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A formação de predicados complexos

1.2 C ONDIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DE PREDICADOS COMPLEXOS Esta seção pretende apresentar um apanhado das restrições à formação de

1.2.3 A coesão estrutural

Uma restrição muito comentada à formação de predicados complexos consiste no princípio de coesão estrutural. Em outras palavras, não pode haver (ou pode haver sob condições muito específicas) a interrupção da sequência de constituintes entre verbo regente e verbo não-finito. Esse requisito se aplica sobre a ordem linear (adjacência), portanto não tem relação com a complementação verbal:

29 Em propostas que assumem a reestruturação via movimento de núcleo, o preenchimento de Neg0 é suficiente para barrar o movimento do verbo, por diversas razões:

(i) a incapacidade de Neg0l-marcar VP (cf. Kayne 1989:243);

(ii) o efeito de minimalidade criado pelo cruzamento de outro núcleo por sobre Neg0, associado à impossibilidade de excorporação: o núcleo movido é ou o próprio clítico, no caso da subida de clítico, ou T, no caso do movimento longo de objeto (Bok-Bennema & Kampers-Manhe 1994:209).

Entre as línguas românicas, há diversos casos no que toca à aceitação da interrupção e ao tipo de elementos existentes no interior do predicado complexo.

(i) Castelhano e Italiano: são permitidos certos advérbios (especialmente os de modo), elementos focalizadores e quantificadores flutuantes.30

(39) a. Lo=suelen siempre terminar antes de la hora.

3SG.ACC=costumam sempre terminar antes de DET hora ‘Costumam sempre terminá-lo antes da hora’

b. Lo=quisera por supuesto comprar barato.

3SG.ACC=quisera por suposto comprar barato ‘Gostaria evidentemente de comprar isso barato’

c. Te=lo=hacen hasta aborrecer.

2SG.DAT=3SG.ACC=fazem até aborrecer

‘Fazem ele até se aborrecer (e isso te afeta)’ (PE: ‘Fazem-no até aborrecer-se (e isso te afeta)’)

d. Los niños lo=quieren todos comer.

DET.PL crianças 3SG.ACC=querem todas comer

‘as crianças querem todas comê-lo’ (PE: ‘os miúdos querem-no todos comer’)

(MOORE 1996:53 (44); 54 (48)a)

(40) a. Sarrebbe bastato un ‘evviva’ o um ‘abbasso’ per poter=li

ser.3SG.COND bastar.PTCP um ‘viva’ ou um ‘abaixo’ para poder=3PL.ACC

[di nuovo imprigionare.

[de novo Prender ‘Bastaria um ‘viva’ ou um ‘fora’ para poder prendê-los de novo’

b. Vi=voglio appunto parlare seriamente.

2SG.DAT=querer.1SG exatamente falar seriamente ‘Quero mesmo falar-vos seriamente’

c. Lo=verrò subito a scrivere.

3SG.ACC=vir.1SG.FUT logo PRT escrever ‘Vou escrevê-lo logo’

30Segundo exemplo reproduzido em Gonçalves (1999:157), o catalão seria uma língua ainda mais restrita com relação à interrupção do predicado complexo.

d. Li=si=continua stupidamente a commettere.

3PL.ACC=REFL=continuar.3SG estupidamente PRT cometer

‘Continua-se a cometê-los [os erros], estupidamente’ (NAPOLI 1981:852 (52)a/c/d/e)

Em italiano, adverbiais complexos (com mais de uma palavra) são em geral barrados, como no caso de locativos e temporais:

(41) ?? Ti=voglio nel parco/ fra un’ora vedere.

2SG.ACC=querer.1SG no parque/ em uma.hora ver ‘Quero te ver no parque/ em uma hora’ (PE: ‘Quero ver-te ....’)

(NAPOLI 1981:852 (53)a)

(ii) Português Europeu: segundo Gonçalves (1999), são permitidos advérbios que modifiquem somente o verbo regente (advérbios de modo); elementos focalizadores, como só e até; e o sujeito que participa de estruturas de inversão sujeito-verbo (cf. exemplos com interrogativas totais e parciais em (42)e-f).

(42) a.(?) Os vendedores de automóveis querem-me frequentemente convencer das vantagens de um pequeno utilitário.

b. Os vendedores de automóveis querem-me sempre convencer das vantagens de

um pequeno utilitário. c. O João quer-lhe só telefonar.

d. O João vai assistir à conferência do Pedro e quer-lhe até dar os parabéns pelo seu mais excelente trabalho.

e. Querê-lo-ão os meninos ler?

f. O que lhe quis o João oferecer?

(GONÇALVES 1999: 160 (90); (91); 161 (94)a; 163 (100); 163 (108)b; 167 (116)a)

(iii) Português Clássico (extensível ao português antigo e talvez a outras línguas românicas medievais): A partir dos dados coletados no Corpus Tycho Brahe, observamos que o PCl apresenta maior liberalidade de elementos

intervenientes. Além de todos os elementos observados para o PE, o PCl admite outros tipos de advérbio (como os sentenciais), advérbios temporais (conjugado com o sujeito pós-verbal em (43)b), e sintagmas preposicionais variados: com valor de adjunto e de argumento dativo – cf. (43)c-d. Quando ocorre um argumento dativo, ele necessariamente apresenta um clítico que o redobra.31

(43) a. Na occaziaõ em que sahio desta corte, (...) se veyo pessoalmente a despidir da serva de Deos, e a encomendarse em suas oraçoens, de quem fiava o bom successo daquella empreza (PCl-M. Céu, 1658)

b. e ela, mudando a côr em um suspiro, entre algumas lágrimas e com tão discretas razões que as não saberei eu agora referir com a perfeição própria (...) (PCl-Lobo, 1519).

c. Mas os santos e apostolos e martyres quem os quizer bem pintar, emite ao seu capitão e Nosso Salvador, que nenhuma outra regra lhes posso para isso

dar maior. (PCl-Holanda, 1517).

d. O mesmo lhe pode a Vossa Mercê suceder, se se não desvanecer agora com esta luz. (PCl-Chagas, 1631).

Essa tipologia de “níveis de interveniência” parece indicar que a adjacência apresenta variação translinguística. Contudo, podemos ainda manter a afirmação categórica de que alguns elementos são barrados entre os dois verbos: complementadores (finitos) e especificadores qu-. Tais palavras indicariam o preenchimento de um CP e, se isso for verdade, haveria um complemento infinitivo pleno e, portanto, incompatível com a auxiliaridade do verbo regente, envolvida no processo de formação de predicado complexo. Aparentes exceções a essa generalização aparecem nos exemplos abaixo:

31 O PE escrito apresenta maior liberalidade de uso de elementos intervenientes que o PE oral, o que demonstra seu traço conservador, como demonstra o paralelismo entre (43)d e (i) abaixo:

(i) Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais ... (PE-Escrito- Saramago, 1922)

(44) a.? Non ti=saprei che dire.

NEG 2SG.DAT=saber.1SG.COND C dizer ‘Não saberia o que dizer a você’

b. Non ti=so cosa dire.

NEG 2SG.DAT=saber.1SG C dizer ‘Não sei o que te dizer’

c. Lo=tenemos que hacer.

3SG.ACC=ter.1PL C fazer ‘Temos de fazê-lo’

d. Quemar las grasas corporales haciendo ejercicio:

queimar as gorduras corporais fazendo exercício:

[lo=hay que saber

[3SG.ACC=haver.3SG C saber ‘Queimar as gorduras corporais fazendo exercício: é preciso saber isso’

((34)a-b:Italiano; KAYNE 1989: 16; NAPOLI 1981:854; ((34)c-d: Castelhano; LUJÁN 1980:38;

www.decathlon.es)

Diversos autores concordam quanto à pouca produtividade desses exemplos, limitados a certas combinações de verbo regente + elemento qu- + verbo infinitivo, sendo que o caso mais notório envolve saber como verbo regente e dizer como verbo infinitivo. A respeito dos dados (44)a-b, Napoli (1981:854, nota 18) sugere que esses são casos de expressões idiomáticas fixas. A respeito de (44)c-d, o auxiliar modal deôntico tener pode selecionar os elementos de ou que, porém de tem uso mais restrito em castelhano se comparado ao português. Haber seleciona necessariamente que, e nunca de, ao contrário do português. Ou seja, parece ser defensável uma análise semelhante à descrita acima: que não é um verdadeiro complementador nesses casos, mas sim um elemento que forma unidade com o verbo regente. Evidência para isso é a opção pela escolha do item lexical que expressa o complementador finito, apesar de o complemento ser infinitivo. Wurmbrand (2003)

desenvolve essa ideia e sugere que os elementos qu- aí presentes não estão em CP nem em Spec,CP: em vez disso, são inseridos na morfologia.32

1.2.4 Síntese

A esta altura, dá-se por terminada a revisão das restrições à formação de predicados complexos. Foram quatro as restrições gerais apresentadas. Os verbos formadores de predicado complexo devem:

(i) apresentar correferência entre seus sujeitos;

(ii) compartilhar o mesmo domínio temporal;

(iii) demonstrar certo nível de coesão estrutural.

Além disso, viu-se que o verbo regente faz parte de certas classes quanto à seleção de complemento oracional, classes essas em grande medida deriváveis dos princípios (i) e (ii). Opcionalmente, tais características podem ser atribuídas a um traço de auxiliaridade, ou seja, a partir de informação presente na entrada lexical do verbo.

1.3 PROBLEMAS TEÓRICOS APRESENTADOS PELOS PREDICADOS COMPLEXOS