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4.4 Possibilidades de inclusão

4.4.3 Educação emancipadora: uma decisão democrática

4.4.3.1 Criatividade e emancipação

Como vimos, a obra de Paulo Freire baseia-se na certeza de que o amanhã não pode ser a repetição inquestionável do hoje; expressa a viabilidade de um projeto de mundo no qual sonhos e utopia são ingredientes – tão essenciais na prática educativa quanto na vida – que movem a existência, dela se alimentam e a alimentam. E quando esse projeto se transforma

21 Em consonância com Sassaki (1997, p. 35), consideramos autonomia a condição de domínio no ambiente físico

e social, que preserva ao máximo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce, e independência a faculdade de decidir sem depender de outras pessoas.

num agir e interagir dialético em bases solidárias, com propósitos emancipadores, configura-se terreno fértil para o crescimento de seres livres e criativos. Nas palavras de Freire (2000, p. 16),

Não haveria cultura nem história sem inovação, sem criatividade, sem curiosidade, sem liberdade sendo exercida ou sem liberdade pela qual, sendo negada, se luta. Não haveria cultura nem história sem risco, assumido ou não, quer dizer, risco de que o sujeito que corre se acha mais ou menos consciente.

De acordo com Ostrower (2008, 2013), no indivíduo, em meio ao contexto cultural22,

os valores de vida se moldam e a natureza criativa se configura, confrontando “[...] dois polos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa potencialidades de um ser único, e a sua criação que será realização destas potencialidades” (OSTROWER, 2008, p. 5). Em outras palavras, dentro de um contexto cultural, o indivíduo ordena, significa os fatos, dá forma ao conhecimento adquirido, “[...] cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando” (OSTROWER, 2008, p. 10).

A partir do pensamento desses autores, podemos afirmar que todo ser humano, ao adquirir a consciência de sua existência individual e social, influenciado pela cultura e movido por necessidades concretas, afeta o mundo físico, sendo esse afetar nos contextos plenos de significado a conversão da sensibilidade em força criativa.

Rosas (2008, p. 47) acrescenta que a aprendizagem e o modo de estar nas relações influenciam a criatividade e

[...] a ação criativa poderá ser tanto mais enriquecida pela experiência, quanto mais as relações humanas sejam estimuladoras da aprendizagem de habilidades variadas e diversificadas. Habilidades com as quais homens e mulheres corporificam criatividade e dão visibilidade à criatividade pela força de sua produção expressa como ação criativa.

Ostrower (2008, p. 127) lembra que a criatividade se manifesta, na criança, “[...] em todo seu fazer solto, difuso, espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar, no fingir da realidade e que no fundo não é senão o real”, e as alterações na sua expressividade decorrem do processo de desenvolvimento e correspondem a “[...] fases de crescimento físico e psíquico da criança. À medida que a criança vem naturalmente a se

22 Contexto cultural aqui pode ser entendido como o contexto no qual as formas materiais e espirituais com que

os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja experiência coletiva pode ser transmitida através de via simbólica para as gerações seguintes (OSTROWER, 2008, p. 13).

discriminar, dentro de si e em relação aos outros, também reestrutura seu potencial sensível e racional em níveis mais complexos” (OSTROWER, 2008, p. 129). Logo, criar é um ato intencional, que envolve um tomar contato com o mundo e acontece em meio à necessidade de realização, promovendo mudanças, principalmente, na própria criança. Para a criança, para todos nós,

[...] realizar potencialidades, definir-nos em nós, conhecer-nos melhor, identificar-nos coerentemente, são anseios tão absolutos, tão claros e evidentes em si que dispensam qualquer explicitação. E ninguém se admira das consequências trágicas da não realização do homem dentro do que lhe seria possível: o vazio da vida, a apatia, a falta de respeito pelos outros (já que tampouco foi respeitado seu próprio potencial) e, quando não pior, um revide violento e brutal contra si mesmo ou contra os outros. (OSTROWER, 2008, p. 131).

Se esses anseios, vinculados à sensibilidade, à individualidade e à linguagem, são absolutos e evidentes no ser humano, então são prementes, também, para as crianças com TEA. Sendo assim, se faz urgente repensar os princípios que regem o fazer nos espaços escolares, de modo a promover habilidades que impliquem em criatividade e emancipação para todas as crianças. Isso implica compreender os sintomas comportamentais que decorrem de alterações cognitivas e reavaliar a importância dada à disciplina que, acerca dos corpos, realiza “[...] a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2014b, p. 135).

A dificuldade, por exemplo, que as crianças com TEA têm para inferir pensamentos, emoções, intenções das outras pessoas, ser cooperativo ou expressar afeto, deve-se A uma cegueira mental, ou Teoria da Mente (ToM), que

[...] foi definida como a capacidade de um sujeito considerar os próprios estados mentais, bem como atribuir estados ao outro, possibilitando uma forma de predição de comportamento, a partir destas atribuições. O termo ‘teoria’ não está relacionado a um constructo teórico acadêmico-científico, mas à habilidade de atribuição de estado mental. (CAMARGOS et al., 2013, p. 162).

A reduzida habilidade que a criança com TEA apresenta para observar do geral para o particular e a tendência de focar em detalhes refere-se à fraca coerência central (FCC), que se relaciona à forma de processamento da informação e resulta em dificuldade em olhar nos olhos das pessoas, entender expressões faciais, fazer inferências de textos, compreender metáforas, mas, ao mesmo tempo, em destacada habilidade para atividades analíticas e sistematizadas.

O outro comprometimento diz respeito às funções executivas (FE), que indicam um déficit na flexibilidade mental e, no caso das crianças com TEA, afetam as habilidades cognitivas relacionadas às capacidades de planejamento e comportamento perseverante, o que as impede de conseguir “[...] sem um grande esforço, mudar o seu foco de atenção simultaneamente, entre duas atividades” (CAMARGOS et al., 2013, p. 173). Consequentemente, a organização da vida diária pode ser algo extremante penoso, tanto quanto responder adequadamente às situações inesperadas do dia a dia.

Entretanto, de acordo com Camargos et al. (2013), a teoria da mente e as funções executivas podem ser desenvolvidas por meio de atividades planejadas. Thompson (2014, p. 87) reitera que uma grande parte das dificuldades enfrentadas por essas crianças pode ser amenizada com “[...] uma combinação de planejamento, avisos antes da mudança de atividade e comunicação verbal mais lenta e simples”. Além disso, a comunicação entre a família, profissionais da educação e da saúde é avaliada, por esses autores, como imprescindível para que a criança com TEA chegue à juventude com habilidades para enfrentar suas dificuldades e encontrar seu caminho neste mundo imprevisível. Esse caminho no sentido do desenvolvimento e da emancipação faz parte de um processo contínuo e inevitável no viver, sendo que,

No fluir da vida, nos sucessivos eventos externos e internos que nos mobilizam, cada momento de estabilidade é imediatamente questionado. Cada situação que se vive, cada ação física ou psíquica, cada emoção e cada pensamento desequilibra um estado anterior. Introduz um fato novo, acrescenta uma medida de movimento. Desdobra algo, e nos desdobra em algo também. Obriga-nos a procurar outro momento ou novo plano de vivência e ação em que o acréscimo de movimento possa ser compensado e contrabalanceado. Viver, para nós, torna-se um incessante ter-que- desequilibrar-se a fim de alcançar algum tipo de equilíbrio dentro de si. (OSTROWER, 2008, p. 99).

Para o ser humano a busca por equilíbrio é inevitável; para professoras e professores trata-se de uma busca constante por conhecimentos que promovam a concretização de situações capazes de garantir o aprendizado de todas as crianças; para as crianças com TEA, trata-se de superação de obstáculos, de superação de desafios muitas vezes penosos. Contudo, para todos e todas, essa busca por equilíbrio implica o exercício de potencialidades criativas, implica conjugar escolarização e emancipação, promover o entendimento do ser mais, do ser livre enquanto processo, e a percepção de que ser mais, “[...] ser livre significa compreender, no sentido mais lúcido e amplo que a palavra pode ter” (OSTROWER, 2008, p. 165, grifo do

autor). Ostrower (2008, p. 166) nos lembra que “[...] ser livre é ocupar seu lugar no espaço”. Reiteramos tratar-se de um direito de todo ser humano.

CAPÍTULO 3

5 CAPÍTULO 3 – EDUCAÇÃO ESPECIAL NA ESCOLARIZAÇÃO

Neste capítulo, apresentaremos a análise e o resultado dos dados coletados, lembrando que as entrevistas semiestruturadas foram realizadas de modo a permitir que cada participante falasse de suas concepções, crenças e valores acerca do tema. Partimos do pressuposto de que, nas narrativas, “[...] há uma organização subjacente, uma espécie de calculismo afetivo e cognitivo, muitas vezes inconsciente na medida em que a entrevista é mais um discurso espontâneo do que um discurso preparado” (BARDIN, 2011, p. 96) e, considerando a intenção de analisar se a perspectiva emancipadora é contemplada no processo de escolarização de crianças com TEA matriculadas nos anos iniciais do ensino fundamental de duas escolas da rede estadual de ensino paulista, procuramos apreender, dos discursos, as dimensões:

a) percepções sobre inclusão;

b) como são caracterizados os alunos com TEA; c) comunicação entre a escola e a família; d) discussões sobre inclusão;

e) articulação e planejamento do trabalho voltado à inclusão da criança com TEA; f) propostas de intervenção;

g) a prática pedagógica: participação e aprendizagem; h) a escola real e a escola desejada.

Segundo Bardin (2011), os dados coletados por meio de entrevistas, apesar de serem objetos de significação, não falam por si. Sendo assim, além de destacarmos das respostas obtidas o núcleo de sentido, trecho ou frase referente a cada dimensão, consideramos o pensamento de Paulo Freire acerca de uma educação emancipadora e os documentos oficiais para realizar as inferências na interpretação dos dados e responder às questões da pesquisa:

a) O encaminhamento político-pedagógico da equipe gestora e docente às crianças com TEA se traduz em uma perspectiva emancipadora?

b) Como se desenvolve o trabalho educativo com as crianças com TEA nas duas escolas públicas dessa rede de ensino?

c) Como os agentes envolvidos nesse processo acolhem e encaminham essa questão? Por meio deste processo de análise, acreditamos ser possível, também, confrontar a hipótese inicial sobre haver na comunidade escolar o reconhecimento de que, do ponto de vista legal, a inclusão de crianças com TEA é uma atribuição da escola, mas, dadas as condições

pedagógicas, culturais e estruturais em que a mesma está imersa, essa inclusão não se materializa em um projeto educativo emancipador.