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Paixões institucionais

3.3. Um desenho instituído ou instituinte para as performances dirigenciais?

existir no céu; em suma, um sentido da história que orienta a organização e transformação moderna desses proto-falanstérios alguma vez imaginados.

Eles são apenas índices diferenciais produzidos através de pequenas singularidades, pequenos atos, ou silêncios com os dos presidentes amigos. Pequenos detalhes que, colocados em relação entre si, por intermédio do futebol, voltam como distâncias imaginadas, como duas linhas no vazio que nunca se cruzam e como dimensões espaço-temporais paralelas, mas irreconciliáveis. A ordem imaginária da cidade vive, através dos clubes, um movimento de transição endógena que é representado por uns e outros como uma luta utopicamente vitoriosa de uma ideologia autônoma e rebelde (passional para uns e reacionária para outros) contra uma ética dominante (positiva e em decadência)162. Os dirigentes no futebol platense são protagonistas privilegiados na composição de dispositivos que colocam em jogo, ritualmente, o lugar que ocupam a instituição e a materialidade que ela comporta, neste contexto histórico local e a relação que este estabelece com uma tercereidade, nacional e global.

Evidentemente, os clubes não ―pensam‖ por si mesmos, como aventurou Mary Douglas (1996), retomando a um Durkheim preocupado em explicar tudo -e todos- nas representações coletivas. Mas neles, sim, com as ferramentas implícitas na prática do futebol espetacularizado e profissionalizado, a dinâmica de decisões, o mundo civil –ou uma parte dele- ―é pensado‖ emblemáticamentem com conceitos da polítca. Tanto no nível espetacular –o estádio- como instituicional –a sede-, não há dúvida de que os rituais em que se vêm envolvidos tende a ser ficção sintética das tonalidades estéticas.

3.3. Um desenho instituído ou instituinte para as performances

dirigenciais?

Do ponto de vista da dinâmica de representação na cúpula institucional, os Estatutos Sociais, ―carta magna‖ dos clubes de La Plata, prevêem uma renovação de autoridades a cada três anos. Idealmente, esta renovação se realiza por meio de uma convocação de eleições determinada,

estilos‖-, tem, justamente, fora do retângulo de jogo, um sentido próprio que exprime essas potências, dinâmicas e relações

162 Um filme que consegue penetrar com profundidade neste tema é Gangs of New York (2004), de

normalmente, por uma Assembléia Geral Ordinária a ser realizada três meses antes da realização das mesmas. Esta Assembléia, por sua vez, se realiza todos os anos, sendo que no terceiro é encaminhada a convocatória para a eleição. Se não existirem situações anormais como, por exemplo, a renúncia de uma Comissão Diretiva inteira ou a destituição de um presidente, convoca- se eleições abertas - aos sócios com mais três anos de filiação - que deverão se realizar três meses antes do término do mandato. Usualmente, em caso de não existirem concorrentes inscritos, ou por decissão da Assembléia, se acorda uma ―lista de unidade‖ que será nomeada em uma instância posterior.

Apesar de que a ―unidade do clube‖ é vista como horizonte de harmonia desejado, o modelo assembleístico serve, objetivamente, para a produção de um ancoramento institucional da reprodução ritual de uma estrutura formalmente deliberativa163. Comumente, as assembléias destinadas à renovação de autoridades se realizam em diversos contextos políticos. O nível de imprevisibilidade depende muito da leitura feita pelos sócios no clube, e os simpatizantes nas arquibancadas, da ―situação que atravessa o clube‖: como se apresenta o clube na opinião pública, se estável ou em crise e - segundo a concorrência potencial de listas de oposição- a existência de consenso sobre a continuidade do grupo no poder ou a urgência para criar uma ―lista de unidade‖ e ―de consenso‖ como conseqüência da avaliação de uma situação de crise institucional. Todavia, a organização dessas assembléias segue um protocolo relativamente simples, segundo um calendário pré- estabelecido. A Assembléia Ordinária prévia às eleições é, sem dúvida, a que tem peso mais significativo neste processo de renovação. Ela se realiza através de uma convocatória da Comissão Diretiva, dando direito de participação a todos os associados que reúnam as condições exigidas pelos estatutos, conforme se pode visualizar no próximo texto:

Están habilitados para ingresar al recinto donde se desarrollará la Asamblea, los socios vitalicios y aquellos socios plenos mayores de 18 años, que estén al día con la tesorería del club y con una antigüedad mínima consecutiva e inmediata de tres años.164

163 Um fato que deve ser mencionado aqui, já citado anteriormente, é de que a dirigência do Estudiantes em

exercício no ano de 2004, reformou o Estatuto do clube. A consequente aprovação de um novo estatuto acabou ampliando o mandato de três para quatro anos. Esta reforma tinha como um dos objetivos, buscar a institucionalização de cargos profissionalizados em espaços de decisões-chave –especialmente daqueles ligados à administração, ao marketing e à direção do futebol profissional. Também visava permitir que aquele grupo de dirigentes na gestão do clube, escolhida em 2001, continuasse como tal até 2005, por ocasião dos festejos do centenário do clube. Apesar de que o primeiro dos objetivos teve impacto direto na caracterização mais ―limpas‖ - da contaminação afetiva - de alguns cargos vitais como os referidos, os critérios associativistas quanto à formalidade da performance dirigencial se mantém ―sacralizados‖ nas constituições dos clubes tanto no Gimnasia como no Estudiantes.

Esta exigência que determina os direitos políticos é semelhante para os clubes Gimnasia e Estudiantes, e com algumas variantes, para a maioria dos clubes do futebol argentino. Nas mencionadas assembléias, através do voto direto dos participantes, se debatem, ponto por ponto, os temas que motivaram a convocatória. No caso das assembléias ordinárias, será a aprovação ou rejeição da Memória e balanço anual; no caso das ordinárias prévias à eleição, se somará a aprovação das listas de candidatos a serem submetidas à eleição ou de uma ―lista de unidade‖. E ainda, apesar de serem poucas na história dos clubes aqui tratados, existem as assembléias extraordinárias, convocadas ―de cima‖, por renúncias massivas de dirigentes, ou ―de baixo‖, por sócios, através da obtenção de assinaturas de um número detreminado de eleitores favoráveis à sua realização, segundo o Estatuto. Estas últimas podem ter como objetivos, destituição, eleição de uma nova CD até a data das eleições e, inclusive, a chamada para eleições antecipadas.

As características performáticas específicas que as assembléias assumirão, no que diz respeito à maneira como se apresentarão os dirigentes em exercício e os candidatos que postulam os cargos, dependerão muito do contexto de estabilidade ou de crise em que se encontram estes clubes, originado no estado de equilíbrio do emblema e da instituição nas áreas econômicas, políticas e esportivas. A poucos dias das eleições de 2004, o contador Héctor Dominguez, ex-presidente de Gimnasia em dois períodos sucessivos (1994-2004) deixa claro como a trajetória pessoal é um dos elementos centrais em debate nas transições a partir da perspectiva societária ―positivista‖ a qual aderem os dirigentes:

La gente que vota lo que analiza es si es un grupo de trabajo, si es gente capacitada, si es gente que realmente durante su trayectoria ha aportado cosas al club o no, o si siempre ha estado solamente para criticar, nada mas. 165

Trata-se de um ―tempo institucional‖ ou, pelo menos, de um tempo que ―deveria‖ tender a se situar no espaço social e nos quadros referenciais da memória institucional e de ―celebração‖ de uma normalidade formal. A diferença das celebrações nas festas populares, em que o eixo está colocado no ordenamento de um calendário – por exemplo, as sociedade camponesas em relação ao tempo da colheita - focalizado na passagem de uma ordem profana de normalidade para outra do sagrado e do excepcional (Leach 1980, 2000), no tempo institucional do clube, a ênfase está em dar ao calendário uma forma de trânsito representacional – um intervalo que o simboliza -, um

165

Héctor Dominguez, presidente de Gimnasia 1998-2004. Diário El Dia. la Plata, 28 de novembro de 1999.

ponto de chegada e outro de partida em que a ordem sagrada (idealizada na

instituição, ainda que muitas vezes em ―crise‖ objetiva) incorpora-se ao

mundo e faz circular os conteúdos formais necessários para a normalização do estatuto coletivo e objetivo dessa abstração transcendental (ainda que muitas vezes apresentadas como promessas ―renovadoras e de mudança‖). Longe de ser um simples ato burocrático, os vários tipos de assembléias e principalmente, os objetivos representacionais e eleitorais têm por finalidade produzir um tipo de apreensão do tempo-poder, entre outras coisas, associando, diretamente, esse instante com as personalidades individuais e de grupos dirigentes. O objetivo é apresentar um centro para a relação associativa do tempo com aquilo que Weber definiu como ―a união de interesses racionalmente motivada‖ (Weber 1964: 120)

A continuidade de projetos de gestão encarna na figura presidencial. Aqui Julio Alegre sucede a Guillermo Cichetti: “para que o Estudiantes continue o processo de crescimento que vem experimentando” (Foto: Diário El Dia. La Plata, 3 de agosto de 2002)

Mas é o intervalo em si mesmo, na verdade, o primeiro objetivo deste calendário. Primeiro, na assembléia, e depois, na eleição. É uma condição necessária para a constituição política do conceito de sócio. Serão eles os que ali se apoderam de forma abstrata, em deliberação, como cidadãos, das coordenadas do poder e da normalização do mesmo, concentrando uma discussão sobre um sistema de autoridade e sobre a formalização de um poder constituinte, atravessado por uma lógica enfáticamente emancipatória e de autonomia. A cota mensal paga durante três anos que dá direito à participação, revela-se como um imposto social, afastando-se radicalmente, neste ritual de ―assembléia‖, da ligação primária com ―a compra de um serviço‖, e em conseqüência, com o valor mercantil desse dinheiro. Porém, esta lógica é fundamentalmente ambígua, já que se trata de uma forma singular de manifestação de um direito universal à prática associativa instituinte, ao mesmo tempo em que representam a si mesmos como a negação prática de um fato político instituído.

Em tal sentido, como diria Sahlins (2005), os clubes são ―atores sociais de conjuntura‖ (p.12) em que estes eventos institucionais são a

modalidade de um enlace possível entre um presente a ser descrito e um futuro a ser concebido pelos sujeitos que neles interagem. Portanto, estes acontecimentos são o lugar propício para a expressão de uma entropia societária universal. Apresentando-se como momentos considerados ―cruciais‖ para a instituição, permitem apoiar ou rejeitar a continuidade de uma determinada linha de inversão de ―energias‖ sociais, utilizando a terminologia da fisica, de onde vem o conceito de entropia.

O médico Rubén Filipas, atual presidente do clube Estudiantes, refere- se assim a esta instância :

Ahora se viene la asamblea, que tiene que ser el ámbito de discusión lógica de todo asociado que quiera ir a interiorizarse de la situación del club. Por lo tanto no se si va a ser tranquila o no, será lo que tiene que ser: un ámbito para conocer el estado del club Estudiantes mas allá del resultado deportivo.166

Interessante, porquanto Filipas, efetivamente, deixa entender que esse é um instante constituinte do conhecimento coletivo, e médico, ele se serve de uma metáfora profissional, que o projeta pessoalmente, para referir-se ao clube como ―o estado de um paciente‖. A assembléia, como modelo, é possibilidade de uma das principais marcas de referências na elaboração de um ideal de representação compartilhado pelo ―conjunto dos membros‖ da entidade. Ela permite ser referência sobre a índole do poder e da política como meio, em cujos arbítrios relacionais –reais e potenciais - manifestam-se como tais ―na interface de categorias separáveis‖ que diferenciam as ―potências de poder‖ dos atores sociais (Leach, 2000: 36-37).

As assembléias e as reuniões de CD são modelos de ação política interdependentes. Fica difícil estabelecer um momento preciso na história, mas, provavelmente, entre as décadas de 1920 e 1930, com a expansão social e o crescimento societário dos clubes, o mecanismo ―assembleístico‖ de decisão passa ser uma instância pública extraordinária, marcada no calendário, separando-se da cotidianeidade e do fechamento privado das reuniões de Comissão. A ausência de registros e crônicas sobre este hipotético processo de separação a que me refiro, tanto no Estudiantes como no Gimnasia, reafirmam a importância de acontecimentos pontuais como marcas de referência em torno aos costumes e modos adequados em que devem ser acionados os respectivos rituais. Concretamente e, dependendo da maior ou menor flexibilidade dos estatutos, as assembléias se realizam seguindo um padrão de restrição dos papéis dos diferentes atores em cena nas CD e vice-versa.

166 Médico Dr. Rubén Filipas. Presidente de Estudiantes de La Plata. Diario El Dia. La Plata, 17 de