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Produção da desconfiança classificações em um período de disputa eleitoral

Eu não sou o resultado de uma eleição. Eu sou o resultado de uma história (...) (LULA, Discurso de posse, 01/01/2003)

As transformações físicas e discursivas do candidato Lula apareceram frequentemente ocupando capas ou matérias principais de jornais e revistas, numa reconstrução de sua trajetória pautada, segundo tais fontes, no pleno interesse pelo poder, que desvinculava o personagem das ideologias pregadas desde o início de seu partido - na década de 1980, e nas suas candidaturas anteriores. Esta nova identidade apareceu por vezes atribuída à sua imagem corporal na campanha, e a presença de Duda Mendonça como marqueteiro responsável por sua assessoria se tornava

evidência, para os críticos, de que Lula realmente trocara de lado (SANTOS e ROMUALDO, 2012).

Duda Mendonça14 tornou-se um dos mais importantes publicitários brasileiros,

reconhecido no cenário nacional por comandar campanhas políticas vitoriosas em diversas eleições. Seu trabalho nas eleições presidenciais de 2002, quando da eleição de Lula, foi alvo de muitos elogios entre os profissionais da área, mas também de críticas pela 'desconfiguração' da antiga imagem do candidato. Também foi o responsável pela campanha de Paulo Maluf à Prefeitura de São Paulo em 1992, pela campanha de reeleição da ex-prefeita Marta Suplicy em 2004 e pelas campanhas de Ciro Gomes e Cid Gomes no Ceará, respectivamente à deputado federal e a governador, em 2006.

Ninguém sabia quem era o Lula, ele era uma barba política. Resolvi mostrar que ele era um homem casado, que tem família, netos, que é um bom pai [...] Eu não mudei o Lula. Meu esforço foi o de mostrar que o Lula poderia ser ele mesmo. O Lula que aparecia nas campanhas - mal humorado, cara de bravo, rancoroso – era de mentira. Se eu tive algum mérito nessa campanha foi convencê-lo a ir para a televisão como ele é: chorar, rir, piscar o olho, ser sedutor, brincalhão. (Duda Mendonça in MARKUN, 2004, p. 331, 332).

Como aponta Azevedo (2009), o Partido dos Trabalhadores que vence a eleição presidencial em 2002 não era mais o mesmo partido, o partido dos movimentos sociais de seus primeiros anos. Trata-se de um partido moderno integrado ao sistema político e econômico. Assim localiza o PT dentro de uma trajetória de trinta anos em duas fases distintas: orientação do partido (voltado para movimentos sociais x partido parlamentar e eleitoral); posição em relação às alianças eleitorais (orientadas para esquerda/centro político) e posicionamento ideológico (socialista x socialdemocrata). Desse modo, nada mais comum do que críticas e questionamentos sobre a sua 'evolução', incompreendida por alguns.

Identidades contraditórias são apresentadas como incoerência daquele que apenas se interessa pelo poder. Neste contexto, por influência de trabalhos como os de Santos e Romualdo (2002) que buscam trabalhar o papel da mídia na consagração de imagens de candidatos durante as campanhas eleitorais, o presente tópico visa captar

14 Em outubro de 2004 preso em flagrante em operação contra rinhas de galo realizada pela Polícia Federal. Em 2005 é acusado de envolvimento no escândalo do mensalão diante da declaração de abertura de conta bancária nas Bahamas por influência de Marcos Valério, também acusado de participação no esquema.

as divergências criadas nesse âmago para a desqualificação de Lula diante da análise de matérias sobre o candidato - a dualidade entre as duas personalidades atribuídas à Lula (Sapo Barbudo e Lulinha Paz e Amor) entram aqui como caracterizadores do processo de introdução da dúvida, do medo do incerto.

É importante, entretanto, uma rápida abordagem sobre a imagem atribuída à Lula desde a sua primeira candidatura. Diante disso, optou-se por concentrar a construção de sua imagem emitida pela Revista Veja - considerada há muito como um partido diante de suas colocações enfáticas em favor do programa defendido pela agenda neoliberal, na medida em que os pontos marcantes da categorização de Lula pudessem ser contrastados com dados de pesquisas já existentes sobre o assunto em eleições anteriores. Considera-se que seu posicionamento extremado, embora caricatural, se apresente como o ponto máximo da construção dos enquadramentos transformando-se, portanto, digno de análise principalmente se for considerada a reputação de que a revista era um dos maiores 'carrascos' de Lula (MACHADO, 2006).

Para Azevedo (2009) houve, a partir da aliança do PT com o PL nas eleições de 2002 através da indicação de seu vice, uma reinterpretação da imagem de Lula reafirmada com a 'Carta aos Brasileiros' - na qual Lula se comprometia com a política de estabilidade monetárias e com os compromissos assumidos por FHC notadamente com o FMI. Esse novo olhar sobre o PT garantiria o sucesso do marketing político desenvolvido por Duda Mendonça por meio do personagem 'paz e amor'. Contudo, percebe-se pelo acompanhamento das notícias e dos comentários direcionados à nova imagem do candidato uma crescente desconfiança - altera-se o discurso, Lula deixa de ser o vilão assumido e passa a ser pérfido na medida em que esconde seus objetivos por trás de uma imagem 'falsa'.

Muito dessa desconfiança, como aponta Singer (2010), se deve à alma radical do partido, que em seu início pelo contexto, dependia de um posicionamento mais intenso para se fazer ouvir, posicionamento este contrário ao exigido nas eleições de 2002 diante de um cenário cuja abertura econômica fortalecera o mercado e os investidores. Considerando o que chama 'as duas almas do partido', o autor destaca quatro macro-orientações na intepretação da atuação do PT ao longo dos anos: a primeira referente à moderação do discurso, a segunda concentrando-se na transformação de um partido ideológico para uma legenda disposta a atrair votos

independente de suas convicções, enquanto a terceira linha ressalta a perda de vínculo com os movimentos sociais diante de sua inserção privilegiada no Estado e a última a transformação nas suas fontes de apoio, as quais passam por uma intensa popularização.

Nas eleições de 1989, o PT concentrava-se ainda no que Singer denominou 'alma radical', esta foi captada pela imprensa que figurou seu candidato pela imagem daquele que causa medo (SILVA, 2006; THIBES, 2012). Era inimaginável o que Lula poderia fazer ao Brasil diante de um "radicalismo absurdo" no qual era defendida a ortodoxia do marxismo e a ditadura do proletariado"(VEJA, 29 de novembro de 1989), estaria a esquerda interessada em estatizar ainda mais a economia e fazer a reforma agrária? Derrotar Lula estava entre os alertas sucessivos da revista à seus leitores após a quantidade de votos em primeiro turno leva-lo para o segundo juntamente com Collor. Nitidamente a agressividade era imputada ao candidato como sinônimo do comunismo, das greves e da luta de classes. Análises eram feitas e depoimentos eram retransmitidos como no caso citado por Silva (2006) da declaração de José Eduardo de Andrade Vieira, dono do banco Bamerindus: "Não acredito na vitória do PT, mas se por acaso Lula for vencedor, viriam dias negros para o país"15.

Nas eleições seguintes, em 1994 o enquadramento de Lula caminha muito mais para o risco econômico e as chances de interromper o projeto de modernizacão do país. Lula passa então a ser arcaico nas ideias e por isso incapaz de liderar o país. Como ressalta Thibes (2012), investe-se na construção da imagem de FHC como candidato perfeito para agradar interesses opostos na Sociedade: Fernando Henrique agradava tanto Fiesp, quanto FMI tendo ainda vínculos com a esquerda a partir do seu contato com alunos que fundaram o PT (VEJA, 16 de março de 1994). Nesse período é explorada também a imagem contraditória de Lula e seu partido uma vez que são denunciadas alas radicais do PT em contraposição à imagem mais branda que Lula tentava construir: denuncia-se o abandono da firmeza e a falta de preparo expressada pela máxima: “começa a gaguejar nas indecisões” (VEJA, 23 de fevereiro de 1994; VEJA 15 de junho de 1994). A mudança no símbolo da campanha também se torna alvo de denúncia de um comunismo às escondidas quando substitui o vermelho pelo verde-amarelo em sua campanha.

15 Esse posicionamento muito se assemelha ao ocorrido em 2002 quando George Soros declara que o Brasil estará perdido caso Serra perca as eleições para Lula.

Segundo Silva (2006, p.142),

Lula não é um candidato que tranquiliza. Com um braço na CUT e outro nos sem-terra, o PT é um partido associado à idéia de desordem. Em caso de vitória de Lula, existe a possibilidade de elevação da temperatura social do país, com greves e invasões de terras numa escala como nunca se viu. (...) O PT é contra as privatizações de estatais e seu programa admite reestatizar empresas privatizadas. Diz que pretende estimular a geração de empregos retirando dinheiro estocado no mercado financeiro – o que só seria possível a partir de intervenção no mercado de matiz caloteiro.

Já em 1998, Lula é apresentado de forma ainda mais distorcida de seu perfil 'original'. Matérias como "Lula entra no jogo"(VEJA, 10 de junho de 1998) e “Plano pela metade: Lula divulga um programa que não conta para onde vai o Brasil caso ele ganhe as eleições" (VEJA, 8 de julho de 1998), portanto, o colocam no papel de indeciso sobre os rumos que deverá tomar se eleito, sintoma apontado como decorrente de sua 'descaracterização'.

No período eleitoral de 2002, o contexto brasileiro, exaltado como sucesso nas eleições anteriores diante do legado da equipe econômica do Governo Itamar, alterara-se um pouco. O Plano Real apresentava desgaste e o acirramento dos problemas sociais diante das políticas neoliberais passam a ser alvo dos críticos do governo FHC. Diante de chances reais de vitória, Lula adota um perfil 'light' comparado àquele adotado nas disputas anteriores - mudança que é imediatamente retida pela mídia, que explora ao máximo as alterações de imagem do candidato - desde de físicas até discursivas, como prova de seu interesse em alcançar o poder.

Questiona-se seu posicionamento frente aos ideais do partido e interroga-se sobre sua proximidade com o socialismo diante da nova orientação às críticas ao mercado e à seus opositores.

O Lula da campanha fez tudo para apagar o Lula da história recente. ‘O mundo e o Brasil mudaram. O PT e eu mudamos’, repete ele. Lula sacramentou o acordo do governo com o FMI, comprometeu-se com a estabilidade e com a diminuição dos gastos públicos e até mesmo elogiou a política desenvolvimentista da ditadura militar (VEJA, 25 de setembro de 2002).

É apontado como uma possibilidade, diante das pesquisas de opinião realizadas, mas ainda assim é considerado um risco: a ambiguidade poderia ser indícios de um candidato perdido em seus propósitos, por isso é necessário encontrar dentre os candidatos o perfil "anti-Lula" - para fazer frente às possibilidades de sua vitória (VEJA, 17 de julho de 2002).

perigoso:

Não se pode esperar que um petista se entusiasme de coração com privatização, enxugamento da máquina estatal, reforma da Previdência e combate árduo ao déficit público, como foi ou está sendo feito nos países mais avançados. O petista vive num claustro cheio de divisões e seitas e, na maioria dos casos, carrega um passado de militância em favor de um modelo de sociedade que deixou de existir com a queda do Muro e Berlim, em 1989 (VEJA, 17 de julho de 2002).

Contudo, sua transformação também é vista como uma 'lição aprendida' pelo partido de que as mudanças ocorridas no mundo prevêem que "sejam separadas a fantasia da realidade", de que "o igualitarismo utópico" deveria ser feito fora do expediente de trabalho (VEJA, 17 de julho de 2002).

A partir desse momento, as abordagens pautam-se no reconhecimento de que o partido possui duas frentes, uma ideológica e não condizente com a realidade imposta pela necessidade de modernização da Sociedade brasileira e outra composta por "lideranças mais lúcidas", sendo a primeira delas o grande empecilho para os avanços de Lula como um candidato seguro ao plano econômico nacional.

Assim, sua imagem é por vezes dissociada do partido na busca por explicações sobre sua aceitação nas pesquisas (VEJA, 12 de junho de 2002), por ora associada ao perfil radical do partido para justificar e ressaltar a desconfiança do mercado com relação às suas chances de vitória:

A parte mais progressista e moderada do PT descobriu recentemente que jamais chegaria a lugar algum com aquela pregação ultrapassada de um modelo socialista para o Brasil, num momento em que os regimes comunistas foram varridos do mundo inteiro a partir do fim dos anos 80, só deixando vestígios em duas ditaduras, a de Cuba e a da Coréia do Norte. Até o último momento o PT continuou fazendo oposição irresponsável ao governo Fernando Henrique Cardoso, mas às vésperas da eleição presidencial finalmente resolveu dizer que estava jogando a toalha (VEJA, 03 de novembro de 2002)

O PT, se eleito, terá de passar por uma 'prova de fogo', diz Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas e ex- presidente do Banco Central. ‘As expectativas negativas que se criaram em torno do partido são uma ameaça no curto prazo. A taxa de risco pode disparar. Lula precisaria agir rápido, construindo uma ponte de credibilidade que o ajudasse a superar os problemas dos primeiros meses’(VEJA, 25 de setembro de 2002).

Neste momento torna-se interessante o uso de personagens ligados ao mercado financeiro como prova dos riscos que Lula gerava a partir da possibilidade de sua eleição, a exemplo de entrevistas com George Soros e banqueiros nacionais. A ideia é apontar o que já vinha sendo dito em momentos e campanhas anteriores: Lula não tinha preparo suficiente para assumir a presidência diante das exigências e tendências

econômicas mundiais - essa manobra é realizada durante a campanha e posteriormente nos primeiros anos de governo como forma de deslegitima-lo:

No derrotismo, o medo toma conta e o desastre parece iminente. ‘A turbulência no Brasil tem suas causas nas incertezas políticas em relação às eleições de outubro’, disse John Taylor, subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos. O FMI manifestou a mesmíssima opinião. Nem um nem outro chegou a apontar claramente Lula como o fator gerador de incerteza. Esse papel coube ao megainvestidor George Soros, cujo nome e as crises parecem andar juntos. ‘O mercado vai impor José Serra’, disse Soros ao jornal Folha de São Paulo. O que ele quis dizer é simples. A eleição de Lula, segundo Soros, estrangularia os investimentos externos e levaria ao Brasil à moratória antes da posse do novo presidente (VEJA, 19 de junho de 2002).

As tentativas de impor a dúvida sobre a imagem de Lula continuam mesmo após a sua vitória em segundo turno. O tema principal passa a ser a formação dos ministérios e a categorização de cada um dos seus escolhidos - o olhar recai principalmente sobre José Dirceu, Antônio Palocci e Luiz Gushiken, vistos como os 'cabeças' por trás do sucesso de Lula e denominados a tróica do governo.

Não se sabe até quando vai durar a boa vontade da cúpula petista em relação ao mercado, tão odiado no PT até meses atrás. As primeiras manifestações dos mosqueteiros de Lula na semana passada, no entanto, parecem reafirmar aquilo que, a portas fechadas, os cardeais do partido vinham garantindo antes da eleição: as alas radicais e reacionárias do PT estão sob controle da hierarquia do partido, e não se espera que incomodem a ponto de confundir o jogo [...] A parte mais progressista e moderada do PT descobriu recentemente que jamais chegaria a lugar algum com aquela pregação ultrapassada de um modelo socialista para o Brasil, num momento em que os regimes comunistas foram varridos do mundo inteiro a partir do fim dos anos 80, só deixando vestígios em duas ditaduras, a de Cuba e a da Coréia do Norte. Até o último momento o PT continuou fazendo oposição irresponsável ao governo Fernando Henrique Cardoso, mas às vésperas da eleição presidencial finalmente resolveu dizer que estava jogando a toalha (VEJA, 03 de novembro de 2002).

Embora Azevedo (2009) aponte uma queda do percentual negativo da cobertura sobre Lula na mídia se comparada à eleições anteriores às de 2002, depois da adoção de um perfil mais flexível pela imagem do 'Lulinha paz e amor', apreende- se ao longo da análise que já haviam sido lançadas as categorias para a interpretação do candidato como personificação do incerto, do inseguro.

Mesmo que os esforços da campanha tenham sido para estabelecer um candidato cuja imagem era a de confiabilidade, sem interesse em rupturas e ataque às elites (Lulinha paz e amor e Lula light), a imagem de Lula é criada frente à imagem de Fernando Henrique Cardoso e seu legado econômico do primeiro mandato, assim a ideia sobressalente é a de Lula como 'sapo barbudo'. Tal designação fora atribuída por Leonel Brizola em um discurso aos militantes do PDT após derrota do partido em

primeiro turno em novembro de 1989: "Cá para nós: um político de antigamente, o senador Pinheiro Machado dizia que a política era a arte de engolir sapos. Não seria fascinante fazer esta elite engolir o Lula, esse Sapo Barbudo?" - a ironia rapidamente se transformou numa perífrase associada à Lula (MARKUN, 2004, p.229).

Assim, compreende-se como valorosa a análise que parte da compreensão das metáforas e enquadramentos em jogo na medida em que suas estruturas serão coerentes com os valores fundamentais de uma determinada cultura. "The value system is both internally coherent and, with respect to what is important for the group, coherent with the major orientational metaphors of the mainstream culture" (LAKOFF e JOHNSON, 1980, p.24). Observa-se com isso que a construção da imagem negativa de Lula enquanto candidato esteve atrelada tanto à sua reputação no passado político brasileiro quanto ao histórico de crises econômicas pelas quais o país passara, fatos que se dispuseram de tal forma nos argumentos da mídia que puderam ser associados à dúvida do mercado com relação ao candidato e as incertezas sobre o destino que este ofereceria ao país.