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A formação de predicados complexos

1.3 P ROBLEMAS TEÓRICOS APRESENTADOS PELOS PREDICADOS COMPLEXOS Vários problemas teóricos já foram entrevistos durante a discussão de questões

1.3.2 Estrutura da sentença: uma ou duas orações?

1.3.3.2 Evidências relativas à estrutura da sentença

Uma questão incontornável para as teorias sobre formação de predicados complexos no campo da Teoria da Gramática diz respeito ao número de orações envolvidas, o aspecto mais básico para o estabelecimento da estrutura da sentença. Esta seção pretende verificar se, de fato, os dados oferecidos como evidência para a existência de bioracionalidade em contexto de subida de clítico se sustentam ou podem ser reinterpretados, de maneira semelhante ao que fez Cinque (2004) face aos testes de incorporação V+V oferecidos por Rizzi (1982). Consideraremos, por simplicidade, e por coerência com a visão dos verbos de reestruturação como verbos auxiliares, que a hipótese nula é que há uma só oração, mesmo na inexistência de efeitos de transparência.

Os argumentos apresentados em favor da bioracionalidade das construções de reestruturação por Gonçalves (1999) são os seguintes (excetuando-se a possibilidade de o clítico não ser alçado):

- possibilidade de negação do domínio não-finito;

- possibilidade de ocorrência de adverbiais que modificam o domínio não-finito, com informação temporal independente do domínio finito.

No que segue, discutimos essas duas evidências. Vale notar, antes de mais, que outros testes de auxiliaridade (resenhados em §1.3.1) não são sistematicamente considerados na distinção entre estruturas sintáticas por Gonçalves & Costa (2002). Como mostrado na Tabela 3, os verbos sob análise têm comportamentos não-categóricos com relação a outros testes. Crucialmente, os critérios apontados acima fazem implicam a existência da categoria Tempo no domínio encaixado, o que faz sentido uma vez que, para

Gonçalves, os verbos auxiliares propriamente ditos (ter/haver+particípio passado) são VPs (cf. discussão mais detalhada em Gonçalves 1996).

Consideremos primeiramente o argumento referente à possibilidade de negação do domínio não finito. Gonçalves (1999) argumenta que a presença da negação baixa indica a projeção de um NegP no domínio infinitivo, que estaria atrelada a uma projeção TP ativa e, portanto, incompatível com a formação de predicado complexo, como se viu em (38), repetido abaixo em (73):

(73) a. A Ana só quis não lhes contar a verdade.

b. *A Ana quis-lhes não contar a verdade.

(GONÇALVES 1999: 153 (75))

Nossa hipótese para esse problema é que a negação nas orações infinitivas em contexto de predicado complexo tem um estatuto de negação de constituinte (também denominada

negação sintagmática ou afixal). Essa ideia parece se adequar melhor aos dados, em

primeiro lugar, porque se observa a limitação desse tipo de negação a contextos muito específicos, ao que podemos atribuir sua relativa improdutividade, como em (74):

(74) a. ? Eles acabaram de não cozinhar os legumes. b. # Eles quiseram não fazer as malas.

Duas outras razões podem ser apresentadas, a partir da observação de características associadas à negação de constituinte no português, apontadas por Brito, Duarte & Matos (2003:861). Uma é que esse tipo de negação não licencia itens de polaridade negativa (NPI) – cf. (75) oferecido pelas autoras, e (76)b-d em contraste com (76)a-c:

(75) *Os [não ouvintes] usam nenhuma língua. (sic)

(76) a. A Maria não queria ler nenhum livro. b. *A Maria queria não ler nenhum livro. c. A Maria não deve escrever nenhum livro. d. *A Maria deve não escrever nenhum livro.

A segunda característica associada à negação de constituinte diz respeito à não- vinculação do estatuto de operador ao marcador de negação, o que gera a ênclise em (77)b. Em PE, a negação no complemento de verbos de reestruturação parece não permitir a próclise, a partir de exemplos como (78).47

(77) a. Os meninos preferem não lhe dar o livro. b. Os menimos preferem não dar-lhe o livro.

(BRITO, DUARTE & MATOS 2003:861 (58))

(78) a.*As raparigas devem não lhe entregar a encomenda. b. As raparigas devem não entregar-lhe a encomenda.

Uma terceira forma de identificar a negação de constituinte, de cunho fonológico, diz respeito à impossibilidade de sua redução para a forma na, em algumas variedades do PE, fato possível se a negação for sentencial.

(79) a. O João não comprou flores à Ana. b. O João na comprou flores à Ana.

(80) a. O João comprou à Ana ontem [não flores], mas livros. b.*O João comprou à Ana ontem [na flores], mas livros.

(AZEVEDO 2004)

47 Galves (1992) já havia observado, a partir de dados de infinitivas não-flexionadas em contexto de encaixamento, que a ênclise é a única opção disponível; o marcador de negação não tem estatudo de proclisador nesse caso.

(i) Não chamá-lo seria uma afronta.(*não o chamar) (Galves 1992:63 (8))

Consistentemente com esses fatos, a próclise ao infinitivo em (73) deve ser atribuída ao proclisador só, e não ao marcador de negação.

(81) a. O João continua a não fazer os exercícios. b.*O João continua a na fazer os exercícios.

Esses testes sugerem que a negação do domínio infinitivo selecionada por verbos de reestruturação não pode ser do tipo sentencial (ou frásico), supostamente porque NegP (e TP) não são projetados nesse domínio. Se isso for verdade, a sequência Vreg+Vinf

constitui uma estrutura mono-oracional (independentemente da estrutura sintática específica que vier a ser atribuída a ela). É, no entanto, importante mencionar que os modais poder e dever representam casos especiais aos testes acima arrolados. Sabe-se que, nesse caso, a posição do marcador de negação indica distintas interpretações para o verbo: como modal deôntico (com o significado de obrigação ou permissão) ou como modal epistêmico (com o significado de possibilidade). É interessante notar que, na presença de um item de polaridade negativa, a leitura não é alterada se o marcador de negação tem escopo sobre o Vreg; mas o é se o marcador de negação tem escopo só sobre o Vinf:

(82) a. A Maria não pode ler esse livro. {deôntico; *epistêmico}

b. A Maria não pode ler nenhum livro. {deôntico; *epistêmico}

c. A Maria pode não ler esse livro. {*deôntico; epistêmico}

d. A Maria pode não ler nenhum livro. {deôntico; epistêmico}

A leitura deôntica é possibilitada em (82)d, pois se interpreta que o marcador de negação é sentencial. Isso é possível, de acordo com algumas teorias sobre modais, em termos da postulação de posições sintáticas distintas para o verbo poder, de acordo com a interpretação obtida, e tendo como pressuposto adicional que a posição de NegP é fixa (cf. Picallo 1990 para uma teoria nessa linha). Dessa forma, também é possível compreender o licenciamento do NPI em (82)d sem abrir mão da generalização observada anteriormente, que barra a negação sentencial no complemento desse tipo de verbo.48

48Essa generalização sobre as modalidades deôntica e epistêmica nos leva a uma expectativa sobre o exemplo (78)b: se para determinado falante a negação baixa não funciona como proclisador, sua presença leva a que o verbo auxiliar seja interpretado como epistêmico, não como deôntico (obrigado a Sonia Cyrino por chamar-

As observações verificadas para o português replicam fatos mais gerais sobre a sintaxe da negação. Apesar de frequentemente estar relacionada a um contexto contrastivo, essa não é a característica inerente da negação de constituinte, e sim o escopo restrito desse operador, como se observa nos exemplos (83) e (84).

(83) a. Ele viu [NÃOo policial], mas [o bandido].

b. Ele quis [NÃOestudar], mas [passear].

(84) a. John has not been playing football for many years ( > Q) ou (Q >  )

b. John has been not playing football for many years só (Q >  )

(CHOI 2004 (13))

Em (84)a, há duas leituras possíveis: com o operador de negação tendo escopo sobre o quantificador many (compatível com “John começou a jogar futebol há um ano”), ou com o quantificador tendo escopo sobre a negação (=“John costumava jogar futebol mas não jogou nos últimos quinze anos”). Com a negação de constituinte, exemplificada em (84)b, só a segunda leitura está disponível. Essa é uma consequência necessária se representarmos a negação de constituinte como uma adjunção a V0(cf. Choi 2004) e assumirmos, junto com Haegeman (1995), que a principal característica da negação de constituinte é que o traço negativo não percola até ao nível máximo. Confira a representação abaixo:49

(85) Vmax

g Vmin v não Vmin

Encontramos confirmação para a hipótese de que a negação sentencial pode ser barrada no domínio infinitivo a partir de dados de Rizzi (2000: capítulo 4 [1993]), que mostra ser a construção adjetival complexa do italiano incompatível com a negação sentencial, mas possível com a negação de constituinte. A análise oferecida por Rizzi é que

me a atenção para isso). Tal coerção foi verificada por teste em que (78)b é preferida num contexto que facilita a leitura de probabilidade, e não de obrigação (obrigado a Conceição Cunha pelos juízos).

as orações em questão são “truncadas”, pois não têm projeções funcionais além de InfP (de forma relevante, nenhuma projeção flexional, como AgrO/T/AgrS):

(86) a. Questo problema è facile da (*non) capire.

esse problema é fácil de (*NEG) entender ‘Esse problema é fácil de (não) entender’

b. È facile non capire questo problema.

é fácil NEG entender este problema ‘É fácil não entender este problema’

(RIZZI 2000:109 (15)e-f)

Uma consequência da proposta apresentada é que a subida do clítico por sobre a negação com escopo sobre o domínio infinitivo deveria ser possível. De fato, alguns dados do italiano arrolados em (87) demonstram que isso é verdade. O dado do PE dialetal apresentado em (88) também demonstra o mesmo fato.

(87) a. Lo=continua a non capire.

3SG.ACC=continua PRT NEG entender ‘Ele continua a não entender’

b. Non gli=potrai non parlare dei nostri progetti.

NEG 3SG.DAT=poder.2SG.FUT NEG falar DET.PL nossos projetos ‘Você não será capaz de não falar com ele sobre nossos planos’

c. Lo=puoi sempre non accettare.

3SG.ACC=pode sempre NEG aceitar ‘Você pode sempre não aceitar isso’

(Italiano; NAPOLI 1981:853 (58))

(88) Vi-a mas podia-a não ter visto. (F-II-Sup-O-2004-Porto)

Dessa forma, sugerimos que a análise em termos de violação de minimalidade apresentada na literatura para explicar a agramaticalidade do movimento do clítico sobre a negação deve ser revista.50

O segundo argumento de Gonçalves em favor da tese da bioracionalidade diz respeito à ocorrência de advérbios no domínio infinitivo com especificações temporais distintas de advérbios do domínio mais alto. Na mesma linha do argumento anterior, Gonçalves (1993, 1999) defende que verbos de reestruturação não são inerentemente auxiliares, pois selecionam um complemento temporalizado. O processo de formação de predicado complexo implica sua “auxiliarização”, o que implica a defectividade do Tempo encaixado. Para mostrar isso, apresenta os seguintes exemplos:

(89) Ontem, o Pedro pensava ir ao teatro com o pai esta noite.

(90) (?)Ontem, o Pedro podia ir com o pai ao teatro esta noite (hoje telefonou a dizer que

não pode). (GONÇALVES 1993:241 (26), (27))

Em (89), o verbo proposicional pensar, que não forma predicado complexo, admite um complemento temporalizado, o que se evidencia a partir da presença do adverbial esta noite junto ao domínio encaixado. (90), com o modal poder, parece se comportar de forma paralela a (89), o que mostraria a existência de uma oração com Tempo ativo.

O dado em (90) pode ser reinterpretado, de forma a ser compatível com a ideia de que o infinitivo não tem Tempo, mesmo na variante sem efeito de transparência, pace Gonçalves (1993, 1999). Para tanto assumimos, juntamente com Wurmbrand (2007b), que o Tempo matriz é responsável pelo licenciamento de predicados eventivos encaixados em contextos de reestruturação, como mostrado em (91).

50A impossibilidade da subida do clítico coocorrendo com o marcador de negação não ou com o focalizador

só junto ao domínio infinitivo pode ser atribuída ao fato de tais elementos requererem o escopo baixo do

clítico, em contradição com o seu papel de marcadores de escopo alto. As principais exceções encontradas no PE, no que diz respeito à negação, são encontradas com clíticos dativos éticos:

(i) A razão até te pode não faltar! (www.portugaltunas.com) (ii) Há solidão que me continua a não fazer sentido! (www.blogger.com)

Cf. também a restrição à subida com a repetição do advérbio già na seção 2.1.1.1 e a análise do clítico como marcador de escopo na seção 2.2.2.2.

(91) a. Leo PRESiseems [eito sing in the shower] (*right now).

b. Leo PASTiseemed [ eito sing in the shower] (right then).

(adaptado de WURMBRAND 2007b: (16))

Esse licenciamento nada mais é que a presença, ou do traço de Tempo na projeção correlata (que indica Passado), ou de uma projeção indicativa de futuro, na proposta da autora. Dessa forma, a variável EVENTOé ligada, como mostra o contraste abaixo (o presente não licencia

o adverbial temporal):

(92) a. Leo sings in the shower (*right now). {*Presente}

b. Leo sang in the shower right then. {Passado}

c. Leo will sing in the shower right then. {Futuro} (WURMBRAND 2007b: (20))

Dessa forma, Wurmbrand (2007b) apresenta argumentos para reinterpretar a noção de que infinitivos têm Tempo, como propôs Stowell (1982).

Parece-nos que a mesma perspectiva pode ser aplicada ao exemplo (90), mediante algumas considerações adicionais sobre a sintaxe do Tempo. Em primeiro lugar, note-se que exemplos semelhantes em que se altere o tempo do modal para o pretérito perfeito do indicativo não são possíveis, como mostram as sentenças em (93). Em segundo lugar, apesar de a morfologia de tempo do modal em (90) ser a de um pretérito imperfeito do indicativo, sabe-se que é muito comum o uso dessa forma para significar o condicional, como se nota a partir dos exemplos em (94).51

(93) a. *Ontem, o Pedro pôde ir com o pai ao teatro esta noite.

b. *Os jornalistas, anteontem, puderam divulgar a fotografia do culpado, ontem.

(GONÇALVES 2002 (13))

51O condicional é denominado futuro do pretérito na Nomenclatura Gramatical Brasileira. Em ocasiões de formulação de pedido o imperfeito é considerado “polido”, uso mais comum no PE que no PB, especialmente com o verbo gostar, cf. Eu gostava de um refrigerante, estranha em PB, mas pefeita em PE.

(94) a. Se eu tivesse muito dinheiro, (comprava) um iate. (~compraria) b. (Podia)-me dizer as horas, por favor? (~poderia)

(HUTCHINSON & LLOYD 1996:59)

Portanto, (90) é um desses casos em que o pretérito imperfeito tem o valor de condicional, ou seja, de um “futuro no passado”, na caracterização de Comrie (1985:109). Sabe-se que, diferentemente do pretérito perfeito, um tempo absoluto, o condicional é um tempo

relativo, pois seu ponto de referência tem de ser oferecido pelo contexto. O adverbial ontem

oferece uma pista do contexto, subentendido no exemplo em questão. Formulamos a paráfrase de (90) como em (90’) a seguir:

(90’) Ontem o Pedro disse: “poderei ir ao teatro com meu pai (amanhã)” [mas isso não é verdade]

A paráfrase sugere que o argumento temporal exigido pelo condicional é abertamente especificado num predicado superior implícito (não no modal), e o futuro no predicado matriz (não no infinitivo) é que licencia o evento contrafatual de “ir ao teatro com o pai”.

Se o raciocínio acima for correto, resta ainda abordar uma questão mencionada no início desta subseção, ou seja, o comportamento sistemático dos particípios passados e gerúndios com relação aos testes apresentados por Gonçalves (1999). O exemplo em (95) demonstra, para Gonçalves, o estatuto de verdadeiro auxiliar de ter nesse contexto, no que se refere ao licenciamento do adverbial temporal.52 No entanto, a incompatibilidade parece ser de ordem semântica: o tempo expresso por tinha ido, um perfeito anterior, requer um ponto de referência anterior a outro ponto no passado. Esse requisito é desfeito pelo adverbial esta noite:

(95) *Ontem, o Pedro tinha ido ao teatro com o pai esta noite.

52 Para Gonçalves (1996), o auxiliar de tempo composto selecionaria um VP, o que explicaria a obrigatoriedade da subida de clítico nesse contexto. A representação para essa sequência será apresentada no capítulo 2, juntamente com a discussão sobre a estrutura a ser adotada para a sequência com infinitivo.

Portanto, sustentamos a ideia de que a presença, nem do marcador de negação, nem de um adverbial temporal no domínio mais encaixado (com interpretação distinta de outro ligado ao verbo regente) parecem ser evidência conclusiva a respeito da existência da projeção de um TP encaixado, considerado o aspecto essencial para a postulação de uma estrutura bioracional para os predicados complexos.

Como consequência dessa análise, adotamos, no que se refere ao compartilhamento de traços temporais, uma perspectiva muito parecida à que propõe Wurmbrand (2003), já citada junto ao exemplo (36), em que só há uma projeção da categoria Tempo numa sentença com predicado complexo. No entanto, assumimos que o compartilhamento de traços temporais não se dá de forma automática, mas por Agree, dando seguimento a proposta de Biberauer & Roberts (2010):

(96) Maria poderá ganhar o concurso.

 t [t > to] (EM (e,t) & ganhar (x,y))

C T Asp/v V

(Biberauer & Roberts 2010 (6)), com adaptações

De acordo com a visão dos autores, a sintaxe codifica relações semânticas estabelecidas entre o Tempo do Evento (codificado pela varável e, de acordo com Higginbotham 1985) e o Tempo da Enunciação, estabelecido pela variável t. O operador “EM”, emprestado de Davidson (1967), relaciona essas duas variáveis, esta em T e aquela no v mais baixo, no caso dos predicados complexos (cf. o próximo capítulo para a motivação da estrutura). Segundo Biberauer & Roberts (2010), essa relação pode ser codificada pela operação

Agree.53 Tal formulação é necessária para compreender alguns casos especiais de predicados complexos, referidos a seguir.

53O operador “” indica possibilidade, e deve alcançar o escopo alto que lhe é inerente na sintaxe coberta,no caminho para a interface semântica. O Tempo de Referência estaria codificado na camada C como um operador que se relaciona com T, que codifica o Tempo da Enunciação. Sendo este último relacionado ao Tempo do Evento por uma relação prévia de Agree, tem-se a relação entre esses três valores temporais, por transitividade.