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Paixões institucionais

Diagrama 1. Comisão Diretiva segundo “modelo de assembléia”

Dentro da ―fronteira institucional‖ ideal, geralmente os atores se distribuem segundo dois parâmetros de separação. De um lado, aqueles que pertencem a um espaço potencialmente crítico: os sócios que participam para escutar e verter opiniões, e no caso das assembléias, votar, e aqueles que têm a responsabilidade de fiscalizar e avaliar a legalidade da atuação das cabeças dirigenciais. Do outro, aqueles que são parte do ―espaço de governo‖, formado pelos vogais titulares, as presidências e aqueles que dirigem as comissões específicas, como a de futebol profissional, esportes amadores, festas, etc. Apesar de formarem parte do governo, também existem participantes implicitamente ―liminares‖ aos quais está permitida a dissidência, fazendo às vezes de uma oposição potencial. Com exceção de alguns clubes, como River Plate, que tem delegados das diferentes listas, eleitos no pleito anterior, este espaço de governo ―não oficial‖ depende da vontade de participação dos vogais suplentes. Eventualmente, frente a uma crise que deixa vagos os cargos de vogais, se escolhe em assembléia ou em novas eleições, novos representantes, fato que pode gerar um governo com minoria dos cargos do quadro dirigencial subalterno. Por último, e como parte da nova tendência de gestão, de separar gerenciamento de política, aparecem

os órgão executivos compostos por grupos de especialistas 167 e quadros que excluem o pertencimento societário como requisito. Estas últimas compõem uma paisagem de organização relativamente nova no futebol argentino, porém, configuram a constituição de uma classe técnico-burocrática de

managers ligados simbólicamente com o interesse e o controle do sócio-dono

(Scott apud Coenen-Hunter 2004: 78).

O clube vai reproduzir, através deste modelo, uma mecânica ritual em direção a uma ―pedagogia societária‖ do que significa ―uma sociedade‖, colocando em cena, a sociedade como transição entre a cientificidade do poder e a comunidade de sentimentos em a antecede. Permite, assim, uma ruptura com a vida cotidiana, um marco espacial-temporal específico, um cenário programado, a constituição de um modelo semântico sobre os papéis utópicos da condição ―superior‖ que se espera da dirigência. Porque, finalmente, como assinalava George Balandier, o poder se estrutura sobre certas práticas ritualizadas e codificadas, se monta em ―operadores‖ orientados para uma produção dramática de si mesmos (Balandier 1980: 61). Logo, também as eleições, mais fundamentalmente o modelo de assembléia, irão servir de tipo ideal de ação civil para os dirigentes. Esta prática – como um acontecimento ritualizado - é o horizonte simbólico do

clube-instituição como ―associação voluntária‖ e, mais ainda, o horizonte

em que se estabelecem, quase sempre, os vínculos ideais com o clube-

emblema segundo a leitura que seja feita da situação futebolística em

relação com os capitais sociais e culturais do clube.

Por exemplo, durante aquelas reuniões de sócios -oficiais no calendário- em que devem ser discutidos os balanços anuais da gestão e administração, segundo o estatuto, por assembléias ordinárias anuais (chamadas de memória e balanço), se discutem a compra de jogadores, o estado das categorias de base, a lista de técnicos que estariam de acordo com o ―estilo histórico do clube‖, os tipos de vínculo e permanência contratual que estes atores estabeleceram com o clube, como também os objetivos buscados pelo time para as competições do próximo ano. O futebol deverá ―competir‖ com os principais objetivos direcionados pela mais pura ―tradição deliberativa‖ do associativismo moderno168

. Uma auto-imagem menos rígida em termos dos modelos institucionais, mas que depende de uma lógica emocional que oscila de um ponto a outro, em um movimento cíclico entre ambos os universos - não circular -, um movimento que ameaça colidir permanentemente seus objetivos estéticos e materiais quando não satisfeitos.

167 No Estudiantes, esta nova cláusula de organização foi introduzida com a reforma do estatuto de 2004,

e leva o titulo de ―Estrutura Executiva de Gestão‖.

168 Um espaço de sociabilidade institucional integrador, educador e de contenção de indivíduos

Dependendo das circunstâncias, o sócio-torcedor pedirá ao dirigente condutas diferentes para consigo e para com o clube: ousadia, vigília, exposição, cuidado, são posturas de caráter pelas quais o dirigente é intimado, pelo torcedor, a responder, no estádio, e na sede do clube, mediado por relações informais variadas, pelos sócios. Entretanto, supõe também um forte estímulo para se desenvolver polifonicamente, do ponto de vista da interpretação do que significam os termos ―comunitário‖, ―social‖, etc. Em resumo, o futebol funciona, através de signos de seus capitais simbólicos e sociais, como ferramenta prática para uma leitura de comportamentos, condutas e trajetórias dirigenciais, colocados em relação com a valoração e a interpretação destes conceitos institucionais e com os modos de administrar o mesmo. Este é o espaço que ocupa o modelo de decisão instituído como conceito de ―clube‖ dentro de um campo de forças em que o dirigente deverá se mover.

Em consonância com a separação entre espaços instituídos e

instituintes e, com a exceção do mencionado clube River Plate, cujas reuniões

de Comissão Diretiva são realizadas uma vez por mês e congregam uma quantidade considerável de representantes de distintos setores do clube e de sócios169 (em uma espécie de ―assembleísmo aristocrático‖ semelhante ao das universidades), em clubes como o Estudiantes ou o Gimnasia, predomina a realização das reuniões da já mencionada „mesa chica‟, que se realiza de forma semanal. Nesse ―governo reduzido‖, as reuniões são compostas pelos dirigentes dos cargos mencionados anteriormente como mais importantes: Presidentes, Secretário Geral, Chefe do Departamento de Futebol e autoridades à frente da administração dos recursos financeiros.

Assim, o modelo de assembléia constitui um desenho que ilustra um tipo ideal de reunião de Comissão Diretiva como mecanismo formal onde se reproduzem, de forma ideal, as mencionadas Assembléias Ordinárias. Estas, ciclicamente, encenam o lugar que têm na tomada de decisões ou no conjunto de atores políticos que compõem o espaço dirigencial formalizado. Obviamente, os distintos tipos de performances dirigenciais requeridas excedem às produzidas nas instâncias formais deste tipo. Fundamentalmente, porque, como tentei mostrar no diagrama, a maioria dos partícipes desta ―pequena sociedade‖ citados no ritual, não responde a parâmetros fixos de representação do ponto experiencial como parte da comunidade de sentimentos que os agrupa centrípeta e centrifugamente. A circulação de cargos e o entrar e sair deste espaço, segundo períodos da vida pessoal, afetiva e profissional, desvelam, polifonicamente, interesses e percepções que incluem a performance do emblema-clube.

169 Além dos delegados que representam as diferentes facções do clube, no River Plate, a minoria

Neste sentido, a antropóloga argentina Verônica Moreira destaca a força que têm as concepções de honorabilidade, prestígio e trajetória que circulam em torno às figuras dirigenciais, e como elas são determinantes quanto a definir as expectativas que os sócios e torcedores formam a respeito dos componentes centrais das ações esperadas e estimadas por aqueles (Moreira 2008: 122). Então, a grande tarefa dirigencial será a de ―saber‖ aproximar as expectativas rituais com as performances institucionais e os imaginários do emblema, sem perder de vista o envoltório de qualidades de pessoa profissional e a trajetória que o levaram ao cargo. Para manter a estabilidade no nível micropolítico, os clubes devem permitir produzir sistemas de competência interna e recrutamento, instâncias de integração e uma dinâmica de acesso aos cargos. Estes elementos se suportam em redes de relações e dependência entre sujeitos que revestem diversas classificações de status, de classe, etc.

Efetivamente, são realmente escassos os momentos em que este tipo de diagrama de ―reunião-assembléia‖- se dá na prática. Porém, este modelo está presente como referência à ação dirigencial e, sistematicamente, é colocado como objetivo institucional no nível discursivo, sendo que, indubitavelmente, sua significação simbólica tem consequências práticas sobre o campo dirigencial real ou potencial. Com independência das derivações mais abrangentes no campo do self dirigencial a que faremos referência adiante, e que vincula quase diretamente qualidades profissionais com tipos de gestão – e instâncias de gestão -, no nível simbólico das representações públicas, o imperativo da ―ordem‖ aparece, aqui, como protagonista e quase sempre é dramatizado como um dos grandes objetivos dos sujeitos que participam deste diagrama de organização da autoridade, conseguindo ser suficientemente abrangente para definir o contexto – as necessidades gerais da instituição - e o concreto – as qualidades específicas da trajetória e da visão profissional para a qual foi ou será designado.

Tal como apontou Maurice Bloch, modelos de apresentação hirarquica deste tipo permitem construir uma distinção clara entre poder e autoridade em termos de seus limites estratégicos, sendo que esta última dimensão tende a simbolizar-se ―em última instância‖ através do exercício ritual como diferente do primeiro, coisificando-se institucionalmente em ―códigos alternativos‖ de sujeição dos atores sociais para serem salvaguardados impessoalmente (Bloch apud Rapport & Overing: 2007: 338). Precisamente, o acontecimento contido no ―momento assembleístico‖ funciona como uma ―última instância‖ em que a autoridade se volta sobre si mesma como forma essencial, modelo de referência e ameaça dramática.

Victor Turner aponta sua importância a respeito:

Social life, then, even its apparently quietest moments, is characteristically ―pregnant" with social dramas. It is as though

each of us has a "peace" face and a "war" face, that we are programmed for cooperation, but prepared for conflict. The primordial and perennial agonistic mode is the social drama. (…) …modes of redress, which always contained at least the germ of self-reflexivity, a public way of assessing our social behavior, has moved out of the domains of law and religion into those of the various arts. (Turner 1992:11).

A diferença das grandes empresas familiares descritas por Antonia Lima (2006), onde as reuniões da diretoria geralmente tinham um caráter informativo e consultivo para com o dono, e se produzem com o objetivo de que o este último tome a decisão final e a comunique ao resto dos executivos, nos clubes, são as Comissões Diretivas aquelas que concentram o caráter objetivo de votação e exigem maiores esforços de negociação e consenso. Em todo caso, do ponto de vista formal, se parecem mais às grandes corporações, em que representantes que agrupam acionistas, criam consensos em torno de linhas de ação com poder de voto.

Porém, os interesses que mobilizam as opiniões e precedem os acordos traduzem outro tipo de valores de troca do que os do simples interesse pela reprodução do capital econômico. Justamente, se trata do capital simbólico que o clube carrega ao longo da sua história e que se coloca em jogo ciclicamente, através da concorrência aos cargos. Trata-se de um papel de status que excede ao personagem concreto e que determina o papel dinâmico do mesmo, uma vez que pode ser inscrito na instituição mediante a integração dos costumes e da lei (Hughes 1989: 131-133). Sentado no escritório do Tribunal de Contas da Província de Buenos Aires, este contador relata como foi ―elevado‖ ao cargo de presidente do Gimnasia, através de um ―consenso representativo‖ entre os pares, construído previamente à Assembléia‘:

Yo era conocido por mi dedicación al trabajo y por proteger al club. El mismo grupo de gente que estaba en la Comisión son los que mas menos van encauzando la cosa, y son los que me proponen a mi para ser presidente. O sea que cuando se llega a la Asamblea ya llega toda la lista armada. No hubo elecciones, sino que se presentó una única lista, y en la asamblea proclamaron a esa única lista como la que iba a regir los destinos del club por los próximos tres años. En definitiva, el voto como nos pasa cuando somos ciudadanos, el voto vale para todos igual, pero algunos son mas representativos que otros, ¿no? (Cdr Fuentes)

Apesar das permanentes crises de autoridade em que muitos dirigentes surgem como ―indicados‖ para os diferentes cargos nas instituições futebolísticas, a ascensão e a queda nos cargos não se dão em

uma dinâmica rígida de circulação. Normalmente, acontece que um dirigente considerado ―menor‖ – de subcomissões -se retire de um cargo frente ao questionamento da gestão como um todo, mas retorne num momento de renovação, sempre e quando consiga acumular elogios sobre seu desempenho pontual no cargo. Portanto, as qualidades e responsabilidades, somadas à dedicação e à disposição, medidas em tempo concreto pelos ―pares dirigentes‖, se transformam em reconhecimento da capacidade do ator em questão para concorrer a cargos mais importantes dentro do clube, sem a necessidade de ser submetido a uma eleição, como no citado caso do Cdr. Fuentes. De acordo com o cientista político John Higley (2001), o êxito potencial do papel de uma elite coesa e unificada, em condições de operar eficazmente dentro de um modelo de sociabilidade democrático e ao mesmo tempo suficientemente preparada para atuar em instâncias de decisão em longo prazo, dependerá de ter uma forte estrutura de integração capaz de produzir e assegurar, no tempo, além de situações de conflito cojunturais, suas reputações, gostos, em poucas palavras, seu

modus vivendi. Do ponto de vista da práxis dirigencial, significa que seus

membros devem estar integrados estrutural e culturalmente para dirigir à própria psique as recompensas e o reconhecimento como parte da uma influência positiva em assuntos sociais mais amplos, possuir mecanismos para desfrutar material e simbolicamente destas recompensas de exclusividade e privilégio do poder, e ―conservar e manipular adequadamente a organização dos contextos em que este poder é efetivo‖ (Higley 2001: 23). A institucionalização da „mesa chica‟ procura estabelecer seus laços de pertença efetiva e produzir uma posição privilegiada em que esse grupo possa identificar um condutor a partir desse modus vivendi.

Em apenas uma ocasião aconteceu de coincidir uma Assembléia de

Sócios com meu perído de pesquisa. Foi em 2007, quando, no final de uma

longa crise da presidência do empresário Muñoz, os sócios de Gimnasia decidiram chamar eleições. Foram infrutíferas as minhas solicitações para ser observador da mesma. Os argumentos apresentados eram dois: o primeiro, o mais evidente, dizia que eu não era sócio. O segundo, que ―nem sequer a

imprensa vai ter permissão de entrar no recinto, quanto mais um antropólogo‖ (Eng. Del Franco). Lamentavelmente, tive que me conformar

com a reconstrução oral e documental desta Assembléia no Gimnasia, como também com as anteriores, acontecidas no Estudiantes.

Efetivamente, no dia 30 de outubro de 2007, com a presença de umas 500 pessoas, realizou-se a Assembléia Ordinária de Gimnasia que deveria aprovar a Memória e Balance, acordar uma data para as eleições e outra anterior para a apresentação das ―listas‖. A reunião culminou, subitamente, com a morte de um dos sócios, que, junto com outros agremiados e possíveis

candidatos, protestava contra a falta de dados e as inconsistências das contas. Neste sentido, acusavam os integrantes da Comissão Revisora de Contas de não serem objetivos e estarem ocultando informação da ―situação real‖170. Tudo isto em um clima de questionamento e gritos pela situação do time no campeonato, fortemente ameaçado de rebaixamento. O episódio culminou com a suspensão da Assembléia e uma denúncia ao Ministério Público, pela intimidação, por parte de alguns integrantes da barra brava que estariam acompanhando o oficialismo. Isto, de fato, foi negado sistematicamente pelos interlocutores que estavam em cargos diretivos durante estes eventos. Sendo geralmente desqualificados como ―pessoas que só buscam criticar e aparecer,

mas depois, quando têm que trabalhar ou participar seriamente, desaparecem do clube‖ (Arq. González).

A trajetória individual e profissional antes mencionada devia encontrar ―coerência‖ com a impressão – que tem a política circunstancial - do dirigente a ser erigido em momentos de uma crise. Neste sentido, as crises são instâncias privilegiadas para observar como estes receptáculos culturais dos fluxos identitários –tanto os instrumentais como os sentimentais-, operam, abrindo um campo de possibilidades (Velho 1987) que permitem fazer coincidir o passado, o presente e o futuro com a trajetória que forma o conceito de pessoa que pode conduzir as circunstancias. Neste sentido, oferece lugar para que os signos sobre a instituiçao e sobre as identificações que o compõem encarnem em um determinado dirigente como qualidades de uma agência individual situada e acorde a ele.

Duas semanas depois, em um clima de aparente tranquilidade, e com a presença de policiais uniformizados ―para evitar desbordes‖, os sócios começaram a chegar logo depois das 18 horas e continuaram ingressando, após registraram-se nas mesas habilitadas para isso. Novamente impedido de entrar, permaneci sentado na calçada em frente à entrada da Sede Social de Gimnasia. Aguardava-se uma reunião ―complexa, mas, possivelmente, pouco

amigável‖ me confessou um membro da diretoria, que passava caminhando,

mas os dirigentes das listas que potencialmente concorreriam às eleições tinham feito um acordo. Justo na hora do início, chegaram alguns participantes que, logo que se sentaram, tiveram que levantar para sair, pois a Assembléia terminou poucos minutos depois das 20 horas . Todos se retiram em silêncio, com poucos comentários, e aqueles que ficaram em uma ante- sala do Polideportivo, na sua maioria do oficialismo, trocaram opiniões com sócios presentes, e tentaram esclarecer temas como a chamada às eleições para a renovação dos diretores. Outros, representantes dos grupos opositores, repetiam a cena na calçada à frente da Sede, resumindo os detalhes da rápida