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Ao serem questionados sobre como caracterizam os alunos com TEA, tanto Mercúrio, diretor da escola Órion, quanto Saturno, diretor da escola Sirius, afirmaram que estão na direção dessas unidades escolares há pouco tempo. Mercúrio disse que “[...] de vez em quando eles dão trabalho”, mas desconhece quantos alunos com TEA têm na escola. Saturno afirmou que ainda estava conhecendo.

Para Vênus, professora coordenadora da escola Órion, é possível perceber quem são esses alunos pelo laudo. Ela lembrou que tem um que é mais agitado, “[...] se você não frequentar a sala de aula, o aluno passa desapercebido”. Éris, professora coordenadora da escola Sirius, ponderou, “[...] a gente vai conhecendo e aprendendo”. Segundo ela,

[...] tem aluno que no início a gente teve muito trabalho para fazer com que ele ficasse na escola [...] outro foi um pouco mais complicado, por que a mãe no início teve que ficar junto, ele gritava, gritava, a escola inteira ouvia ele gritar. Então a gente combinou com a mãe, ela entrava na sala de aula, sentava ao lado dele, ficava um tempo com ele, aí a gente foi aumentando o tempo que ela ficava sem ele, até que uma hora a gente combinou que ela iria ficar fora da sala [...] hoje ele fica o horário inteiro, a mãe disse que a maior alegria dele é vir para a escola (ÉRIS).

Terra, professora da sala comum da escola Órion, lembrou que ficou apavorada no último dia do planejamento quando recebeu a notícia de que teria um aluno com TEA. Imaginou como seria e o observou quando chegou:

Aí na segunda cheguei pensando como será essa criança, porque a gente tem a ideia de que autista é aquele que bate a cabeça e grita o dia inteiro. Aí entrou a mãe e a irmã, as duas apavoradas, pior que eu, e ele no meio. Bati o olho e pensei é este. Aí eu fui conversar com ele e ele segurou na minha mão, pensei, ainda bem... Aí nós fomos passear, conversei entreguei algumas coisas, aí a mãe falou com ele, a irmã estava desesperada, deixou uns brinquedos, a gente conversou um pouco... Quando chegou num lugar diferente, ele fez birra, pensei, “ah ele faz birra”... A mãe levou ele embora, no primeiro dia ele não ficou, no segundo dia foi embora, não ficava, não tinha a menor noção do que era uma sala de aula, ele procurava o parque... e assim foi durante seis meses... Hoje o Sol já consegue se comunicar verbalmente, fica na sala de aula o tempo inteiro, ele é uma criança que tem total controle da sua higiene, vai ao banheiro

sozinho, se troca sozinho, as vezes põe a roupa ao contrário, mas tudo bem, não sabe amarrar o cadarço... É mimado, porque tem toda uma dificuldade em casa e a mãe dando mais... Ele tem nove anos, vai fazer dez em setembro... ele sabe perguntar uma palavra que ele não entendeu, ele consegue entender os comandos simples, hoje consegue usar um caderno com pauta, tem a caligrafia ruim, mas ele tem dificuldade motora... Ele adora corrida, competição, ele gosta de ser o melhor, ganhar sempre, mas hoje ele já espera a vez, consegue ficar sentado, consegue fazer uma musiquinha como aquela “João roubou o pão”, ele consegue chamar e esperar para dar a resposta. Tudo isso ele foi aprendendo, agora se você perguntar pra mim se ele conhece todo mundo da sala, mesmo os mais antigos, ele não sabe pelo nome, ele sabe onde você senta, só que ele tem uma memória ótima... O que eles falavam que é impossível trabalhar com ele, não, não é.... Que ele tinha atraso mental, ele não tem não... É só porque a gente não sabe o jeito certo. (TERRA).

O relato da professora ilustra a máxima ontológica de Freire (2014b, 2015) de que a criança com TEA, assim como todos nós, não é, está sendo, está aprendendo, é um ser inacabado e inconcluso, ser de relação que, em meio a uma educação voltada à criatividade e avessa às práticas de opressão, pode alcançar a vocação inerente a todo ser humano de “ser mais”.

Para a professora Urano e a professora Júpiter, essas crianças com muita dificuldade conseguem aprender “alguma coisinha”, são dependentes. Marte, professora da SR da escola Órion, mencionou que tem alunos que conseguem se comunicar, compreendem comandos, aceitam a rotina, mas muitas vezes não conseguem formular frases e a forma que encontram para se comunicar é chorando. Netuno, professora da SR da escola Sirius, lembrou que aquela escola é a única com SR para crianças com TEA na região, “[...] então todos vêm pra cá. Eles sofrem muito, surtam no transporte, muitos tomam um medicamento que não ajuda muito... eles precisam de tudo aqui”. O depoimento dessa professora revela que as dificuldades de aprendizado e socialização da criança com deficiência quando somados à falta de recursos, de forma cruel, potencializam seu sofrimento.

Aos olhos de Plutão, professora de arte da escola Sirius,

São agitados. Eu não conheço os graus, acho que deveria conhecer. Ele não machuca os outros. Qual o grau da deficiência dele... tem outro que não é igual a ele, joga tudo no chão, não faz o que a gente quer. Que grau é esse? Na escola deveria ter parceria entre pai, mãe, professores, essa é a minha dificuldade. Como trabalhar com eles? Você está entendendo o que eu estou falando?

Como mencionado no capítulo 2, esse transtorno se manifesta em diferentes graus, mas o que fazer sem um laudo? O que fazer com o laudo? Seriam essas as perguntas ou: o que fazer,

enquanto equipe, com uma criança que tem direito a conviver e a aprender com seus pares? O que ele poderá aprender? Como lembra Mantoan (2006, p. 207),

O essencial é que todos os investimentos atuais e futuros da educação brasileira não repitam o passado, vindo a reconhecer e valorizar as diferenças na escola. Temos que ter sempre presente que o nosso problema se concentra em tudo o que torna nossas escolas injustas, discriminadoras e excludentes, e que, sem solucioná-lo, não conseguiremos o nível de qualidade de ensino escolar exigido para se ter uma escola mais que especial, na qual os alunos tenham o direito de ser (alunos), sendo diferentes.

Enquanto Pegasi, agente de organização escolar da escola Órion, enfatizou que cada criança é uma criança e eles são diferentes, alguns não gostam do toque, outros retribuem a brincadeira, Wasp, agente de organização escolar da escola Sirius, afirmou convicta que, na escola, eles podem aprender muito. Messier, mãe da criança com TEA matriculada na escola Órion, voltou no tempo, lembrou que ele não falava, não brincava com as outras crianças e, segundo ela, o fato de ter ido cedo para a escola e a professora tê-lo observado ajudou muito, que ele é muito inteligente, aprendeu a ler e consegue se comunicar. Láctea, mãe da criança com TEA matriculada na escola Sirius, ao caracterizar o filho, diz apenas que ele “[...] tem déficit no cognitivo, epilepsia. Você precisa ser firme com ele”.

Os colegas de sala de Sol lembraram:

[...] no primeiro ano, quando o Sol ficava muito bravo, ele entrava no armário... hoje a gente fica em silêncio [...] antes eu tinha medo quando a Sol abraçava a gente, mas aí a professora falou com a gente, que ele não vai morder a gente, que ele não vai machucar a gente... então quando ele vem abraçar a gente, a gente também abraça ele. [...] depois que a professora explicou, acabou o medo [...] no recreio eu vi uma menina correndo do Sol, aí o Sol ficou triste porque ele não gosta disso, ele gosta que as pessoas tratem ele como um menino normal. (SAIPH, RIGEL, ALMITAK, BELLATRIX).

O promotor de justiça do GEDUC considerou que, para muitas escolas, “[...] o problema não é a deficiência, o problema é o aluno que dá trabalho”. Segundo ele,

O aluno pode não ter deficiência, mas se ele for um aluno que agita o ambiente, ele se torna um problema, assim como, o aluno pode ter deficiência, mas se for um aluno que não fala, não se manifesta, ele não vira problema. E o autismo começa a aparecer, primeiro porque você tem uma legislação forçando que esses alunos ingressem na escola, antes ou não iam para a escola, ou iam para as instituições, as entidades especializadas e segregadas. E acho que começam a aparecer as demandas aqui por conta disso, porque ele, não todos, mas boa parte tem esse problema com relação a barulho, não consegue

ficar parado, e a escola é o ambiente mais conservador que existe no estado, todo mundo tem que ficar um atrás do outro, quarenta minutos, cinquenta minutos, sei lá. E esse aluno não funciona assim. [...].

[...] a rede estadual ainda usa o termo “pervasivo”, isso é uma coisa que não faz mais sentido. É pervasivo onde? Em relação a quê? Claro que eu não estou minimizando que há deficiências comprometedoras e de difícil resolução e tal, mas se você olha só para ela, no mínimo você está descumprindo o que a Convenção diz. É um pouco aquela história, o cara pode ser completamente cego, mas ter todos os suportes, saber se movimentar, no local tem piso tátil; ou ele pode ter baixa visão e estar num lugar que não tem estrutura nenhuma e bater a cabeça em todo lugar, né? (J. P. FAUSTINONI).

Aluno é o que não tem luz, criança é o que está em processo de criação, professor é o que explica. Seriam essas as características dos personagens presentes na instituição escolar? Será que não precisamos repensar essa lógica marcada pelo fracasso?

Quais as características do aluno Sol? É uma criança que a professora da sala comum percebeu precisar de um tempo e um planejamento para se adaptar ao espaço escolar, ser necessário estabelecer um contato com a família e uma parceria com os colegas de sala, considerar sua forma única de pensar, promover atividades com objetivos exequíveis e gradativamente aumentar o nível de exigência, ou seja, a professora reconheceu e se concentrou nas potencialidades de Sol e, a partir delas, promoveu aprendizagens significativas.

As respostas, tanto da professora Terra quanto dos colegas de sala de Sol, revelam que essa professora trocou a preocupação com o laudo por um olhar cuidadoso; reconheceu todas as crianças como sujeitos responsáveis, presentes em um espaço regido por princípios democráticos e de justiça; construiu uma rotina de forma colaborativa, em contraposição à competitividade e à exclusão. E a aprendizagem de Sol está acontecendo, não só a dele, todas as crianças estão aprendendo a ser e a conviver.