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A formação de predicados complexos

1.2 C ONDIÇÕES PARA A FORMAÇÃO DE PREDICADOS COMPLEXOS Esta seção pretende apresentar um apanhado das restrições à formação de

1.2.1 A relação de correferência

A subida de clítico ocorre em contexto sintático específico, ou seja, uma estrutura de encaixamento ou subordinação entre as orações envolvidas. De fato, Givón (2009) aponta esse como um dos percursos tipológicos de formação de predicados complexos, ao lado da co-lexicalização, que consiste na formação de verbos seriais a partir da junção de uma cadeia de orações.

O principal requisito para a formação de predicado complexo consiste na integração dos eventos de duas orações por meio do compartilhamento do sujeito sintático. Há, via de regra, uma expressão morfológica da correferência: a não-finitude ou a nominalização. Assim, as línguas românicas standard (representadas pelo italiano) apresentam subida de clíticos a partir de um complemento não-finito, e línguas como o ute (família uto-asteca) apresentam nominalização. Se bem que a distribuição entre não- finitude e nominalização varie – pois línguas como o ute apresentam uso de nominalizações em todos os contextos de subordinação, mas não as formas não-finitas das línguas românicas – tais formas indicam a relação entre traço nominal (também presente nas formas não-finitas) como marca de dependência sintática.

(26) Giovanni lo=dovvrebbe prendere.

G. 3SG=dever.3SG.COND buscar ‘Giovanni deveria buscá-lo’

(27) Naʼacich yoghovʉch-i pakha-vaa-ch ʻástiʼi-pʉgay-ʼu

menina.SBJ coiote-OBJ/GEN matar-IRR-NOM querer-REM-ela

‘A menina quis matar o coiote’ (lit. ‘a menina queria matança-de-coiote’)

(Ute; GIVÓN 2009:69 (11)f)

Em PE, o uso do infinitivo flexionado é uma marca de obviação19incompatível com a formação de predicado complexo. Portanto, quando ocorre no complemento de verbos causativos ou perceptivos, a subida de clíticos não é mais possível: compare (28) e (29). Consistementemente com (29), outros contextos de uso do infinitivo flexionado no PE não permitem a subida de clítico, como em (30) (nos exemplos, o sublinhado duplo indica o sujeito, e o sublinhado simples, o objeto):

(28) Sujeito oblíquo com “união de orações”

a. O professor mandou escrever a composição aos alunos. b. O professor mandou-lhes escrever a composição. c. O professor mandou-a escrever aos alunos. (29) Sujeito nominativo com infinitivo flexionado

a. O professor mandou os alunos escreverem a composição. b. O professor mandou eles escreverem a composição. c.*O professor mandou-os escreverem a composição. d. O professor mandou os alunos escreverem-na.

(30) a. Eu penso/afirmo/lamento [terem os deputados trabalhado pouco]. b. Eu penso/afirmo/lamento [terem eles trabalhado pouco].

c.*Eu penso/afirmo/lamento [terem-nos trabalhado pouco].

((30)a adaptado de RAPOSO 1987:87 (6),(7))

Em (29)c o clítico pronominaliza o sujeito do verbo infinitivo. A partir da observação de (28), observa-se que a subida do clítico é possível quando o sujeito é pós-verbal e o

19O termo “obviação”, derivado do inglês obviation (do latim obviāre, ‘agir contrariamente’) em seu emprego na linguística indígena norte-americana, consiste na exclusão de possíveis controladores ou antecedentes para certo argumento; denomina, em outras palavras, marcas de referência disjunta. No domínio das línguas românicas, o termo foi discutido por Arteaga (1995).

infinitivo é não-flexionado. Em (30)c situação paralela de pronominalização é barrada com os verbos epistêmicos, declarativos e factivos, que não formam predicado complexo.20

Não obstante a forte tendência ao uso de nominalizações ou de formas verbo- nominais no âmbito de predicados complexos, certas línguas demonstram não ser esse o fator crucial para que o fenômeno se manifeste. Tais línguas são as que não apresentam um infinitivo morfológico; no lugar dele, o subjuntivo é utilizado. Um exemplo no quadro românico é oferecido pelo salentino de Brindisi, dialeto italiano fortemente influenciado por uma comunidade de greco-falantes.21 Em salentino, assim como em servo-croata, a flexão dos dois verbos que fazem parte do predicado complexo deve ser coincidente, o que demonstra a primazia da correferência no contexto de encaixamento:22

(31) a. Karlu lu=voli kkatta.

K. 3SG=quer.3SG comprar.3SG.IRR ‘Karlu quer comprar isso’

b.* Voggyu vvyeni krai.

quer.1SG vir.2SG.IRR amanhã ‘Quero que você venha amanhã’

(Salentino; TERZI 1996: 274 (3)b; 287 (27)b)

(32) a.? Milan ga želi=da vidi

M. quer.3SG C=3SG ver.3SG.IRR ‘Milan quer vê-lo’

20 Consequentemente, os dados de pronominalização em (29) são semelhantes aos encontrados para a construção com sujeito acusativo com ECM. Sobre o contraste entre (28) e (30), a distribuição complementar entre infinitivo não-flexionado e flexionado é de certa forma paralela à distinção entre predicados que permitem reestruturação e os que selecionam uma construção em que Aux-para-Comp é licenciada (Rizzi 1982). Verbos de controle volitivos (restritos a desejar e querer, segundo Raposo 1987) são ambíguos, pois permitem ambos os tipos de estrutura.

21A inexistência de infinitivos morfológicos é um traço característico da área linguística balcânica (cf. Heine & Kuteva 2005: 196ss). A replicação desse padrão em salentino oferece evidência para uma influência do substrato grego nesse dialeto do italiano.

22A sentença (31)b, em comparação com (i), ilustra que sem o complementador ku há formação de predicado complexo e obrigatoriedade de correferência dos sujeitos. Cf. Roberts & Roussou (2003:88ss) para uma breve explicação do sistema de complementadores nos dialetos italianos meridionais.

(i) Voggyu ku vvyeni krai. querer.1SG C vir.2SG amanhã

b.* Milan ga želi=da vidiš.

M. quer.3SG C=3SG ver.2SG.IRR ‘Milan quer que você o veja’

(Servo-croata; TERZI 1996: 289 (32)b, (33))

Há dois tipos de explicação para a correferência de sujeitos, que podem ser usados para motivá-la. A primeira diz respeito à dependência temporal entre os dois predicados, como desenvolvido mais abaixo, na seção 1.2.2. Terzi (1996) propõe que o movimento de Tnão-finito para Tfinitoé que licencia o movimento do sujeito para o SpecTPfinito.

Já Déchaine & Wiltschko (2002) argumentam que basta haver correferência entre as categorias Tempo da oração matriz e não-matriz via c-comando e coindexação de cada sujeito com a respectiva categoria Tempo (via concordância especificador-núcleo) para que, por transitividade, os sujeitos matriz e não-matriz sejam coindexados.

A segunda explicação para a correferência de sujeitos relaciona-a aos contextos de controle obrigatório. Segundo Hornstein (1999), PRO é derivado por movimento de DP, de maneira semelhante às estruturas de alçamento. De fato, Wurmbrand (2003:241ss) apontou uma relação determinística entre controle obrigatório e os verbos de reestruturação (lexical) do alemão, que, na sua teoria, apresentam um complemento infinitivo VP (o controle não-obrigatório inclui os casos de controle parcial, cindido e variável discutidos em Landau 2000). Pires (2006:70ss) aplica a distinção entre tipos de controle para os gerúndios do inglês e os infinitivos do português, em que sugere um paralelismo dos infinitivos de reestruturação com o grupo por ele chamado de “gerúndios defectivos quanto a TP”, pois ambos apresentam controle obrigatório. Por outro lado, os infinitivos flexionados do português permitem controle não-obrigatório:

(33) a. Eujconvenci [a Maria]k[PRO]k/*j+ka viajar com o Paulo.

b. Eujconvenci [a Maria]k[pro]j+ka viajarmos com o Paulo.

(PIRES 2006:95 (6))

Com o reenquadramento da não-finitude como fator não-necessário à formação de predicados complexos, é necessário mostrar que o verbo [+AUXILIAR] pode ocorrer

numa forma não-finita, como mostram os exemplos em (34), em que o verbo mais alto pode ocorrer no infinitivo (flexionado ou não-flexionado) ou no gerúndio.

(34) a. [...] parece que está fazendo figas a dons mais preciosos que o da fala , dom que Deus nos deu para nos podermos exprimir, fazendo entender os nossos conceitos uns aos outros. (PE-Cavaleiro, 1702)

b. De dous textos contrários a fadiga que resulta, é ver, se há meio de os poder unir, e conciliar; (PCl-Aires, 1705)

c. Eis aqui o que não penetram a maior parte dos nossos poetas , pois adoram com tal superstição seus antigos originais que , querendo imitá-los , não têm valor para mudar uma sílaba , quanto mais uma palavra . (PCL- Garção, 1724)

Portanto, a relação de correferência é o aspecto crucial para a formação de predicados complexos de “reestruturação”. Na “união de orações”, apesar de não haver correferência plena, ocorre a necessária “demoção” do sujeito encaixado, que é licenciado como oblíquo.23 A forma nominal ou não-finita do verbo mais baixo, quando encontrada, expressa a relação de encaixamento a partir da qual a correferência se manifesta. Esse pode ser um critério para limitar a classe dos verbos formadores de predicado complexo. Por exemplo, um verbo como perceber necessariamente seleciona um complemento com um sujeito especificado: O policial percebeu [que o carro era roubado].