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O trabalho de campo com dirigentes no futebol: opções metodológicas e conceitos fundamentais

Desde o início deste estudo, me foi muito difícil achar pesquisadores, particularmente antropólogos, que tivessem como foco grupos ou sujeitos em posições de poder fora das chamadas ―sociedades tradicionais‖. A este fato somava-se a quase restrita reflexão e pesquisa direta com foco nos grupos que detêm poder formal dentro da organização do futebol. Como já foi mencionado anteriormente, uma das indagações que marcaram esse início foi saber como conseguiria estabelecer os contactos necessários para levar a cabo a

aproximação requerida pela tarefa etnográfica. A este problema ―instrumental‖, somava-se a preocupação metodológica a respeito de como deveriam ser instaurados os laços de autoridade, uma vez que estaria trabalhando com sujeitos usualmente na defensiva com relação ao fato de expor aspectos da sua vida à opinião pública e, muito mais ainda, eu supunha corretamente, ao juízo e à interpretação de uma comunidade científica.

Autores que refletiram sobre a relação que existe entre etnografia e conhecimento antropológico têm destacado o quanto o resultado de um trabalho de campo depende do fato de se realizar uma visualização correta das estratégias e técnicas a serem utilizadas no que diz respeito ao grupo social que é objeto do estudo. O referencial empírico e o universo de significado que delimita sua esfera condicionam a integração entre dados e teoria e o processo de enunciação do mesmo (Guber 2004; Peirano, 1995). Deveria, então, pensar em produzir uma ―inter-subjetividade complementar‖ de fato entre estes dois campos de ação – o do antropólogo e o do interlocutor. Esta se expressaria, pensava, em práticas de apropriação, diálogo, sujeição, subjetivação, negação de premissas, mudanças de paradigmas e criação de novos dados. ― Do que depende escencialmente a produção de um saber intrinsecamente problemático como o vinculado com as praticas do poder?‖, me perguntava.38

Foi um documentário, Urgências (2002), realizado por Armelle Giglio Jaquenot, que deu origem a esta preocupação. Nessa ocasião, me ocorreram certas perguntas que logo compartilhei com outros estudantes e colegas. Este excelente documentário está centrado na investigação audiovisual da concepção de ―urgência‖ que é construída na relação entre as famílias de setores pobres da periferia de São Paulo e o sistema de saúde pública desta cidade. Ela ―se realiza‖, por assim dizer, quando é acionada a solicitação de uma ambulância de emergência e de assistência médico-hospitalar nos domicílios destas famílias. Mas a possibilidade de que a câmera crie uma situação de constrangimento ou defesa de sua intimidade entre as pessoas que estão vivendo situações que certa ética condenaria, se desfaz completamente diante da intensidade da crise emocional que os protagonistas estão vivendo. 39

38 Em definitivo, os problemas de autoridade são também dilemas éticos da pesquisa. Para dar alguns

exemplos elementares - e puramente instrumentais -, o trabalho etnográfico com povos indígenas exige do investigador, entre muitas outras coisas, uma aproximação razoável ao sistema lingüístico nativo; as problemáticas sociais abordadas a partir do gênero exigem uma consciência sobre as conseqüências da própria condição de gênero do pesquisador/a nas situações de interação (abrindo e fechando portas a lugares); a pesquisa com grupos estigmatizados, com grupos de risco, precisa objetivar seriamente, e por diferentes meios, a condição do anonimato e a certeza de que as informações dadas pelos sujeitos da pesquisa não se transformem em juízos contra eles (Guber, 2006, Berreman, 1975).

39 A favor do documentário Urgências, poderíamos dizer que , além da sua extraordinária capacidade

Considerando então que esta pesquisa teve como primeiro objetivo o emprego de ferramentas audiovisuais como elemento de construção dialógica e como parte da construção narrativa, me perguntei o que aconteceria se aquela câmera - que de alguma maneira é também a metáfora tecnológica do antropólogo-observador - irrompesse em uma situação de ―urgência‖ que não tivesse como referente empírico estes setores mencionados e, em troca, tentasse capturar estas práticas em contextos de crise de atores sociais menos ―acessíveis‖ academicamente? Como funcionaria essa proposta etnográfica – não necessariamente centrada no audiovisual– entre grupos considerados de status sócio cultural ―elevado‖ ou com poder econômico e político? Podemos imaginar a mesma ―facilidade‖ com que muitas vezes se nos abrem as portas – os rostos e as vozes - do ―outro subalterno e marginalizado‖ durante o labor etnográfico? Como chegar, em troca, à palavra e às imagens de grupos sociais que exercem posições de poder e cujo hermetismo, a meu ver, é expressão significante da suas condições e práticas sócio-culturais? E por último: até que ponto as perguntas anteriores se voltam sobre as condições éticas de nosso labor? Não unicamente em relação ao direito de registrar e expor os dados que se nos oferecem por sujeitos impulsionados pela necessidade de serem ―escutados e vistos‖, mas também porque estas condições se voltam para nós como uma interrogação igualmente válida sobre os limites metodológicos e teóricos da própria disciplina para produzir um conhecimento de grupos com poder objetivo que, por muitas razões, parecem ser mais esquivos para a etnografia clássica.

Enfim, a problemática colocada pela condição de dirigentes teria que dialogar, invariavelmente, com algumas interrogações colocadas por Bourdieu (2002) sobre as possibilidades de conhecimento crítico nas ciências humanas40. O sociólogo francês considera que este campo não deve constituir-se numa especialidade em mãos de um grupo de especialistas, mas deve tratar-se de uma prática incorporada pelo investigador como sendo um exercício de prudência teórica e epistêmica autoconsciente, um ―saber o que fazemos‖. Por conseguinte, devia compreender de que forma os modos pelos quais abordaria o campo de estudo e as estratégias concretas que usaria iriam repercutir diretamente sobre o tipo de conhecimento produzido na hora de desenvolver um trabalho reflexivo e conclusivo desta natureza. Estas questões, superficialmente vistas como de caráter técnico-metodológico, iriam ter como ―reverso‖ o fato de atingir assuntos centrais da própria pesquisa,

se coloque na frente de um paradoxo ético substantivo e dificilmente extrapolável fora do campo visual do próprio filme.

40 Tomarei o termo ―ciências humanas‖ tal como seguido no modelo francês. Considero-o mais

adequado que o termo ―ciências sociais‖, o qual tende a restringir o campo de atuação filosófico e estético da antropologia em favor de uma maior ―dureza‖ dos estudos sobre o homem.

como os fluxos de autoridade e as relações de poder entre os próprios interlocutores com relação ao saber.

Para ilustrar o que foi dito, recupero, aqui, um trecho do meu diário de campo de abril de 2006, onde eu tentava interpretar as primeiras sensações ao trabalhar etnograficamente com grupos não subalternos:

Pensado etnograficamente, considero que hoje foi um dia “produtivo”. Parece-me interessante aplicar esta palavra no contexto da „ciência‟. Sem dúvida „ela‟ nos leva a discutir sobre imperativos mercantis e outros assuntos “non santos” que convivem com as nossas práticas. O lugar de “inferioridade” constante em que me coloquei hoje, se resume nas frases mentirosas que mais utilizei ao longo do dia: “apenas preciso de quinze minutinhos com você” ou “vou embora para não incomodar mais”. O certo é que Oliveira me conectou com o atual presidente de Estudiantes. Ele me advertiu que não iria ser fácil me reunir com ele nestes dias, já que estavam acontecendo problemas com um dos dirigentes do clube, e que não iria querer ventilá-los. Mais tarde conversei com Ritzner que estava muito ocupado com os convites para o jogo de Taça Libertadores da próxima quinta. Por último, à tarde, fui visitar Del Franco, um alto dirigente do Gimnasia na sua empresa de construção, porém se mostrou parco e desconfiado. Especialmente quando tentei explicar que meus objetivos incluíam dirigentes de Estudiantes. Sempre tive a sensação de que me observava ambiguamente, me confundindo, às vezes como um historiador, às vezes como um jornalista. Afortunadamente, uma hora antes de encontrá-lo, tinha passado pela sede social de Gimnasia, onde encontrei a Carlos., vice-tesoureiro do clube, que trabalha com a minha prima e é filho de Fuentes. A referência que fez V.H., no breve encontro que teve com Del Franco, parece ter sido um pouco tranquilizadora para ele, como se trata de um contato “físico”. De toda forma, considero que fez uma confissão que mostra certo tipo de confiança. Ele pediu para sair antes porque se reuniria na sede do clube com outros dirigentes com o objetivo de solicitar coletivamente ao diretor técnico para colocar o time reserva contra Defensor Sporting de Uruguay, já que eram poucas as chances de vencer por 4 a 0 e de classificar-se para a segunda fase da Taça Libertadores. Por outro lado, no domingo, o Gimnasia deveria enfrentar o Estudiantes depois da última humilhante derrota de 7 a 0. Acho que a franqueza supõe algum tipo de confiança. Sem dúvida, a influência dos dirigentes sobre os treinadores é mal vista e criticada pela

imprensa e, portanto, também por aqueles que escrevem a história. (La Plata, 11 de abril de 2007).

Tal como eu percebia e externava neste já velho relato, as dificuldades para encontrar um ―buraco‖ na carregada agenda destes personagens serima muitas, realmente. Tratavam-se de pessoas que tem uma vida profissional ativa e certamente exigente, do ponto de vista dos horários, e que dedicam justamente o que seria seu ―tempo livre, o tempo para o clube‖, como gostam de dizer, aos diversos afazeres como dirigentes dentro dos respectivos clubes. Além, claro, de praticamente todos terem familias que ―reclamam o pouco

tempo que deixa a soma de ambas as atividades‖, uma frase que se repetia

constantemente quando os conhecia e solicitavam ser breve na ‗conversa‘. Nos finais de semana, os que são efetivamente dirigentes viajam com os times ou estão ocupados na organização do espetáculo nos estádios de futebol da cidade. No caso daqueles que já não estão ativos como dirigentes, geralmente viajam ou ―fecham‖ a entrada a suas casas.

As dificuldades eram grandes e só vencidas com muita insistência, geralmente, por via telefônica. Apenas em cinco oportunidades consegui participar de uma das atividades centrais no seu papel coletivo como dirigentes. Estou me referindo ao espetáculo futebolístico (três vezes), momento em que consegui manter certa proximidade com a dinâmica da qual eles participam, e em quatro oportunidades, durante os primeiros seis meses, consegui participar de ―Reuniões de Comissão‖. Diria que estes primeiros meses tiveram muito de ―impressionismo‖. Impressões sobre o futebol, sobre as identidades instituídas que ele canaliza e sobre a relação que certas práticas têm com um conceito que particularmente apresenta a cultura política argentina: a cidade. Nesse sentido, La Plata se dá a conhecer através dos clubes de futebol Estudiantes e Gimnasia (CELP e GELP), e por meio destes, também debate sobre um conjunto móvel de valores culturais e políticos (que evidentemente incluem os econômicos), que ―fazem entrar‖ direta ou indiretamente ações e motivações de certas pessoas que se postulam (ou ―se encontram‖, como gostam de dizer) nos lugares ‗dirigenciais‘ desta instituições (particularmente importantes, enquanto são contemporâneas à sua fundação utópica). Por outro lado, estabelecer relações com ―ex‖ dirigentes foi relativamente mais simples.

Devemos entender que, se o conceito de elites - em que está necessariamente implicada a categoria de dirigentes no futebol – voltou a ser objeto de interesse, depois de décadas de desuso, uma das tarefas mais importantes para restabelecer sua importância na teoria social é fundamentalmente metodológica (Moyser & Wagstaffe 1987: 2-3). Desse modo, as marcadas dificuldades de ―produzir etnograficamente‖ este objeto

em favor de uma reflexão teórica se ancoram, em parte, nos mares profundos do inconsciente metodológico41. O percurso dificultoso - e às vezes tedioso e lento - do trabalho de campo deixou claro que, entre os altos dirigentes no futebol profissional platense, as barreiras e os freios à interação no processo de pesquisa têm diversos modos e motivações. Porém, as longas esperas nas ante-salas dos escritórios, o sem número de ligações para marcar reuniões suspensas poucos horas ou minutos antes, o tempo muito limitado que era dedicado às entrevistas, os discursos pré-fabricados para a imprensa e quase sempre uma justificação de exceção para evitar um pedido de observação participante, entre outros obstáculos, se transformaram em constantes, ao ponto de converter minha tarefa em uma espécie de trabalho de tradução hermenêutica de um texto que me era dado como pouco manipulável. E sobretudo, como nos alerta Antonia Lima (2007), a significativa ausência de estudos para a comparação constitui um problema central para a interpretação. Para esta autora, as dificuldades de acesso a grupos dirigentes ―são apontadas como uma das principais ‗razões‘ da escassez de trabalhos no âmbito deste contexto social‖ (Lima 2007: 33). Continua dizendo ela:

No caso dos estudos das camadas de topo da sociedade, onde o estatuto social do antropólogo é, de certa forma, considerado ‗inferior‖ aos sujeitos que analisa, a limitação da sua presença no contexto de ação onde se pretende integrar a um acordo prévio é feita de uma forma muito explícita, obrigando assim, a alterações profundas na utilização da metodologia clássica em antropologia (Lima 2003: 35).

Senti-me, então, como se estivesse em um círculo vicioso. A ausência de interpretação qualificada neste campo dificultava a comunicação com grupos e indivíduos claramente não subalternos e, por sua vez, a falta de interação com eles limitava as possibilidades de interpretação no percurso da

41

A construção de um eu discursivo tem derivado na idéia de que o que ―faz o nativo um nativo é a pressuposição, por parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não-reflexiva; melhor ainda se for inconsciente‖. Ao contrário, Viveiros de Castro pensa, hoje, pelo menos no diz respeito ao conhecimento etnológico, que o ―ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss‖. Está claro que Viveiros de Castro ataca o Kant que sobrevive dentro do imaginário levistraussiano. Para Viveiros de Castro, os ―conceitos‖, no pensamento dos povos ameríndios, não se reduzem à dicotomia homem/natureza, senão devem compreender-se no marco dos pressupostos epistemológicos que ele está buscando para a própria pratica antropológica como fonte de uma contra-filosofia. O que o antropólogo brasileiro chama de perspectivismo amazônico permitiria à antropologia realizar uma passagem meta-definitiva do exótico para o excêntrico. Do não visto ou não conhecido para o descentrado e o múltiplo. À diferença de Lévi-Strauss, o que está em jogo não é a redundância dos signos, e sim a multiplicidade das cadeias e círculos dos quais os conceitos perspectivistas participam efetivamente: do homem para o pecari e vice-versa. (Viveiros de Castro 2001: 24- 36)

pesquisa. Para piorar, a Antropologia não possui um estatuto nem de poder nem de status na Argentina, assim como acontece positivamente no Brasil.42

É verdade que o passado do meu avô como ex-presidente e sua longa atuação como dirigente do Estudiantes de La Plata, durante quase quatro décadas, facilitou alguns contatos iniciais com antigos dirigentes desse clube. Também é certo que fui, por alguns deles, apresentado como filho do ―colo Godio‖, de ―Nikita, fugaz wing de Estudiantes de La Plata‖, como recentemente titulou uma reportagem no jornal de Buenos Aires Página/1243, contando a particular história do meu pai, que chegou a ser futebolista profissional do Estudiantes em 195944.

Porém, não ajudou muito este passado remoto entre os jovens profissionais liberais e empresários que assumiram a direção do clube nos últimos anos no Estudiantes. De pouco serviria, também no caso do Gimnasia y Esgrima, onde, inclusive, senti que muitas vezes esses ―dados‖ incrementavam as suspeitas próprias das inimizades ―futboleras‖, pois estavam evidentemente estendidas ao mundo ‗dirigencial‘. O certo é que tive que me conformar com um início do caminho na contracorrente. E como mostrou a experiência de campo com grandes famílias empresárias de Lisboa relatada por Lima (2006), eles iriam me dizer ―onde, como e quando‖ se produziriam os nossos encontros, obviamente, nunca garantidos. E assim, da mesma forma que, com a etnometodologia, Harold Garfinkel (1962) mostrou que uma frase ou um ato falho permitem compreender o contexto de ação em que estes podem ser proferidos e os papéis sociais implicados no sujeito, me convenci que até mesmo os silêncios e ausências reiteradas podiam ajudar à interpretação, uma vez que me permitiam ler, no presente – por exemplo, em jornais locais ou junto a entrevistados ―periféricos‖ como alguns empregado dos clubes -, discursos e práticas não declarados, mas efetivos e recorrentes.

42 Fato que comprovei durante os últimos anos da minha vida acadêmica. Efetivamente, uma longa

tradição antropológica dentro dos centros acadêmicos, uma centralização nas demandas de recursos em áreas capazes de produzir novos conhecimentos para a disciplina através de associações profissionais, e uma crescente afirmação , a partir do Estado Nacional da importância, de incorporar a visão humanista deste conhecimento têm conseguido transformar um solitário antropólogo em um sujeito com poder e reconhecimento (Lins Ribeiro & Souza Lima 2004). A forma em que este poder está sendo processado é ―farinha de outro saco‖.

43 Pagina/12. Buenos Aires, 27 de setembro de 2009. pp. 30-31.

44 A história que sempre gostei de acreditar, o mito que escutei de pequeno: que ele foi ―apagado‖ do

time titular –e mais tarde expulso- quando prometia ser um grande jogador por ―razões‖ políticas vinculadas com a sua militância, primeiro no anarquismo, e mais tarde no Partido Comunista. A ordem vinha dos Serviços de Inteligência em cumplicidade com parte da Comissão Diretiva do clube –entre eles estava meu avô - para evitar a visibilidade que podia produzir ―esse comunista que atacava por direita‖, como diz o jornalista na reportagem. ―Esse futebolista...‖ que, simultaneamente, era o então presidente da Federação Universitária de La Plata e Secretário Regional da Juventude do Partido Comunista em 1960. ―Nikita‖ era por Kruschev, é claro.

Paciência. Eles me diriam quando e quanto tempo eles teriam para as entrevistas e onde eu poderia fazer observação direta; isso era tudo. Desde então, tive que construir pacientes estratégias de sedução. Inclusive quanto ao uso da câmera, que inicialmente parecia-me central como ferramenta metodológica, foi cuidadosamente ressignificado e afastado do centro da pesquisa etnográfica empírica, com o objetivo de reduzir ao mínimo os preconceitos e as suspeitas que poderiam gerar perguntas ou temas em um universo acostumado a produzir um discurso ―racionalizado para a mídia‖.45

Daí em diante, o trabalho consistiu em tecer uma rede de confiança que transformasse minha própria performance como antropólogo em signos de autoridade e respeito, em que as promessas de futuras filmagens tinham como objetivo seduzir, e iriam ser organizadas e feitas – eu prometia - com o ‗maior dos profissionalismos‘ a meu alcance. O caderno de notas, num constante exercício e esforço de memória46 seguido de longas descrições e interpretações logo depois das entrevistas – e não o gravador -, passaram a ser meus novos e bons companheiros durante os encontros. E tal como lembra Karina Kushnir (2003) em relação ao modo como teve que adaptar suas estratégias metodológicas em favor de uma construção de identidade entre pesquisador e interlocutor durante sua pesquisa com pessoas pertencentes à classe política carioca, assim, também neste caso, as poucas e limitadas ―entrevistas longas foram o momento para compreender esse processo‖ (Kushnir 2003: 38).

Além dos aspectos puramente interativos, permaneciam latentes forças objetivas que identificavam meu trabalho como ―mediador‖: a suspeita generalizada entre torcedores sobre a existência de negócios pessoais envolvendo jogadores e o patrimônio do clube, ou as ligações pouco claras com as chamadas ‗barras bravas‘47

, acusação que pesa sobre os dirigentes da parte

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Visitemos agora um filme documentário: O princípio e o fim (2005), de Eduardo Coutinho. Trata-se de um documentário baseado em excepcionais entrevistas com moradores de Araçá, um diminuto povoado do sertão paraibano onde quase todos são parentes. Muito além da conhecida ―riqueza da simplicidade‖, o diretor tem a valentia de mostrar a ambigüidade da autoridade que está presente na realização de uma