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Lembramos que o conceito de inclusão, adotado nas análises que seguem, decorre das considerações apresentadas no capítulo 2, ou seja, trata-se de um processo amplo de remoção de barreiras em prol da aprendizagem de todas as crianças, implica o exercício de potencialidades criativas, a promoção da vivência do “ser mais” e, para tanto, envolve a prática do diálogo, o reconhecimento da diversidade, a superação de assimetrias, a valorização do trabalho em conjunto e o compromisso em questionar e confrontar práticas de opressão. Destaca-se que, nesse “todas as crianças”, estão as crianças que se afastam significativamente do modelo de aluno projetado para uma escola que prima pela ordem: as crianças com TEA.

Ao serem questionados sobre sua opinião acerca da inclusão, tanto a direção da escola Órion, Mercúrio, quanto a direção da escola Sirius, Saturno, reconheceram que esse espaço tem que ser para todos e consideraram a formação dos profissionais, para esse objetivo, insuficiente. Mercúrio lembrou que essa determinação está presente na LDBEN n.º 9.394/96.

Art. 58. Entende-se por Educação Especial, para efeitos dessa Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.

§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio, especializado, na escola regular para atender às peculiaridades da clientela da educação especial (BRASIL, 1996).

As duas escolas contam com o serviço de apoio, ou seja, SR com professor especializado, mas a coordenação da Escola Órion, ao repetir a queixa apresentada pela direção referente à falta de embasamento para os professores trabalharem com a diversidade, e a coordenação da escola Sirius, ao considerar a inclusão essencial, ao lembrar que esta criança tem que estar na escola, porque tem o direito de conviver e que a sociedade precisa aprender a coexistir com as diferenças, reforçaram a premissa de Freire (2014b, p. 105) sobre “ser mais” ser um direito de todos, que só pode se efetivar na “[...] comunhão, na solidariedade dos existires”.

Para a professora Terra, a inclusão implica em uma “mudança no comportamento escolar” e na aprendizagem de todos os envolvidos. Ela reconhece que se trata de um processo; entretanto, causa-lhe indignação perceber que as crianças se mostram mais abertas para receber,

compreender e conhecer o outro do que os responsáveis por, no processo de ensino e aprendizagem, diluir as fronteiras entre a inclusão e a exclusão. Para Terra,

[...] todos nós, desde o pessoal da faxina deveríamos ter uma noção do que é ser educador, e aí você chega num ponto em que você pega um primeiro ano com a criança com seis anos, com um colega que demanda uma energia e uma atenção da professora, diferenciada; ele também precisa, ele está vindo de um ambiente diferente, isso pra ele é novo, onde ele tem uma movimentação de carteira, uma gestão de aula que é diferente, e aí você explica pra ele que você tem que dar mais atenção pro outro, porque, porque ele vai dar uns tapas, vai dar um empurrão, vai tentar pegar o lanche sem pedir... Aí você consegue, faz um trabalho gigante, de seis meses, aí você consegue... E na primeira oportunidade você vê um adulto tendo um comportamento cem vezes pior que o da criança. Por que o adulto tem tanta dificuldade para entender a criança com deficiência? Por que seu aluninho entende mais fácil?

Por outro lado, a professora da sala comum da escola Sirius, Urano, ao afirmar que “[...] é um professor só para dar conta de trinta mais o aluno com deficiência [...]”, não só demonstrou desconsiderar a inclusão enquanto responsabilidade e possibilidade de aprendizado para todos, como, por meio desta fala, evidenciou discriminar o aluno com deficiência.

As professoras das SR e as de arte das duas escolas reiteraram a importância da formação e comunicação entre os professores. Entretanto, a professora de arte da escola Sirius, Plutão, declarou rejeitar qualquer formação relacionada ao processo de ensino e aprendizagem das crianças com TEA, revelando falta de interesse para o trabalho com a criança diferente, como se, sem sentido e sensibilidade, fosse possível ampliar experiências educativas e promover práticas inclusivas.

[...] eu não quero essa formação. Eu quero formação em arte. A gente tinha que ter auxílio de alguém... eu até consigo fazer alguma coisa, mas ele risca tudo de preto... tem as meninas que sabem, mas na sala de aula, esse aluno precisa de atenção. (PLUTÃO).

Pegasi, agente de organização escolar da escola Órion, questionou: “isso aí é inclusão?” e afirmou, os “[...] professores estão tateando no escuro”. Wasp, agente de organização escolar da escola Sirius, ponderou: “[...] no papel é bonito, os professores não estão preparados e eu não sei como ajudar”. As duas responsáveis por acompanhar a entrada e saída de alunos e o intervalo, por exemplo, declararam falta de informação, formação, assim como revelaram a percepção de que a prática não está sendo projetada para que, nesses momentos, os espaços de convívio sejam transformados em espaços de sonhos, superação de assimetrias e de verdadeira convivência.

Messier, mãe do aluno com TEA da escola Órion, lembrou que as crianças com TEA são, antes de tudo, crianças, têm direitos, não merecem ser exilados do mundo, portanto, precisam estar na sociedade, mas revelou sentir, tanto quanto Láctea, mãe do aluno com TEA da escola Sirius, que “[...] no papel é uma coisa, a realidade é outra [...], [...] falta suporte na escola [...]”, ou seja, ambas têm a percepção de que há um fosso entre o que suas crianças poderiam receber e o que recebem da escola.

Para Sol, a criança com TEA matriculada na escola Órion, poder brincar é o lado bom da inclusão e a percepção de que as crianças têm medo dele, de que poucos querem brincar com ele, o pior. Leo, a criança com TEA matriculada na escola Sirius, demonstrou se sentir seguro apenas na SR, com a professora da SR e, em decorrência disso, revelou que há o espaço dele e o dos outros, o espaço para o considerado normal e o para aquele que destoa do padrão vigente de normalidade.

Os colegas de sala de Sol, ao serem questionados sobre o que consideram ser inclusão, responderam: “[...] todo mundo no meio de todo mundo. Se fosse uma conversa, ele entrava no meio da conversa, se fosse uma aula ele entra” (RIGEL). Essa fala, além de estar em consonância com o que a professora Terra prega sobre o tema, demonstra uma perspectiva que extrapola a tolerância e o cuidado com o deficiente. A fala “[...] todo mundo no meio de todo mundo [...]” tem no seu âmago uma perspectiva relacional, ancorada no convívio e na construção coletiva.

Os colegas de classe de Leo lembraram que só perceberam que ele tinha TEA quando ele começou a falar. De acordo com essas crianças, quem lhes explicou o que era TEA foi a mãe de Leo e, quando a professora da classe sentiu dificuldades para se comunicar com esse aluno, eles explicaram para ela o que ele tinha. Ao serem questionados sobre o que é inclusão, responderam em coro que não sabiam e, por fim, concluíram que para a professora inclusão deve ser muito difícil, pois não é só o aluno com TEA que tem dificuldades. Não saber o que é inclusão, mas ao mesmo tempo ter ciência que para a professora deve ser muito difícil, revela a percepção dos alunos diante das dificuldades que a professora enfrenta não só para promover a aprendizagem da criança com TEA, mas para levar adiante um ensino que contemple as necessidades educativas presentes na sala de aula.

De acordo com Freire (2015, p. 57) “[...] estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros”. Sendo assim, até que ponto um(a) professor(a), “[...] sem o desaparecimento da opressão desumanizante” (FREIRE, 2014b, p. 131), ou seja, sem se abrir ao outro, consegue conhecer seus alunos, consegue estar com seus alunos na sala de aula? Até

que ponto sem o (re)conhecimento das próprias potencialidades e debilidades e as de seus alunos é possível promover avanços na prática e no conhecimento, no sentido de transformar a si e ao mundo, no sentido de “ser mais”?

Para a técnica do CAPE, a inclusão de alunos na rede regular está se efetivando de forma gradativa por meio da criação de SR de TEA. Esta profissional considera a criação dessas SR o grande avanço relacionado à inclusão, e a falta de espaço físico nas escolas para implantação das mesmas, a grande dificuldade. Sobre a formação de professores, lamentou a falta de cursos lato sensu.

Na visão do promotor de justiça do GEDUC, a inclusão tem que se voltar para a retirada de obstáculos na escola e na sociedade, pois não é uma questão unicamente da pessoa e, acerca da escolarização, considera a importância de um

[...] olhar mais abrangente possível para saber como é que está se desenvolvendo determinada política pública de inclusão, quais são os suportes, como é a formação dos professores; como o CAPE, ou a Secretaria e as Diretorias de Ensino, e as escolas como um todo organizam o Atendimento Educacional Especializado e a relação do AEE com a sala regular (J. P. FAUSTINONI).

Portanto, o que para a técnica do CAPE é um grande avanço no que se refere à escolarização dessas crianças, para o promotor de justiça do GEDUC carece de reflexão e articulação com outras propostas que garantam uma efetiva inclusão nos espaços escolares.

Os discursos revelam que se somam à necessária ampliação do olhar, a ausência de pesquisa e diálogo na escola e com a rede, a ausência de formação na e para a escola, o que resulta, entre a maioria dos envolvidos no processo de escolarização das crianças com TEA, na dificuldade de autorresponsabilização pela construção de um ambiente acolhedor e na delegação da responsabilidade pela inclusão marginal, principalmente, à falta de formação e comunicação, ou seja, ao que falta, independentemente da postura de cada um.

Acerca da fala desses profissionais sobre essa falta, cabe lembrar que transformações significativas, além de requerer tempo, só ocorrem quando a comunidade educativa se envolve, e envolve a dimensão cognitiva, ética e afetiva. O trabalho da professora Terra é um bom exemplo disso; ao mesmo tempo que comprova ser possível uma escolarização em uma perspectiva emancipadora para as crianças com TEA, reporta-nos à fala do promotor de justiça do GEDUC: “[...] quando temos um professor com atitude inclusiva, faz toda a diferença, só que a gente não pode pensar em política dependendo da boa vontade de um e de outro”. Como afirma Freire (1981), promover transformações carece de coragem para, permanentemente, nos

distanciarmos da realidade em que nos encontramos imersos e, ao retornarmos, exercitar a criticidade com um “[...] respeito, a toda a prova, aos educandos, aos educadores e às educadoras” (FREIRE, 2015, p. 109).