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Cenário do estudo: uma instituição psiquiátrica de caráter asilar

O cenário do estudo, como destacado anteriormente, é um serviço pertencente a uma instituição psiquiátrica, situada no Estado de São Paulo e de gestão pública, que dispõe de leitos para a internação psiquiátrica da população adulta e infantojuvenil, além de leitos para pessoas com sofrimento psíquico que moram na instituição. Essa instituição, que até 2008 era oficialmente estruturada como um Hospital Psiquiátrico, não compõe a RAPS, tendo em vista, ainda hoje, as suas características.

Em relação especificamente à população infantojuvenil, há um serviço com capacidade para atender até 18 crianças e/ou adolescentes, de até 18 anos, com sofrimento psíquico e em situação de crise. Segundo relato dos profissionais, por decisão da gerência da instituição, desde maio de 2013 o serviço atende apenas sujeitos do sexo masculino, em decorrência de uma situação anterior em que dois usuários do serviço, sendo um do sexo masculino e outro do sexo feminino, envolveram-se em uma relação sexual; não há perspectiva de o serviço voltar a atender crianças e/ou adolescentes do sexo feminino e parece não haver o entendimento de que relações sexuais podem ocorrer, também, entre pessoas do mesmo sexo. A ocupação dos leitos é sistematizada pela Central de Regulação de Vagas do Estado de São Paulo. Com isso, é previsto que as internações nesse equipamento ocorram sempre por encaminhamento de outros serviços de saúde e/ou da assistência social de Municípios do Estado de São Paulo. Porém, há casos de encaminhamentos de outros Estados em razão de determinações judiciais para internação compulsória.

No que tange ao espaço físico, o serviço está localizado em um prédio de dois andares dentro das dependências da instituição psiquiátrica. No andar inferior há uma sala para visitas, o espaço administrativo, uma sala para a diretoria e uma copa (o restante do espaço é ocupado por outro serviço), e no andar superior, separado do inferior por uma grade, é onde as crianças e os adolescentes permanecem; lá, há oito quartos (seis com dois leitos cada e dois com três leitos cada), um posto de enfermagem, um quarto de observação com dois leitos, dois banheiros coletivos, uma sala de conforto da enfermagem, um quarto de expurgo, um consultório, uma sala para os profissionais e uma sala coletiva com mesa e televisão de uso comum.

O serviço conta com uma equipe multiprofissional composta por assistentes sociais, auxiliares administrativos, enfermeiros, médicos psiquiatras, psicólogos, técnicos de

enfermagem e terapeutas ocupacionais. No cotidiano institucional, os trabalhadores fazem uma clara diferenciação entre os auxiliares de enfermagem e os profissionais com nível superior, de tal modo que as salas utilizadas pelos dois grupos são distintas: os primeiros frequentam o posto de enfermagem, enquanto os segundos utilizam a sala para os profissionais. Ainda em relação à composição da equipe, durante o período de inserção no campo, a equipe passou por algumas mudanças nesse quadro por conta de funcionários afastados por licenças saúde e maternidade e transferências para outros serviços.

Em razão dos objetivos do estudo, a participação em diferentes momentos institucionais era imprescindível para melhor compreensão do cotidiano do serviço. Por esse motivo e pelo caráter da pesquisa de observação participante, foi preciso estar na instituição, com as crianças e os adolescentes internados, com os profissionais, e com os familiares e cuidadores dos sujeitos internados, em dias e horários diversos, acompanhando reuniões de equipe, grupos de família e grupos terapêuticos.

As reuniões de equipe aconteciam uma vez por semana, às sextas-feiras, durante o período da manhã, e consistia na discussão de casos. Os profissionais passavam caso por caso, abrangendo todas as crianças e adolescentes que estavam ou que haviam sido internados naquela semana, e trocavam informações sobre a evolução desses sujeitos na instituição.

Em decorrência dos profissionais se organizarem em duas equipes de referência, durante a semana eram realizados dois grupos de família distintos. Esses grupos de família tinham uma dupla característica de, por um lado, ser um espaço de prestação de informações de como as crianças e/ou adolescentes estavam sendo atendidos e tinham passado a semana e, por outro, ser um momento de coleta de mais dados sobres os sujeitos internados. Em geral, não se buscava aprofundar os questionamentos e compreender as histórias de vida das crianças e dos adolescentes, e nem se escutar como os familiares estavam entendendo os motivos e a situação de internação das crianças e/ou adolescentes. Nesse momento institucional, era possível notar como, em tantas vezes, o olhar dos familiares, cuidadores e/ou responsáveis legais era tão distintos daqueles da equipe e das crianças e adolescentes.

Por sua vez, os grupos terapêuticos eram diversos e, além desses, as crianças e os adolescentes frequentavam outros espaços da instituição. Durante o trabalho de campo, foi possível acompanhar os grupos de cinema, sexualidade e de futebol, sendo esse último sempre muito aguardado pelas crianças e pelos adolescentes internados. Em relação a outros espaços da instituição frequentados pelas crianças e pelos adolescentes, merece destaque as saídas do prédio do serviço para ir ao AcessaSP – que consiste em uma sala com computadores com acesso à internet, sendo parte de um programa de inclusão digital do Estado de São Paulo –, e

para ir ao Núcleo de Oficina Terapêutica e de Produção (NOTP) da instituição psiquiátrica, um espaço, segundo a própria instituição, para capacitação e geração de renda.

Além de estar nesses espaços, foi fundamental a participação em momentos diários da instituição, tais como as refeições e a dispensação de medicação. Dessa forma, foi possível a aproximação com o dia a dia da instituição, dos profissionais e das crianças e adolescentes internados.

No referente à rotina institucional, nesse serviço os horários para as atividades são predefinidos e não há margem para diferenças. A rotina é, em grande parte, regida pelas refeições, pelo horário de banho e pela entrega das medicações.

Em um dia típico, as crianças e os adolescentes são acordados por volta das 8:00 e são encaminhados para o refeitório para o café da manhã e lá, acompanhados de auxiliares de enfermagem, cada um recebe um pão com manteiga e leite com chocolate. A refeição ocorre, usualmente, em silêncio e rapidamente. Em seguida, retornam para o serviço, para as atividades do dia: tomam banho, recebem medicações, participam de algum grupo terapêutico (se houver no dia), entram em atendimentos individuais e assistem à televisão até o momento do almoço; não raramente alguns sujeitos voltam para seus quartos e ficam em suas camas acordados mesmo. Às 11:00 preparam-se para o almoço e retornam ao refeitório pela segunda vez. Lá, cada um, acompanhado de auxiliares de enfermagem e de profissionais da equipe técnica, recebe uma bandeja, um prato e uma colher e solicita aos profissionais que trabalham no refeitório as porções de comida. Havendo visita de um familiar ou cuidador, esse participa desse momento. Ao meio-dia, no mais tardar, todos já estão de volta e a equipe solicita que as crianças e os adolescentes internados encaminhem-se para seus quartos para dormir; alguns dormem, outros permanecem acordados em suas camas. Aos poucos, os sujeitos saem dos seus quartos e vão para a sala coletiva. Alguns assistem à televisão, outros ficam sentados e os que já têm mais vínculos entre si por vezes conversam ou brincam. Esses momentos são bastante diversos, a depender das crianças e/ou adolescentes internados e da disponibilidade dos profissionais para estar com eles. Ainda no período da tarde, as crianças e os adolescentes participam de grupos terapêuticos e atendimentos individuais. Às 18:00 todos retornam ao refeitório para o jantar, em uma situação semelhante ao almoço. No retorno, todos tomam banho, recebem medicações e já se preparam para dormir. Por volta das 19:00 há a troca de plantão e esta parece ser um marcador no tempo para que todos retornem aos seus quartos para dormir e voltar à rotina no dia seguinte.

Vale destacar que, no ato da internação, os pertences pessoais são recolhidos e as roupas dos sujeitos são substituídas pelos uniformes da instituição. E considera-se importante

frisar que, em todos os dias em que se esteve em campo, alguma das crianças e/ou algum dos adolescentes foi contido quimicamente e/ou fisicamente, sendo esse ato parte do cotidiano institucional.

Em relação à rotina dos profissionais, os horários de trabalho são diversos. Mas,

grosso modo, há a equipe de enfermagem diurna e a equipe de enfermagem noturna, com

troca de plantões às 7:00 e às 19:00, e o restante da equipe fica presente entre às 7:00 e às 19:00. Os profissionais circulam no posto de enfermagem, na sala de profissionais e na sala coletiva durante a maior parte do tempo.

Pode-se afirmar que há uma rotina institucional em que não acontecem variações significativas. Considerando esses atributos da instituição no que se refere ao cotidiano e tendo em vista que, como aspecto central da instituição, a instituição por meio de sua prática de internação determina aos sujeitos internados que a realização de diferentes aspectos da vida – como dormir, brincar e trabalhar – acontecerá em um mesmo local e sob a autoridade de um conjunto específico de profissionais, mesmo que por um período de tempo não prolongado, pode-se afirmar que essa instituição psiquiátrica tem como característica distintiva ser uma instituição total (GOFFMAN, 2013). Para Goffman (2013), uma instituição total, além dessas características citadas, tem como atributos centrais o fato de o sujeito ter suas atividades monitoradas e feitas em conjunto com um grupo de pessoas tratadas do mesmo modo, de para cada atividade ser estabelecido um cronograma rígido de horários a ser cumprido, sendo essa sequência de atividades imposta por um sistema de regras e por funcionários, e finalmente o fato de que a realização dessas atividades obrigatórias atendem apenas aos interesses e à organização da própria instituição. Ora, em maior ou menor grau, esses são atributos da instituição cenário de estudo. Aqui, ao invés do conceito de instituição total, será utilizada a noção de instituição de caráter asilar, tendo em vista que essa denominação abrange também a ideia de um poder psiquiátrico na forma asilar e de uma disciplina asilar, que é mais comumente utilizada na bibliografia embasada na perspectiva da desinstitucionalização.