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A modalidade de dádiva presente na práxis religiosa neopentecostal não poderá deixar de ter por referência o tipo de discurso enquadrado no campo religioso. Isso implica, já neste momento, fazer algumas observações sobre o conceito de “formação discursiva”. Esta compreende o que o sujeito pode e deve dizer em determinada situação bem como em determinada conjuntura, de tal forma que,

remetendo seu discurso à ideologia, essa formação fará que suas palavras tenham um sentido e não outros possíveis. É pela remissão à formação discursiva que se identifica uma fala. (ORLANDI, 1987, p.17).

Na instituição religiosa neopentecostal aqui tomada como referência para estudo – a Igreja Internacional da Graça de Deus –, estão contidas formações discursivas que podem ser entendidas como dicionários diferentes que remetem à ordem de discurso diferente. Nessa perspectiva, num processo de estudo como o que estamos empreendendo, devemos sempre entender de outra forma o que se diz em face de uma característica, por exemplo, de sobreposição de sentido na ordem da fala, ao se referir, por exemplo, ao mesmo objeto. A estratégia reside, em primeiro lugar, em nos fazermos as perguntas: O que não se está

discutindo enquanto se está discutindo? O que se está dando enquanto damos o que não estamos dando? A dádiva se qualifica também por dentro desse processo, haja vista que, na análise a ser feita do referido discurso, estaremos atentos ao que a instituição diz e faz em relação àquilo dado e circulante.

O discurso religioso caracteriza-se como aquele em que fala a voz de Deus: a voz do pastor, do pregador ou, em geral, de qualquer representante seu, por exemplo, um obreiro que atende um fiel antes do culto ou da reunião. Nosso objetivo, desde as entrevistas até a participação nos eventos, é estabelecer, por meio do processo de análise, como, na experiência de pertencimento religioso, o dinheiro tem sido visto e entendido. Mesmo sob a hipótese de

dádiva, esta deve ser concebida como inserida em certo tipo de discurso no qual esteja presente certo desnivelamento na relação entre locutor e ouvinte (o pregador/pastor e os fiéis): o locutor, “dono” da voz, está legitimado por tomar parte do plano espiritual; o ouvinte, colocado nessa relação, no plano temporal. Assim, o locutor e o ouvinte, por pertencerem a duas ordens de mundo totalmente diferente e afetado por um tipo de valor hierárquico, pois há desigualdade nessa relação, são afetados, daí a dádiva é, também, afetada. Ao identificarmos essa dualidade no âmbito do religioso, o fato em análise provoca dissenso na ordem de compreensão das coisas, fazendo com que o sujeito mais importante do discurso religioso – no caso, Deus – tenha para Ele todas as coisas ligadas, porque Deus está colocado numa relação hierárquica de valor. Portanto, é desse dualismo que o discurso religioso se compõe, e assim tratamos o objeto do nosso estudo. Contudo, outro elemento – já referido em capítulos anteriores – não pode passar despercebido: a noção de fé.

Entre as qualidades do espírito está a fé, que é o móvel para a salvação. Isto é, dada a condição humana em relação a Deus, dada a separação indicada por essa condição (o pecado existe), a fé é a possibilidade de mudança, é a disposição de mudar em direção à salvação. (ORLANDI, 1996, p. 250).

Trata-se de elemento importantíssimo de discernimento nesse tipo de discurso, seja qual for o objeto em que se esteja interessado, pois, na hierarquia religiosa, é elemento fundante da ação no cotidiano dos fiéis. Assim, no nosso ponto de vista, ele não só modifica a natureza do elemento principal do estudo – no caso, o dinheiro –, mas também o remete a outro significado para fora dele mesmo, constituindo-se, portanto, em um signo. Na nossa perspectiva de defesa do dinheiro como dádiva, tomamo-lo por símbolo, pois representa outro significado no plano do valor não monetário.

7.1 Sacrifício-dádiva

Dar é sacrifício, demarca um interesse e faz o fiel manter-se em aliança:

Quando a gente recebe uma bênção, a gente presta um sacrifício, a gente dá uma oferta maior. Tem o retorno e tem nosso sacrifício, a nossa melhor oferta (Entrevista n. 01).

Quando eu oferto dinheiro, eu não penso em bem material. Eu penso sempre que eu estou ofertando aquele dinheiro por amor que eu sinto ao Senhor. E sempre colocando no meu coração que Deus me dê a cada dia posse para que eu oferte e oferte sempre mais, porque sei que isso agrada a Deus. (Entrevista n. 04).

O sacrifício-dádiva, como já deixamos sinalizado, é uma modalidade muito presente na prática neopentecostal. Ela se estende, de forma significativa, ao dinheiro, qualificando-o perante o altar das doações, onde é consagrado para poder ser aceito como algo digno de Deus. O discurso não vale tanto quanto dar, mas situa o objeto, nomeando-o por meio de um ritual como coisa, agora, separada, conforme como bem relatamos no capítulo A

doação na Igreja Internacional da Graça de Deus, é preciso saber ofertá-lo para que o efeito da oferta (= sacrifício), ao agradar a Deus, libere as bênçãos. Há um sacrifício individual posto à frente da dádiva, como exigência de modificação, também, da personalidade do ofertante:

“Ser mais valente do que o valente”.

“Perseverar e responder o que determina o coração”.

“Entregar-se a Jesus como pressuposto do sacrifício das ofertas”. “Não ofertar pela emoção. Usar a fé como inteligência”.

“Na hora de dar, deve o fiel sentir prazer e alegria, e não medo”. “O ofertante deve agir não por interesse próprio, mas primeiro em

benefício do Reino de Deus”.

“Se reconciliar e, em seguida, fazer a oferta”.

“Parar de fazer dívidas, parar de fazer o que não pode”. “Ser íntegro, cumprindo com o voto”.

Toda essa exigência de modificação por que a pessoa terá de passar, tornando- se fiel, é sacrifício de si que, por sua vez, confere direitos sobre o deus em que se acredita. A sua divindade se alimenta da oferta, assim como do ofertante, que se imola e vai junto com a dádiva, para agradar-lhe. Há que se ter consciência disso, e as igrejas neopentecostais bem o ensinam:

Muitas vezes trazemos uma oferta ao Senhor e ela é desagradável. Às vezes achamos que estamos fazendo um favor dando esmolas para Jesus quando na verdade estamos desagradando a ele [...]. Deus diz que o dia que a oferta for agradável a Ele, então trabalharemos velozmente, seremos capacitados de uma nova forma, mas somente depois daquele dia que a oferta for agradável (Revista Oficial da Igreja em Células, 2004, p.13).

O sacrifício-dádiva, como uma modalidade, como a expressão de um tipo de dádiva forte e comum do Neopentecostalismo, é experiência básica para o estabelecimento de uma aliança e de seu usufruto. Ele é a unidade de análise para se entender a presença marcante do dinheiro nesse sistema religioso cristão. Assim, a consagração do dinheiro por meio da forma “dízimo” e “oferta” deverá, por certo, atingir o ofertante, pois, na condição de quem forneceu o objeto a ser consagrado, sacrificou-se para a escolha, haja vista que, para se agradar a uma divindade, não se pode oferecer qualquer coisa. No mundo contemporâneo, dar dinheiro como dádiva a quem não se vê é loucura, como loucura foi Paulo de Tarso, o evangelista neotestamentário, anunciar aos gregos a “ressurreição” de Jesus. Portanto, já não se trata de loucura, e sim esperança na forma de troca que funde diretamente a vida humana e seus objetos121 com a vida divina: “Talvez nunca a divindade esteve mais próxima do homem do que nesse momento da história, já que está presente nas

121 É importante, para este momento do aprofundamento, lembrarmos o que dizem Mauss e Hubert (2005, p. 26): “O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de agentes essencialmente religiosos. Ora, antes da cerimônia, em geral, nem o sacrificante, nem o sacrificador, nem o lugar, nem os instrumentos, nem a vítima têm esse caráter no grau que convém. Assim, a primeira fase do sacrifício tem por objeto conferir-lhes esse caráter. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado. Para tanto, são necessários ritos que os introduzam no mundo sagrado e ali os comprometam mais ou menos profundamente, conforme a importância do papel que desempenharão a seguir”.

coisas que povoam seu meio imediato e é, sempre, imanente a ele próprio” (DURKHEIM, 1996, p. 232).

Estamos situando-nos, portanto, na dádiva da graça ou dádiva religiosa expressa na forma sacrificial, haja vista que o dinheiro depositado em altar é sacrifício por se ofertar bem tão precioso e caro àqueles que pouco têm. O retorno é quase incerto, mas a dívida fortalece a esperança, pois um simples propósito à divindade perante o altar, uma vez cumprido sob o rigor da fidelidade, significa que bênçãos serão derramadas sem medidas. O recolhimento do dinheiro consagrado feito pela Igreja, por ela será consumido em favor de sua expansão e da prosperidade do fiel. Afinal, a vítima que se imolou, em parte, trouxera consigo a vida de quem doou. Isso é o mais agradável em face da sede divina, porque, na oferta que a ela se consagrou, uma parte de si (do doador) foi junto como oferenda, a fim de mudanças significativas lhe acontecerem e esse mesmo deus dele se agradar. Assim, a dádiva religiosa expressa na forma sacrificial, como a que observamos na experiência neopentecostal da Igreja da Graça – o dinheiro, sua expressão de dom e sacrifício –, se apresenta, também, na forma de uma dádiva de si.

Na dádiva de si, o retorno não mede o tamanho do sacrifício, porque se trata de dádiva impagável (o herói que dá a sua vida), e o que é aceitável como um “receber” deve ser entendido como um reconhecimento. A prosperidade de alguém, na visão corrente de expressões neopentecostais, tal qual a que pesquisamos, à ótica dos fiéis, é uma escolha livre do deus que acreditam sempre prover. Nesse prisma, o que se espera alcançar, em face da doação de si que vai junto a uma ação ou um objeto consagrado, é, primeiramente, um “ganho” de tipo não quantitativo. Isso torna plausível pensarmos em reconhecimento, porquanto a qualidade da bênção recebida e testemunhada é vista como respeito de Deus pelo fiel, por ser este, antes de tudo, uma pessoa. Deus “olhou para ele”, isto é, reconheceu-o na sua identidade, situação e ação. Porém o plano da relação é hierárquico, o