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5 A IGREJA INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS: o espírito do dízimo

5.5 Comentários finais

Todo esse processo reflexivo e de ensinamento religioso vivenciado pelos fiéis da Igreja da Graça sob a orientação de um único pastor fica claro, em sua totalidade, no nosso relato um discurso95. Este revelou um conjunto de “coisas” que se prestaram não só

95 Quando nos referimos a discurso, não estamos entendendo por isso tão-somente o que aqui está relatado por escrito. Isso também é discurso. A dinâmica religiosa presente nos cultos neopentecostais não se restringe, por exemplo, à fala do pastor, a qual não é única, pois há a fala dos obreiros (as), dos fiéis. Rosalind Gill (2002, p.

para compor um ato de comunicação, mas fundamentalmente para definir, modificar ou ratificar uma realidade simbolicamente constituída. Não há dúvida, no entanto, de que um dos pressupostos subjacentes a essa experiência discursiva tenha sido os fiéis em suas mais diferentes situações ali verificadas, principalmente, quando anunciadas por seus próprios testemunhos.

Considerando o campo religioso produtor de sentido, no qual não só a fala exerce comando de direção, por expressar bem seus símbolos como forma de persuasão, destacamos o que, no momento, achamos fundamental: a instituição religiosa da Graça favorece, a partir de uma diversidade de “coisas” no cotidiano dos cultos, uma identidade à sua membrezia. 96 Cada fiel, em sua adesão de pertencimento, passa para além de “simples” conversão a vivenciar, no dia-a-dia, a construção da lógica de pertencimento preocupada com uma identidade. Esta pode expressar-se, por meios tradicionais, como passar por um rito de batismo ou carregar na camiseta um emblema com dizeres, tal qual “sou dizimista fiel”. Porém existe algo de pertinente no processo de ritualização vivido pelos fiéis neopentecostais que indica não ser só criativo; há certa lógica comunicacional diferente e forte, não vivida antes por alguém que chega pela primeira vez. Fundamentalmente, tal identidade é vivenciada e assumida. Ser dizimista fiel, por exemplo, é um sentimento que deve ser manifestado como um sinal de santidade:

Quem for dizimista fiel, Deus repreenderá o devorador. Quem não dá o dízimo, o devorador age, impedindo que a vida prospere. (D/R n. 7).

247) reflete que o termo discurso “é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos, seja quando ocorre naturalmente nas conversações, como quando é apresentado como material de entrevistas, ou textos escritos de todo tipo”. Mas não só fala e textos escritos mas também cantos, expressões plásticas, uma variedade de objetos outros que se transformam em símbolos compõem e se tornam discursos.

96 Ao final deste capítulo, destacamos, em forma de síntese, as expressões-chave e idéias centrais subjacentes ao nosso relato de campo anteriormente exposto, o qual, juntamente com as entrevistas, comporá o quadro empírico de referência para nossas análises. Para diferenciar do modo de indicarmos as entrevistas, as expressões-chave e idéias centrais, quando utilizadas no corpo do texto como suporte do aprofundamento, serão sinalizadas com D/R (Destaque do Relato) e sua seqüência numérica para verificação.

Na hora de ofertar, não pode ser com tristeza, mas, com alegria, pois Deus está olhando para o coração de cada um. (D/R n. 8).

Há prescrição ritual para o fiel se comportar em um dos momentos tão sagrados, como o das ofertas. O fiel sabe que não era assim, principalmente se pertencera à confissão católica romana. Novo laço socioidentitário começa a se desenhar: dar com alegria, para repreender o mal e, assim, prosperar; acima de tudo, dar e não de qualquer jeito. Isso causa inquietação, porque dar, independente da sua situação socioeconômica, exige na nova realidade relacional, outra atitude para “pertencer”, como antes não se verificava: dar, mas com alegria. O ritmo que deve expressar a vida religiosa agora, no novo espaço de pertencimento, deve ser o mesmo expresso na vida social lá fora, onde nem tudo é só tristeza. O relato que expomos em páginas anteriores, nas quais mostramos um processo de ritualização, não tem outro objetivo senão o de fortalecer os sentimentos de pertença coletiva ou de dependência de uma realidade moral superior que se deve acreditar salvar o indivíduo do caos e da desordem em que está vivendo:

Assim que cumprimos nossos deveres rituais, retornamos à vida profana com mais coragem e ardor, não somente porque nos pusemos em contato com uma fonte superior de energia, mas também porque nossas forças se revigoram ao viver, por alguns instantes, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre. (DURKHEIM, 1996, p. 417).

Importa deixar claro que o que está no centro dessa regra ritual – “ofertar com alegria” – diz respeito a algo desejado como sagrado: o dinheiro. Essa ação sobre tal objeto não parece ser comum no cotidiano, isto é, ali o dinheiro não é separado para pagamento, mas para ser ofertado por meio de ato religioso que o consagra. Tal ação pressupõe eficiência, na medida em que a intenção é debelar o mal que tranca o caminho da prosperidade individual ou da própria família – muitas vezes, conforme o próprio testemunho, no “fundo do poço”. O que foi mencionado acima fala de “coragem”, “energia”, “forças”, “agradável”, “revigorar”, tudo muito próprio de verdadeira identidade ritual, pois esta, fundamentalmente, ao se expressar, por meio da prática de simbolização,

se pretende também eficaz. Mas isso não se verifica apenas como algo próprio da esfera religiosa, segundo observa Mary Douglas (apud SEGALEN, 2002, p. 29)97:

Animal social, o homem é um animal ritual. Suprima uma certa forma de rito, e ele reaparece sob uma outra forma, com vigor tanto maior quanto mais intensa for a interação social [...]. Não existe amizade sem ritos de amizade. Os ritos sociais criam uma realidade que, sem eles, nada seria. Pode-se dizer sem exagero que o rito é mais importante para a sociedade do que as palavras para o pensamento. Pois sempre se pode saber alguma coisa e só depois encontrar palavras para expressar aquilo que se sabe. Mas não existem relações sociais sem atos simbólicos.

O ritual e suas “coisas” estão em um só campo de significado: buscam produzir tão-somente sentido. Na citação de Durkheim, este reflete que, por meio do rito, se pretende “por alguns instantes, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre”. Isso é certo, mesmo a um custo de sacrifício, como costuma acontecer nos ritos religiosos. E, conforme Mauss, “modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (1999, p.151).

Nosso relato de campo quer ser mais que formação discursiva, em que o sujeito pode e deve dizer em uma determinada conjuntura. O dizer, o falar se coloca como inerente ao processo de ritualização, que se apresenta mais amplo. Pela natureza do objeto que identificamos e pelo qual nos interessamos como “coisa” a compor todo o processo ritual, não seria o bastante dizer: existe um tipo de discurso e, nele, o desnivelamento na relação entre locutor e ouvinte (o pregador/pastor e os fiéis) – o locutor, “dono” da voz, está legitimado por tomar parte do plano espiritual e o ouvinte, colocado nessa relação, no plano temporal. Não seria bastante, ainda, dizer simplesmente que, nesse tipo de discurso, a religião abarca duas dimensões – a de concepção de mundo e a de atitude prática – ou foca tão-somente a noção de fé. Tudo isso conta, mas sob a identificação de processo ritual. Suas regras estão muito bem colocadas e seguidas, quando verificamos todo o movimento dentro do templo da Igreja da Graça e nos relatos de testemunhos que sempre

97 Cf. também Rivière (1997, p. 18).

legitimam a eficácia das expressões rituais na vida e na relação dos fiéis com o seu “mundo” agora. É bem verdade, por exemplo, que a noção de fé é ponto importantíssimo de discernimento se considerarmos apenas um discurso, pois ela é sempre algo tomado pela hierarquia religiosa como exemplo fundante da ação no cotidiano dos fiéis e, conforme Orlandi (1996, p. 250),

entre as qualidades do espírito está a fé, que é o móvel para a salvação. Isto é, dada a condição humana em relação a Deus, dada a separação indicada por essa condição (o pecado existe), a fé é a possibilidade de mudança, é a disposição de mudar rumo à salvação.

Mas, insistimos, no momento do relato de campo, há uma totalidade de “coisas” acontecendo, cuja identificação em um tipo de discurso por si só não suporta tamanha expressividade e plasticidade subjacente, porquanto não só a “fala” é expressiva como dimensão simbólica, até porque a concepção hoje de discurso não mais se resume a tal compreensão98.

Em síntese, queremos que fique entendido como “totalidade de coisas” expressas no intercurso do processo de ritualização por nós descritos o seguinte: “por meio destes rituais, os elementos abstratos identificados, analiticamente, cobram significação social. E se materializam em formas de relações, sanções, narrativas, cerimônias, que dão um senso de identidade e normatividade aos membros do (s) grupo (s) implicado (s)” (Cf. BURITY, 2002, p. 35). Ao lermos a síntese das expressões-chave e suas idéias centrais (ver síntese a seguir) subjacentes ao relato de campo, percebemos quanto “esforço” se faz para os fiéis encontrarem, por exemplo, uma ordem de valor entre o mundo lá de fora (sociedade real) e o mundo do desejo religioso (sociedade sonhada/Reino de Deus). É preciso que eles escolham, também por meio da fé, em meio a tantas tensões, algumas bases práticas para projetar, mais além, o mundo que buscam desde o momento de adesão ao pertencimento

98 A questão do lingüístico e do extralingüístico como uma unidade que se apresenta em dada construção cultural (Cf. LACLAU ; MOUFFE, 1993; LACLAU, 1992).

eclesial da Graça. Isso só torna possível, porque se confere uma identidade ao grupo, o que é missão institucional (Cf. DOUGLAS, 1998, p. 63).

A força inerente à “doação” na experiência neopentecostal, mesmo centrada no dinheiro como meio mais expressivo, se apóia na concepção doutrinária segundo a qual qualquer sofrimento vivido pelo cristão indica falta de fé. A oferta designa a dádiva como livre doação na fé, em que o propósito configura uma espera: ser bem-sucedido, gozar de plena saúde física, emocional e espiritual, além da prosperidade material. A “doação” é um lançar-se a si à espera de reconhecimento. Em razão do referido ato, o fracasso não mais baterá à porta nem adentrará para fazer morada. O coração é o critério e a ”medida” que firmam a doação, pois aí Deus incide para destronar a dúvida e, assim, imprimir o valor da oferta que jamais saldará dívida alguma, porque, na circularidade desse dom, a obrigação, como constante antropológica, é não romper com a relação. Isso buscaremos explicar no capítulo a seguir.

Síntese do Relato de Campo

Expressões-chave Idéias centrais

1 O mal que está a incidir sobre alguma dimensão da vida será derrotado conforme a perseverança e a demonstração de fé através das ofertas.

2 Na existência das coisas, o diabo manifesta sua força, sua alma, por isso tranca a vida, “tranca a rua”. É preciso destronar o “capeta” desse seu poder.

3 Perseverar é trazer a sua consagração para que a obra cresça. O dinheiro como objeto consagrado é mostrado como íntimo.

4 É do coração que vem o valor, de onde vem a medida que funda o acerto de afinidades entre o homem, Deus e o dinheiro.

5 Pensamento ruim impede, amarra o fiel, puxa para baixo. Mudar o pensamento é algo de muito importante para que a vida prospere.

6 O pensamento novo reintegra o fiel à sua razão, que se vê livre das idéias perturbadoras do diabo, que o impede de dar o melhor.

Perseverar; destronar o diabo. O dinheiro como consagrado. O coração: a medida que afina a relação entre o homem, Deus e o dinheiro.

Pensamento novo reintegra o fiel à sua razão.

7 Quem for dizimista fiel, Deus repreenderá o devorador. Quem não dá o dízimo, o devorador age, impedindo que a vida prospere.

8 Na hora de ofertar, não pode ser com tristeza, mas com alegria, pois Deus está olhando para o coração de cada um.

9 Não dá mais do que a fé orienta. O fiel tem que ter sensibilidade para ouvir a voz de Deus. O Espírito Santo pode orientar você a dar tudo. Não é o pastor que examina a orientação. É a fé que examina. 10 Emoção é ação destrutiva. A fé, algo inteligente. Se

Deus manda alguém dar tudo o que possui, ele abençoará em dobro.

Ofertar com alegria. Dar sob orientação da fé. Emoção: ação destrutiva.

11 Nunca diga “não posso”; nunca aceite o fracasso; não deixe a derrota falar; nunca perca o ânimo; nunca diga: “não dá”, “não vou conseguir”; mantenha sua fé em ação; você vai conseguir; você não tem que se desesperar; siga em frente; siga forte.

12 Ninguém pode agir como se age lá fora, na sociedade.

13 Tudo o que você precisa é saber usar a fé.

“Não” ao fracasso. Não agir como na sociedade.

Saber usar a fé.

14 A oração é sempre no sentido de uma “desamarração” de algo a impedir o bem-estar do fiel.

15 O momento da oferta tem de ser um momento de generosidade, de fé, não de medo.

16 Pressão não gera fé e o medo gera apenas desconfiança.

17 A oferta é um momento sagrado. Não é o valor que Deus olha, e sim o coração.

A oração desamarra. Ofertar com generosidade e

não com medo. Oferta momento sagrado.

18 O diabo tem prevalecido em muita gente, porque a pessoa tem desfalecido, não tem ânimo e abandonou a confiança em Deus.

19 Com a quebra do voto, a Igreja perde a integridade. O dinheiro é uma conseqüência, pois Deus olha para o caráter do fiel. Não quebre o voto, seja íntegro. 20 Você se associou, começou bem, e chegaram as lutas,

as dificuldades; e hoje você não colabora mais. Hoje você não tem mais aquele empenho, não se preocupa como antes. Peça perdão a Deus igreja.

21 Você tem um guerreiro dentro do seu peito. E ele não quer que você fique conformado.

22 Se a pessoa está desempregada, que vá para a luta e faça alguma coisa para transformar a mente e transformar a vida, e que as bênçãos chegarão. 23 Deus tem que encontrar em cada um uma disposição,

um espírito de guerra, de determinação; se tiverem esse espírito, tudo vai dar certo, e as bênçãos chegarão.

24 A oferta hoje vai ser de revolta. Dê sua oferta com raiva, com inconformismo.

Desfacelamento, abandono da confiança. Quebra do voto, perda da integridade da Igreja e do fiel. Guerreiro dentro do peito, espírito de guerra.

Transformar a mente, transformar a vida. Uma oferta de revolta e de