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4 O NEOPENTECOSTALISMO E AS MEDIAÇÕES DA PROSPERIDADE

4.2 Imaginário da purgação

4.2.2 A doença

O sofrimento causado pela doença sempre acompanhou a história religiosa dos sujeitos. E, com certeza, não pôde ser explicado tão-somente, por exemplo, pelas “perturbadas relações interpessoais”. A possibilidade do sofrimento é inerente à própria existência dos corpos dotados de sensibilidade, ou seja, a questão deve ser entendida a partir das reações humanas aos males e riscos que atingem ou ameaçam os seres humanos em seus contextos de vida e de sociedade. Aqui, o Neopentecostalismo insere em seu campo aspecto bastante crucial na vida do fiel – a busca pela cura divina:

A cura viria ao encontro do conjunto de enfermidades físicas e psicossomáticas, num país no qual o atendimento médico passa por uma crise crônica: atendimento governamental precário e o particular inacessível à maciça maioria da população. Em suma, as políticas de saúde no Brasil reproduzem o modelo econômico excludente, que condena à morte extensas faixas da população. Acrescentam-se as diversas agressões ao meio ambiente, a poluição sonora, a presença de agrotóxicos e outros agentes químicos na alimentação, geometricamente multiplicadores de uma infinidade de doenças; e mais, a falta de saneamento básico, cujo alvo principal são as crianças. As que sobrevivem carregam seqüelas pelo resto de suas vidas. O quadro das doenças mentais é ainda mais alarmante. Praticamente inexiste um atendimento ambulatorial qualificado para aquilo que o senso comum denomina de ‘doenças nervosas’. Persiste uma gama de neuroses e psicopatias adicionada as sociopatias, na proporção em que se ampliam os segmentos da população submetidos ao estado de miséria, num ambiente de violência, inclusive institucional. Por tudo isso, qualquer promessa de cura recebe uma resposta imediata e massiva, sobretudo quando de origem religiosa. Nas regiões absais da subjetividade coletiva existe uma expectativa permanente de intervenção divina e arrasadora capaz de transformar radicalmente o contexto de sofrimento e abandono. (BITTENCOURT, [s.d.], p. 31 et seq.).

A imagem fornecida pelo referido cenário obedece – parece-nos – a um ciclo de morte, causando a sensação de que essa modernidade-mundo é incapaz do amparo, do acolhimento e, mais ainda, traiu a sua própria missão: dever, perante cada indivíduo, de

eliminar-lhe a dor, curando suas doenças. Não é essa a crítica feita à Medicina moderna, que transformou a dor em problema técnico? O sofrimento causado pelas doenças, como realidade visivelmente presente no espaço religioso neopentecostal percorre, agora, um ciclo diferente do ciclo que insiste nos portadores de suas enfermidades de que a saída é a morte: busca encontrar os responsáveis ocultos por tal sofrimento. Embora numa linha de não-preocupação com a transformação do mundo, esse tipo de experiência pentecostal “põe o dedo nas feridas dos pobres”, dizendo – contraditoriamente ao que sugerimos como responsáveis subjacentes aos cenários acima considerados “causadores” – que o responsável pelo sofrimento causado pela doença é de ordem da malevolência de um espírito, ou seja, aos olhos do crente, “a doença é causada pela presença do mal (do demônio) no corpo. Assim sendo, Satã às vezes se manifesta no momento da imposição das mãos. Então, o exorcismo torna-se necessário” (CORTEN, 1996, p. 72).

A estratégia neopentecostal não deixa dúvida quando, por exemplo, analisamos uma de suas significativas expressões, como a Igreja Internacional da Graça de Deus, que, ao buscar os responsáveis pelas dores e sofrimentos dos fiéis, não sinaliza para planos de governos, cenários internacionais, algum inimigo estrangeiro, rumos da economia etc., mas identifica o demônio como negação do progresso da fé religiosa, pois esta deseja um mundo inteiramente evangélico. Por isso a conversão acontece para o interior da comunidade; o que fica de fora está sujeito à ação do maligno. O maligno povoa o universo cultural religioso e, sobretudo, o neopentecostal – clara demonstração de resistência ao mundo secular, para o que faz valer a força do encanto como pressuposto para explicação das coisas racionais. Nessa perspectiva, o sofrimento causado pela doença, pela dor não decorre de injustiça social; pelo menos, no nível do discurso, não é por esse eixo que tudo se explica:

Minha vida era totalmente bagunçada. Sentia muita desunião... Quando a gente chega na igreja, normalmente a gente chega arrebentado. Então, há um avivamento da fé. O trabalho de evangelização, o trabalho de pregação abre e examina nossa mente e, a partir dali, você vai vivendo a fé e vai colocando

em prática. Vai havendo uma quebra, porque a pessoa chega cercada de vários demônios. Então, com isso, o diabo se afasta da pessoa, e aquele mal que perseguia vai desaparecer. A visão agora não vai mais ser uma visão do passado, vai ser uma visão espiritual, uma visão de só coisas ligadas a Deus. Então, Deus, tendo misericórdia, nos abraça. Eu cheguei cansado com o meu fardo. Ele retirou e me aliviou. E fiquei. (Entrevista n, 03).

Não se pode negar que, nessa fala, na qual se misturam vida cotidiana e crença religiosa, não há como separar saúde e salvação, doença e pecado. Historicamente, na simbólica do mal do universo religioso cristão, ele – o mal – “aprisiona” e Deus salva, “libertando”. Se percebermos de forma atenta, o contido na situação acima descrita pelo fiel, deparamo-nos com a circunstância de quem estava “arrebentado”, “cercado de demônios” e revela o quanto era urgente o mal ser “arrancado à força”. Impossível sair, sozinho, do atoleiro; é preciso “alguém” ajudar de fora, para se aliviar o peso do fardo. Lepargneur (1985, p. 120) refletia, ao tratar sobre a simbólica do mal, à luz dos textos bíblicos, que o homem está dividido: nele, operam-se a morte e a vida. Essa dicotomia, de há muito, afeta todo o universo de nossas representações: a liberdade milita contra o mal; a luz, contra as trevas; a transparência, contra a opacidade; a identidade, contra a alienação; a coerência, contra a desordem; a alegria, contra o sofrimento; o amor, contra o ódio ou a indiferença. Assim, ativo ou passivo, o mal não é apenas categoria do real – conclui o referido autor – como categoria do real que é, ele também informa os modos bíblicos e humanos de pensar, julgar e falar. Não é exatamente isso que está representado na fala acima em destaque?

Sem perder de vista a questão do sofrimento causado pela doença, R Leriche, citado por Canguilhem (1995, p. 67), havia dito: “[a] doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer”. No saber da lógica neopentecostal, quanto às doenças de origem espiritual, não há como recorrer, para sua explicação, a causas históricas e humanas. Aquilo que “perturba” o fiel na dor, na doença e na pobreza deita raízes em algo, assim, transpessoal. A consciência do seu

corpo, diante do estado de doença, torna-se possível no momento de deixar-se exorcizar. 74 Daí, os longos testemunhos sobre curas no dia-a-dia das igrejas.

No universo religioso neopentecostal – podemos dizer –, a doença revela a existência de um inimigo ou a sua causa maior: o demônio. Em Orixás, caboclos e guias:

deuses ou demônios?, o Bispo Macedo (1990, p. 68 et seq.), da Igreja Universal do Reino de Deus, aponta que a possessão demoníaca, além de estar ligada à questão do pecado, se revela nas doenças, o que tem sido uma constante na vida cotidiana de muitos fiéis que chegam à igreja. O autor apresenta uma relação que contém sinais de possessão, os quais, segundo ele, são sintomas, há muito, idenficados:

1.nervosismo, 2. dor de cabeça constante, 3. insônia, 4. medo, 5. desmaio ou ataques, 6. desejo de suicídio, 7. doenças cujas causas os médicos não descobrem, 8. visões de vultos ou audição de vozes, 9. vícios e 10. depressão.

De fato, por intermédio do exorcismo, toda essa situação tem sido transformada, imprimindo uma saída por completo de quem vinha causando tantos atos de danação sobre o corpo, sobre a vida. Por tal razão, normalmente os pastores insistem em afirmar, em suas pregações, que os médicos não conseguem entender o mal de que se sofre, pois este é de origem espiritual. 75 Frente a tudo isso, não poderíamos deixar de concluir que o fim da dor e do sofrimento significa a vitória do Bem contra o Mal. Sobre essa questão, reflete Hervieu- Léger (1997, p. 41):

Dentro do universo cristão tradicional, o tema da cura está regularmente associado ao da salvação, a última sendo metaforicamente significada (e

74 Para Assmann, segundo Corten (1996, p. 80), ao participar dos cultos, “damo-nos conta de que o demônio é um dispositivo simbólico para designar os males sociais oprimindo os pobres: o desemprego, a fome, a prostituição, as crianças de rua, a droga. Fala-se cada vez mais, tanto nas igrejas como na televisão. Segundo esse discurso, estes males não podem ser curados nem por uma ação individual, nem por uma ação coletiva (pelo menos atualmente possível) [...]. Tornar o demônio responsável pelos males da sociedade nem por isso acaba numa atitude fatalista. É preciso lutar contra esse demônio. O demônio é forte. É normal que seja muito difícil. E é tomando consciência do demônio que o indivíduo pode converter-se e sair da pobreza”.

75 Mariz (2000, p. 256), fazendo referência a essa lista do Bispo Macedo em um artigo intitulado “O demônio e os pentecostais no Brasil”, situa o texto desse autor “numa linha teológica que tem cada vez mais se ampliado mundialmente, em especial no meio evangélico, e que tem sido identificada como a ‘teologia da guerra espiritual’. Juntamente com a ‘teologia da prosperidade’, a ‘teologia da guerra espiritual’ tem se expandido em termos globais através do crescimento das igrejas evangélicas e pentecostais”.

praticamente antecipada) na primeira. Nos movimentos de renovação religiosa em terreno cristão (particularmente em algumas correntes carismáticas fortemente marcadas pela psicologia e pela teoria das relações humanas), observa-se com freqüência uma inversão das perspectivas: o tema da salvação não remete mais à espera – culturalmente desvalorizada – de uma vida em plenitude num outro mundo. Ele funciona como um marco simbólico que alarga o pedido de cura a todos os aspectos da realização de si. Esta busca de uma tão total realização de si mesmo no mundo está perfeitamente de acordo com a cultura moderna do indivíduo. Nesta maneira moderna de articular salvação e cura, é a visão da salvação que aparece como metáfora da cura, um modo de dizer que a saúde total, alcançada neste mundo, implica a integridade ao mesmo tempo física, psíquica e moral do indivíduo. E a evocação da “salvação” não passa de um modo de desafiar a medicina moderna para que assuma esta concepção integrada do que é humano.

Em The Sociology of Religion, Max Weber (1963) trata a questão do sofrimento na perspectiva religiosa, ao investigar a idéia de teodicéia no capítulo IX intitulado

Theodicy,Salvation, and Rebirth:

Quanto mais o desenvolvimento tende em direção das concepções de um deus unitário transcendental que é universal, mais há um aumento do problema de como o poder extraordinário de tal deus pode ser reconciliado com a imperfeição do mundo que ele criou e governa. (p.138/139) 76.

O referido autor segue sua reflexão, tomando por base resultados de um questionário direcionado a trabalhadores alemães, afirmando que

de fato um questionário recente, submetido a milhares de trabalhores alemães, revelou o fato que suas rejeições da idéia de Deus, foi motivado não por argumentos científicos, mas por sua dificuldade de reconciliar a de providência com a injustiça e imperfeição da ordem social. (p. 139) 77.

Assim, segundo Erp (2006, p. 139), em análise do capítulo acima, “de acordo com Weber, a religião funciona na sociedade, por um lado, como explicação insuficiente ou convincente do sofrimento, enquanto que, por outro, mostra que diferentes sistemas de crença criam diferentes sociedades através da explicação que dão do sofrimento. A seguir, afirma: “o

76 “But the more the development tends toward the conception of a transcendental unitary god who is universal, the more there arises the problem of how the extraordinary power of such a god may be reconcililed with the imperfection of the world that he hás created and reles over”.

77 “Indeed, a recent questionnaire submitted to thousands of German workers disclosed the fact that their rejection of the god-idea was motivated, not by scientific arguments, but by their dificulty in reconciling the idea of provicence with the injustice and imperfection of the social order”.

sofrimento enquanto experiência social é o fundamento e função da religião na sociedade”. A reflexão anteriormente citada de Hervieu-Léger apresenta-se, então, como exemplificação da posição weberiana, segundo essa breve análise de Erp.