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4 O NEOPENTECOSTALISMO E AS MEDIAÇÕES DA PROSPERIDADE

4.2 Imaginário da purgação

4.2.1 O infortúnio

Começamos por uma pergunta: de que um fiel da Igreja Internacional da Graça de Deus mais receia nesta vida? No início de uma entrevista, a fiel relata:

Entrei na Igreja da Graça, porque estava passando por um problema muito difícil na minha vida, na área profissional, na área sentimental, no sentido geral de tudo. Eu não me sentia uma pessoa assim feliz. Eu me sentia com um vazio na alma muito grande, que eu não sabia como preencher esse vazio, não tinha uma saída, não havia uma explicação para mim como pessoa humana. Não podia me iludir que eu era feliz. (Entrevista n. 08) 73.

Nada mais significativo para representar o infortúnio do que a desgraça. Qualquer fiel digno de seu pertencimento religioso saberia descrevê-la com toda força e sentido nos dias de hoje: medo do “vazio”, do “fundo do poço”, do estar “amarrado”, medo de uma situação “arrebentada”, medo do “cair”. Obter uma graça é, parece-nos, o desejo comum às pessoas que buscam admitir as virtudes que lhes permitirão êxito, evitando, assim, os infortúnios. A desgraça, antes de tudo, é uma situação concreta; o infortúnio, algo vivido e sentido na pele, latente no grito, no lamento, na dor humana; a ruína, o despejo do indivíduo da condição de pessoa humana para viver na derrota. Tal situação imprime no fiel que aderiu à sua Igreja movimento incessante motivado pela fé em busca de obter sempre a vitória: a vitória sobre o infortúnio. Essa vitória, mais do que contar com bens materiais que favorecem comodidades e bem-estar, aponta para a sobrevivência em meio a uma sociedade que insiste em pôr de lado as pessoas que, marcadas por uma desvantagem, são marginalizadas: a vida os castiga cada vez mais.

73 As entrevistas que forem sendo utilizadas para corroborar no processo de aprofundamento deste estudo obedecerão a uma seqüência numérica correspondente àquelas em destaque dispostas na síntese apresentada no apêndice. Essas entrevistas foram realizadas entre os meses de janeiro e março de 2004, junto aos fiéis da Igreja Internacional da Graça de Deus.

Foi por causa das minhas dores que fui para a Igreja da Graça. Eu vivia muito doente, minha vida estava muito doente, minha vida estava insuportável. Sofria da coluna, cansaço nas pernas, tomava remédio controlado. A vida era muito sacrificada. A quem recorrer?. (Entrevista n. 01).

O infortúnio, a desgraça, a miséria constituem condição real a revelar apenas que a pessoa vive, mas vive mal: com dor, sem emprego, sem teto; busca, até, recompor os afetos. O desafortunado afetivamente sofre por lhe faltar quem o admire, por não sentir-se querido, desejado. Os espaços tradicionais de sociabilidade provocadores de encontros, o mundo urbano atual os desfez, trazendo carências e rostos de falsidades (Cf. PIERUCCI ; PRANDI. 1996 p. 27). O infortúnio é também o avesso do encontro. E a pergunta que não quer calar já foi expressa pela entrevistada acima: “A quem recorrer?”.

Historicamente, a religião sempre teve em seus braços o infortúnio, o sofrimento, a dor, o mal e a morte. Cada uma possui sua literatura de confronto com essas representações sociais da finitude humana, firmando posicionamento e solução. “Quem nunca sofreu, que

sabe?” já dizia o eclesiástico. As pessoas sempre buscaram nas religiões respostas e consolo para uma dessas questões. Isso é por demais primitivo, em se tratando até de função social da religião. – função básica, poder-se-ia dizer. Durkheim, sociologicamente, teve isso presente nas suas análises, quando refletiu:

A função da religião é fazer agir-nos, é auxiliar-nos a viver. O fiel que se comunicou com seu Deus não é apenas um homem que vê novas verdades que o descrente ignora; ele é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Ele está como que elevado acima de sua condição de homem. Acredita salvo do mal sob qualquer forma. O primeiro artigo de toda fé é a crença na salvação pela fé. (1996, p. 30 et seq.).

‘Sentir em si mais força’, para suportar ou vencer as dificuldades da existência, é buscar na religião respostas às necessidades humano-sociais. Não se trata de recorrência a apenas um sistema de crenças e coisas sagradas; referimo-nos a algo anterior, a um movimento que está no indivíduo e não deságua logo, de imediato, num sistema ao qual tem

que recorrer –um sentido. Esse é o ponto de partida, e a religião o acolhe. Acolhe a pergunta do “por quê?” do infortúnio, da dor do sofrimento, do entendimento do mal como parte da vida e da morte, como finitude ou não:

Religião é, com efeito, o supremo esforço para eliminar o sofrimento na desesperada tentativa de afirmar, ora que o sofrimento não existe, ora que é sombra de pouca consistência, ora que logo será superado pela felicidade eterna [...]. Um paradoxo da religião é, portanto de se alimentar do medo do sofrimento, de depender dele nesta perspectiva, e por outro lado de combatê- lo, de querer suprimi-lo. A ambigüidade do homem e de sua vida concentra- se, de qualquer modo, no instante do seu sofrimento. Explicando o sofrimento explica-se o ser humano. A Seicho-no-Iê tenta dissolver a impressão do sofrimento na convicção que o pensamento positivo o vence; o Budismo tanto aceita a realidade do sofrimento no homem que combate sua raiz no desejo, pregando assim o ascetismo da aspiração ao nada; o Cristianismo faz apelo a um Messias que transforma o sofrimento do castigo em sofrimento de redenção, isto é, promessa de eternidade feliz. (LEPARGNEUR, 1985, p. 50).

As palavras de Geertz (1989 p. 119) não ficam distantes das de Lepargneur e se apresentam bastante oportunas para compreendermos a relação religião e significado do sofrimento e vermos que a busca dos fiéis por “respostas” a essa condição humana tem importância fundamental, se pensarmos que o humano precisa de amparo:

Como problema religioso, o problema do sofrimento é, paradoxalmente, não como evitar o sofrimento, mas como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota perante o mundo ou da impotente contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável – sofrível, se assim podermos dizer.

Toda a discussão em torno do sofrimento feita pelo referido autor leva à conclusão de que o sofrimento precisa urgentemente ser compreendido e ou explicado pelo que sofre e por todos aqueles que se deparam com o sofrer.

Assim, o homem religioso busca um sentido; as formas históricas de religião acolhem essa busca, dando “respostas”. Tal relação não é nova, pois a teoria weberiana da religião assim já entendera (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 52), embora sob a ótica do interesse, na perspectiva de dominação da parte da orientação religiosa. No momento, porém, não almejamos destacar tal aspecto,

e sim algo mais de base e em torno da importância e papel da religião em acolher os pedidos de socorro mais prementes do ser humano.