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A formação de predicados complexos

1.3 P ROBLEMAS TEÓRICOS APRESENTADOS PELOS PREDICADOS COMPLEXOS Vários problemas teóricos já foram entrevistos durante a discussão de questões

1.3.1 Forma de união: incorporação ou concatenação?

Um problema que se apresenta é o nível de interação que os verbos formadores de predicado complexo apresentam. A hipótese nula é que só há uma relação de seleção entre verbo regente e seu complemento não-finito, onde o clítico se encontra, que implica concatenação entre as estruturas. Porém dados de outras línguas têm sugerido que os verbos em questão formam uma unidade morfológica via incorporação do verbo não-finito (ou seu correspondente) ao verbo regente.

Baker (1988) é o primeiro a utilizar a noção de incorporação verbal para derivar a formação de predicados complexos causativos, com base em evidência de línguas com morfologia rica como o chichewa e o turco (respectivamente classificadas nas famílias níger-congo e altaica). A não-incorporação em línguas como o avar (família nakh- dagestanesa) e o inglês é comparada ao não-movimento do sujeito em estruturas de alçamento de sujeito. Comparem-se os dados de incorporação e alçamento:

(45) a. mtsikana ana-chit-its-a kuti mtsuko u-gw-e.

menina AGR-LV-fazer.PST-ASP esse pote.d’águaAGR-cair-ASP

b. mtsikana anau-gw-ets-a mtsuko.

menina AGR-cair-fazer.PST-ASP pote.d’água ‘a menina fez o pote d’água cair’

(Chichewa; TRITHART 1977 apud BAKER 1988:148 (2)a; (3)a )

(46) a. It seems that Sara adores Brussels sprouts.

b. Sara seems to adore Brussels sprouts.

(Inglês; BAKER 1988:150 (6))

Em (45)a tem-se a estrutura causativa em chichewa sem incorporação verbal, mais próxima das causativas indo-europeias. Na comparação entre (45)a e (46)a nota-se que quando não há movimento do verbo, há a concatenação de um item lexical: um verbo leve em chichewa e um expletivo em inglês, ambos elementos “pleonásticos” (sublinhados nos exemplos). No

caso de (45), um princípio independente da gramática impede que a estrutura seja realizada sem modificações ulteriores, especificamente, o filtro de afixos extraviados.33

De fato, a análise para as causativas pode ser estendida à “reestruturação”. Esse termo, originalmente usado em Rizzi (1982) para referir uma regra do italiano que reanalisa opcionalmente uma subcadeia terminal Vx (P) V como um único complexo verbal, resulta

na transformação de uma estrutura bioracional numa oração simples, o que pode ser reinterpretado em termos da noção de incorporação. Para além disso, Baker (1988) observa que o número de verbos que sofrem incorporação verbal varia de língua a língua, porém predicados correspondentes a verbos de reestruturação (como poder e querer) também são encontrados ao lado dos verbos causativos.

(47) Kuṭṭike aanaye n̯uḷḷ-aam.

criança.DAT elefante.ACC beliscar-pode ‘a criança pode beliscar o elefante’

(Malayalam; MOHANAN 1983 apud BAKER 1988:156 (27))

(48) Angutik-p annak taku-guma-vaa.

homem-ERG mulher.ABS ver-quer-AGR ‘O homem quer ver a mulher’

(Inuktitut do Labrador; SMITH 1982 apud BAKER 1988:157 (28))

A partir da proposta de incorporação de Baker (aplicada somente ao movimento do clítico), Kayne (1989) desenvolveu uma análise seminal para a subida de clíticos em línguas românicas. A partir da observação da correlação entre subida de clíticos e o parâmetro do sujeito nulo, Kayne argumenta que línguas pro-drop têm uma categoria I forte que pode l-marcar o complemento VP. Isso, juntamente com a assunção de que o lócus de cliticização é variável – pronomes clíticos podem cliticizar-se a I0 ou a V0 – resulta na previsão de que a possibilidade de o infinitivo encaixado mover-se para I0 é crucial para que ocorra a subida de clítico. Essa diferença parece estar relacionada a outra diferença entre francês e italiano: a necessária próclise ao infinitivo na primeira língua e a ênclise na

33Filtro de afixo extraviado (stray affix filter): Um morfema preso deve se combinar com uma raiz sob um núcleo comum antes que regras de pronúncia sejam aplicadas (cf. Lasnik 1995).

segunda, como desenvolve o mesmo autor em trabalho posterior (Kayne 2000: capítulo 5 [1991]). Dessa forma, às frases em (49) corresponderiam as estruturas em (50):

(49) a. Lui=parler serait une erreur.

3SG.DAT=falar ser.3SG.COND DET erro

b. Parlar=gli sarebbe un errore.

falar=3SG.DATser.3SG.COND DET erro ‘Falar com ele/a seria um erro’

(KAYNE 2000: 61 (1), (3))

(50) a. T ... Cl +[InfnV+Infn ] ... [VP[Ve ] ...

b. … V+Infn … Cl+T … [Infne] … [VP[Ve] ...

(KAYNE 2000: 63 (8), (9))

Como Kayne considera que as estruturas que exibem subida de clíticos são bioracionais, são as propriedades do sistema flexional que tornam a barreira CP transparente e permitem o movimento dos pronomes. Em (50)b o clítico não pode se adjungir a Infn0pois só resta aí o vestígio dessa categoria. O conjunto V+Infn se adjungiu a T’. A partir daí, o clítico pode se excorporar para a oração matriz. Considerando o Corolário de Transparência de Regência de Baker (1988) (Government Transparency Corollary), o vestígio do pronome clítico pode ser identificado, visto que o domínio de regência de conjunto V+T matriz foi estendido ao T encaixado.

Várias análises foram desenvolvidas para a subida de clíticos nas línguas românicas com base nos trabalhos de Kayne. Evidentemente, a aplicação de uma análise de incorporação verbal a línguas que não apresentam evidência morfológica para tanto implica que se adote uma das seguintes adaptações, a fim de diferenciar reanálise de incorporação

per se:

(i) a incorporação ocorre em Forma Lógica, havendo somente uma relação de coindexação entre verbo causativo e verbo regido em sintaxe aberta, enunciada via traço semântico presente no verbo regente (cf. Baker 1988:202ss);

(ii) a incorporação ocorre em sintaxe aberta, porém há algum mecanismo que “desfaz” o movimento em Forma Fonética, como a pronúncia da cópia mais baixa (cf. Roberts 1997:426).34 Essa perspectiva tem como pressuposto a adoção da teoria de movimento por cópia. Apesar da regra geral de pronúncia da cópia mais alta, uma restrição parametrizada exigiria a pronúncia da cópia mais alta nesse caso, garantindo assim que os verbos formadores do predicado complexo sejam palavras independentes em línguas românicas.

Essas adaptações não são forçosamente necessárias, para além do propósito de apresentar uma análise translinguisticamente unificada para o fenômeno. Resta saber se a adoção de uma das análises ((i) ou (ii)) é teoricamente válida para explicar os fatos que levaram à sua proposição (a realização dos verbos como morfemas livres e a possibilidade de interrupção de sequência verbal).35

Baker (1999), em comentário a artigo de Joseph Emonds, reconhece que o movimento do clítico de línguas românicas é paralelo ao movimento da concordância em línguas polissintéticas, mas é em vários aspectos muito mais amplo que a incorporação nominal, conforme atestam os seguintes exemplos do chukchi (família chukotko- kamchatkana). Dessa forma, em (51)b o nome correspondente a ‘amoras’ não pode se adjungir ao verbo matriz:

(51) a. δtlδg-e lδwaw-δrk nen-rδ-maraw-at-δk ekδk

pai-ERG não.pode-PRES-3SG/SBJ.3SG/OBJ CAUS-repreender-CAUS-INF filho.ABS ‘O pai não pode repreender o filho’

b. Ga-nael-in-au payitt-o-k

PST-tornar.se-PST-3PL/SBJ amora-comer-INF ‘eles começaram a comer amoras’

(NEDJALKOV 1976 apud BAKER 1999:369 (1); BOGORAS 1922 apud BAKER 1999:369 (2))

34Baker (1988:462, nota 37) admite que a incorporação em sintaxe fechada ou Forma Lógica acarretaria incompatibilidades com a Teoria do Caso. Propõe, portanto, ou o movimento em sintaxe aberta (estrutura de superfície) com “reconstrução” ou a construção da Forma Lógica em paralelo com a estrutura de superfície, nos termos da Teoria Padrão Estendida.

35Além desses fatos relativos às línguas românicas, observa-se a repetição do morfema apassivador em em turco (cf. Kornfilt 1996).

Dessa forma, é necessário que uma análise de incorporação considere que clíticos têm um estatuto diferente de nomes, o que alguns autores resolvem identificando aqueles elementos com afixos (cf. discussão em §3.2). As propostas que assumem a incorporação verbal, além da incorporação do clítico (cf. Roberts 1997), parecem encontrar pouca evidência morfológica nas línguas românicas, se comparadas às línguas germânicas.36 Esse tipo de análise pode considerar que o complemento infinitivo sempre corresponde a uma oração, como descrito na seção 1.3.2.1.

No entanto, análises mais recentes apresentam como alternativa à incorporação a simples concatenação, ou seja, a hipótese nula, como forma de operar a união dos predicados em questão. Nessa linha incluem-se as propostas que supõem a mono- oracionalidade da estrutura da sentença, como se verá nas seções 1.3.2.2 e 1.3.2.3.