 'se move para frente' - mesmo que a imagem disseminada na mídia tentasse provar o contrário e assimilar seu caráter fortemente reivindicador como próximo a de líderes terroristas.

Se comparada, a trajetória de José Serra caminhou em sentido inverso considerando-se que desde o início fora sempre um nome cogitado em diferentes momentos para assumir cargos políticos, mas logo substituído por outros de perfis mais robustos. Suas idas e vindas do Congresso para o Governo e diversos mandatos interrompidos em nome de outro interesse momentâneo, tais como a candidatura à prefeitura de São Paulo ou ao governo do estado de São Paulo permitia a sua caracterização como um político indeciso, sem rumo certo - não oferecia, portanto, uma imagem oposta e com o mesmo peso daquela de Lula. Fernando Henrique Cardoso pelo contrário, como visto, vindo de família abastada cujo círculo político ativo brasileiro estivera próximo de sua vivência, fornecia as oposições necessárias à imagem que a campanha de Lula vinha tentando demonstrar.

Se Lula não tinha formação acadêmica, FHC apresentava-se como um dos grandes intelectuais do país, se Lula lutara pelas liberdades democráticas e pelo direito dos trabalhadores, Fernando Henrique vivenciou de perto muitas das tranformações ocorridas no cenário brasileiro tendo ainda um papel ativo na luta pela democracia, sobretudo como intelectual. Para o caos, a violência - da qual os atos das greves eram revestidos pelo olhar crítico e enviesado da mídia e de seus opositores, e o 'interesse pelo bate-boca' desenfreado, se contrapunha a imagem de FHC - capaz de oferecer reflexão, polidez e pacifidade. Assim, é possível concluir que o projeto de país que previa a permanência do legado de Fernando Henrique Cardoso no comando tratava-se de um projeto em que a elite continuaria no comando.

Destarte, é a partir destas oposições que são criadas as imagens de Lula ao longo de suas candidaturas à Presidência e notadamente daquela de 2002. É com este olhar portanto, que a tese visa interpretar a formação de enquadramentos sobre o candidato Lula e consequentemente sobre o cenário que este poderia instaurar.

Como lembra Garcia (2004) e pode ser observado retomando as campanhas eleitorais do período em que era candidato, sua condição de Sociólogo era utilizada como prova de sua capacidade para enfrentar o desafio da mundialização dos mercados e lutar contra a crescente desigualdade no contexto brasileiro. Pondo-se em relevo pela condição de intelectual criava distinção entre os seus reais interesses, fruto de pesquisas e constatações, e os interesses daqueles que considerava especialistas da política cuja motivação residia em manterem-se no jogo político pela preservação de seus mandatos eletivos.

Produção da desconfiança - classificações em um período de disputa