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2 F.31.2 Transtorno afetivo bipolar, episódio

6.2 As entrevistas com as crianças e os adolescentes e a vivência no campo: refratar, refletir e expressar a lógica asilar

6.2.4 Rememorações do cotidiano e da vida

Alguns entrevistados, ao serem questionados sobre as suas vidas cotidianas, identificaram um conjunto variado de recursos: amigos, escola, trabalho, projetos de vida e outros. Em contraposição a estas falas, é possível notar um empobrecimento sensível da vida das crianças e dos adolescentes no dia a dia da instituição psiquiátrica, tendo em vista a destituição desses recursos ocasionada pela internação.

Antônio, em relação ao seu cotidiano, falou sobre aquilo que era prazeroso para ele; porém, mais uma vez, retomou o tema do respeito aos seus pais. Ou, dito de outro modo, relatou que realizava atividades prazerosas para ele, mas dentro daquilo que seus pais permitiam:

“Antônio: Eu jogava videogame, eu jogava bola, aí desses anos para cá eu não estava jogando bola todo dia, eu estava ficando em casa, para respeitar os meus pais.

Entrevistadora: Sei, entendi. Mas você gosta muito de jogar bola então? Antônio: Eu gosto de jogar bola, eu amo.

Entrevistadora: E em que lugar você gostava de ir lá perto da sua casa? Antônio: Aonde tem piscina, ficava, jogava bola com meus amigos. E é isso, jogava Play Station 2 com eles também.”

Já Cléber, com frases curtas e um vocabulário mais simples, além de apontar o que gostava de comer – o que talvez apareça na entrevista como uma marca do que ele sentia falta na instituição –, narrou a existência de um cotidiano permeado pelo aspecto lúdico – algo inexistente no dia a dia da instituição:

“Entrevistadora: E o que você gostava de fazer na sua cidade? Cléber: Comer.

Entrevistadora: Comer? Comer o quê? Cléber: Alface, leite, pão, costela, frango.

Entrevistadora: E como que era o seu dia a dia, o que você costumava fazer no seu dia a dia?

Cléber: Andar de bicicleta.

Entrevistadora: Andar de bicicleta, e o que mais? Cléber: Andar de bicicleta, soltar pipa, passar cerol.

Entrevistadora: Passar cerol na pipa para cortar pipa dos outros? Cléber: É.”

Em outros breves momentos do cotidiano institucional, Cléber oferecia pistas sobre os seus interesses e suas conexões com a vida fora do contexto da instituição:

“Certo dia, caminhando de um lado para o outro no corredor com o Cléber, de súbito ele entra no último quarto, que estava vazio, e me chama. Parado na janela, fala para mim: ‘escuta’. Muito ao longe, há um barulho de trem, que passa perto da instituição. Menciono o que escutei e Cléber me conta que perto de sua casa há um trem, que ele gosta desse barulho e que queria estar no trem. Cléber volta a caminhar pelo corredor” (Diário de Campo). Importante notar que diferentes sujeitos, ao serem questionados sobre o seu cotidiano de vida, tratavam dessa questão fazendo certa comparação com a situação de internação, seja de forma explícita, seja com frases como “lá, sim, que era bom” (Diário de Campo). Além disso, nas entrevistas, algumas crianças e adolescentes relataram eventos e situações vividas nos seus cotidianos que tiveram relação com a internação. Antônio foi uma dessas pessoas, afirmando em entrevista as diferenças entre os dois cotidianos; e, mais uma vez, retomando que era um garoto desobediente:

“Antônio: Ah, eu jogo bola, consigo brincar, tem vezes que eu fico jogando videogame. Agora, estava bem solto antes, por isso que eu não quero mais voltar para cá, porque aqui é sufoco você ficar aqui, só ver seus pais no dia. Eu quero ficar lá perto com eles.

Entrevistadora: Como é que era assim, um dia seu típico, você acordava de manhã e aí?

Antônio: Não, não tomava café, não respeitava minha mãe, que ela pedia

para mim levantar e tomar café, e eu não ia.”

Ainda, é significativo que no espaço de entrevista, pensado também como um espaço de escuta, essas crianças e adolescentes tenham contado alguns aspectos de suas vidas que lhes eram mais importantes, por vezes em forma de confidência e outras vezes em forma de certa demanda pela valorização e pela ampliação do crédito de si. Por exemplo, Danilo enfatizou o quanto tinha um cotidiano, fora da instituição, bastante permeado pela questão da escolarização:

“Danilo: Eu vou para a escola porque eu estudo de manhã.

Entrevistadora: Estuda de manhã, e depois você volta e almoça aonde? Danilo: Minha casa.

Entrevistadora: E ai o que você faz durante a tarde?

Danilo: Eu faço lição de casa, eu faço trabalho que eu preciso fazer, ler livros, estudar para as provas. Inclusive eu sou um dos melhores alunos da minha escola. Eu sempre tiro nota alta, eu tiro 9, 10, sempre sou um dos melhores alunos da minha sala, da minha escola. Eu já até ganhei bolsa de estudo, você acredita?”

Nesse contexto de internação, é relevante constatar que o entrevistado terminou a sua afirmação com a seguinte frase: “você acredita?”. Muitas vezes, durante as entrevistas, os entrevistados pareciam fazer uso desse espaço de escuta para poder contar sobre si, para além do que era o tema da entrevista, contar sobre as suas potencialidades, sobre aquilo que outras pessoas não davam crédito. Nas vivências no campo, certa vez, em uma reunião de equipe, foi pontuado por um dos profissionais que não era verdade que Danilo gostava de estudar, já que esse profissional o havia levado à biblioteca da instituição psiquiátrica e ele não havia se interessado por livro algum. No entanto, há que se frisar que a biblioteca da instituição é composta, em grande parte, por obras específicas de certos campos de estudo, como a medicina e a psicologia – temas que não são do interesse de Danilo, um adolescente. Tornou- se evidente no decorrer da vivência de campo que aquilo que, de fato, esses garotos desejavam compartilhar, podia ser feito com apenas alguns poucos profissionais.

Francisco, ao falar sobre o seu cotidiano, mencionou que trabalhava e que tinha muitos amigos. Ainda, que era parte de sua vida sair à noite com os seus amigos e fazer uso ocasional de drogas, nos chamados “rolês”. Acrescentou que hoje, estando internado, ele considerava que aqueles não eram hábitos adequados:

“Francisco: Eu ia para a escola, trabalhava, chegava em casa e dormia. Entrevistadora: Onde você trabalhava?

Francisco: Pernambucanas. Trabalhava como jovem aprendiz, eu fazia tudo, estoquista, vendedor. Era bom, para mim era bom, ótimo. Eu não tinha muita mania de sair, de vez em quando eu ia para o final de semana, para o shopping com o meu amigo. Passeava, é antigamente quando eu usava

droga, fazia uns roles meus, aqueles famosos ‘rolês’. Coisas que não têm

nada a ver.”

Quando questionado sobre o que era importante para ele, Francisco falou sobre seus amigos, sobre a escola e indicou um projeto seu: estudar engenharia. Vale notar que, considerando que nesse momento a entrevista versava sobre o dia a dia, Francisco, ao citar um projeto seu, expressou como esse sonho tem, para ele, alicerce em seu cotidiano:

“Francisco: Escola, meus amigos, a maioria dos meus amigos que era bom era também de lá. Tenho saudade assim, das meninas de lá também.

Entrevistadora: É, que série que você está da escola? Francisco: Estou no segundo.

Entrevistadora: Segundo colegial? Francisco: É.

Entrevistadora: E você está pensando em fazer o quê da vida?

Francisco: Ah, eu estou pretendendo sair da escola e fazer uma faculdade de engenharia civil.”

Juliano, aquele adolescente com uma rede social bastante ampla, assinalou que tinha, do seu ponto de vista, recursos diversos em sua vida, que estavam para além da rede social. Ao ser questionado sobre o seu cotidiano, tal como Francisco, apontou para um cenário de projetualidade, assinalando que sua família tinha uma peixaria, então, por isso, poderia trabalhar facilmente:

“Entrevistadora: E como que era o seu dia a dia lá, em sua cidade, antes de vir para cá?

Juliano: Onde eu quiser trabalhar eu posso trabalhar, eu posso ter meu dinheiro com facilidade por causa que minha família tem uma empresa. Entrevistadora: Sua família tem uma empresa de quê?

Juliano: De peixe, de peixaria.”

Ainda, afirmou em entrevista que em seus dias gostava de trocar o dia pela noite, mas que isso mudou com a situação de internação:

“Entrevistadora: E como que era um dia seu típico, antes de você chegar aqui?

Juliano: Um dia típico, o que eu mais gostava de fazer assim, em um dia típico, era passar a noite acordado assistindo filme, estudando, estudando inglês. Era o que eu mais fazia.

Entrevistadora: Você gostava de ficar mais na sua casa então?

Juliano: É, eu gostava de virar o dia, eu gostava de não dormir, entendeu. Agora aqui eu já durmo mais para os dias passarem mais rápido.”

Se muitos dos entrevistados indicaram, sob suas perspectivas, que tinham recursos e um cotidiano vivo, e alguns, ainda, assinalaram de modo espontâneo projetos futuros para o período após a saída da instituição, Leandro, ao contrário, parecia tratar sempre de um cotidiano mais frágil e com menor projetualidade, em uma vida permeada por discussões com a sua avó e muito empobrecida em relação à potência de vida das ações cotidianas:

“Entrevistadora: Você não quer me contar como é a sua vida lá na sua cidade?

Leandro: Conto. Eu chego em casa, é uma discussão danada com a minha avó.

Entrevistadora: Todo dia?

Leandro: Todo dia. Às vezes eu nem paro em casa, mas quando eu paro em casa é uma discussão danada. Só para a briga quando um vai para um lado e o outro vai para o outro.

Entrevistadora: E o que você costuma fazer na rua, que você não para em casa?

Leandro: Fumar loucamente. Fumando cigarro. Eu compro com meu dinheiro. Às vezes quando não tenho dinheiro eu peço no trabalho e ele me dá o dinheiro. Eu trabalho de pintar algo, de, o que aparece eu faço, pode dizer que o que aparece eu faço.

Entrevistadora: É? E o que mais assim, como é que é um dia seu típico lá, me conta? Que horas você acorda, o que você faz?

Leandro: A primeira coisa que eu faço quando acordo é fumar. A outra é tomar café da manhã quando eu vou comprar algum pão na padaria com o meu dinheiro. E quando eu trabalho eu vou trabalhar, porque eu não trabalho

fixo, né.”

Por sua vez, Dênis contou que não gostava de estar na escola, mas não assinalou o motivo, e quando perguntado sobre o seu cotidiano falou sobre as atividades que realizava em sua casa:

“Entrevistadora: O que você costuma fazer lá na casa da sua tia?

Dênis: A gente faz um monte de coisa lá, a gente brinca, a gente conversa. E, quando eu estou lá, a gente assiste filme.

Entrevistadora: Que tipo de filme você gosta? Dênis: De terror.”

Dênis não se recordava de outras ações cotidianas. Ele não frequentava a escola e, aparentemente, não saía de casa com regularidade. Justo ele, que tinha um cotidiano bastante empobrecido de recursos e possibilidades, afirmava que se sentia bem no cotidiano da instituição psiquiátrica.