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Complexidade conceitual e delimitação do objeto de proteção penal

1.3 O meio ambiente como bem jurídico-penal

1.3.1 Complexidade conceitual e delimitação do objeto de proteção penal

O primeiro grande problema, no que tange à proteção do ambiente pelo Direito Penal, é a questão da delimitação do seu objeto ou conteúdo protetivo. Isto porque, conforme se depreenderá, o termo ―meio ambiente‖106 engloba uma série de nuances, o que, em

primeiro plano, poderia representar um entrave na formulação dos tipos penais correlatos. A expressão ―meio ambiente‖, que é citada popularmente e tradicionalmente nas legislações, doutrinas e até nas jurisprudências, conforme afirma a maioria dos autores de Direito Ambiental (tais como os já citados Machado107, Fiorillo108 e Silva109) é, na verdade, um pleonasmo, pois trata-se de palavras com conteúdo semântico idêntico. Isto porque, analisando-se o significado apartado das duas palavras, ―meio‖ significa algo que está no centro, que envolve alguma coisa. Por sua vez, a palavra ambiente, de origem latina –

ambiens, entis - , significa ―meio em que vivemos‖110. Diferentemente, para Milaré, para

quem a expressão não chega a ser redundante, por configurar-se como uma noção ―camaleônica‖, tanto na linguagem científica quanto na vulgar, as palavras ―meio‖ e ―ambiente‖ possuem conotações diversas111.

De qualquer forma, a expressão já foi consagrada na língua portuguesa, e a maioria dos autores não se opõe ao seu emprego, até porque, como bem destaca Machado, o termo é, inclusive, ―bem sonante‖112 e pode-se continuar a ser utilizado.

A Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de 1972, marco histórico-normativo inicial da proteção ambiental, trouxe, em seu preâmbulo, a ideia de que meio ambiente é tanto o composto de aspectos naturais quanto de aspectos construídos, essenciais ao bem-estar e ao gozo dos direitos humanos básicos, com destaque para o direito à vida, compreendido com um direito à vida condigna e saudável113.

penal de los bienes jurídicos colectivos. Madrid: Dykinson, 2000, p. 75). Neste mesmo sentido, é possível também citar: MARINUCCI, O; DOLCINI, E. Corso di Diritto Penal, 1, Nozione, struttura e sistemática del reato. Milano: Giuffré Editore, 1995, (n. 4) p. 140.

106 De acordo com Milaré, o termo ―meio ambiente‖ (milieu ambiant) foi utilizado pela primeira vez em 1835,

pelo autor naturalista francês Geoffroy de Saint-Hilaire, na obra Études progressives d’um naturaliste. Depois, August Comte a perfilhou em seu ―Curso de filosofia positiva‖ (MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 141).

107 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. cit., p. 55. 108 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Op. cit., p. 72. 109 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 19.

110 Cf. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1982, p. 112.

111 MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 142.

112 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19. ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 55. 113 Cf. ONU. Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, 1972. Biblioteca

Do ponto de vista legal, pode-se dizer que há um conceito de meio ambiente assentado no art. 3º, I, da Lei 6.938/81, o qual dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, e esta assim consigna: ―Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (...)‖114.

A Constituição Brasileira de 1988, no multicitado art. 225, caput, não define o que esteja compreendido na expressão ―meio ambiente‖; apenas dá a menção de sua qualificação, titularidade e fundamento/fim, conforme se vê transcrito: ―Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado‖ [qualificação], ―bem de uso comum do povo (...) para as presentes e futuras gerações‖ [titularidade] e ―essencial à sadia qualidade de vida‖ [fundamento/fim]‖ (acréscimos da pesquisadora). Reforça-se neste sentido, uma característica patrimonialística de ―meio ambiente‖ como sendo um ―bem‖ para a sadia qualidade de vida do povo e das futuras gerações. Silva identifica, neste texto constitucional, dois objetos de tutela ambiental: imediatamente, a qualidade do meio ambiente; mediatamente, a qualidade de vida através do bem-estar e segurança da população115.

Como bem adverte Prado, há uma enorme dificuldade em circunscrever com clareza o conteúdo de proteção do bem jurídico ―meio ambiente‖116. Polaino Navarrete117

aduz que o bem jurídico118 ecológico é polifacético e interrelacional, trazendo um enorme catálogo de elementos que compõem seu conceito.

Segundo Milaré, meio ambiente pode indicar tanto uma ―linguagem técnica‖119

quanto um ―conceito jurídico‖, possuindo uma concepção estrita e uma ampla. Na concepção estrita, o meio ambiente seria ―o patrimônio natural e as relações deste com e entre os seres

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-sobre-o-ambiente- humano.html . Acesso em: 20.mai.2012.

114 De acordo com o estudo comparativo realizado por Heine, há diferenças entre as regulações positivas de

vários países europeus. Por exemplo, na Grécia e na Chechênia, o objeto de proteção é o meio ambiente ―como tal‖, já na Polônia, na Suécia, na Holanda e na Espanha, tem-se considerado como os mais importantes bens ambientais dignos de proteção penal: a água, o ar e o solo. Na Alemanha e na Suíça, há maior amplitude de proteção da água do que do ar (Cf. HEINE, Günther. Derecho penal del medio ambiente: especial referencia al derecho penal alemán. In: Cuadernos de Política Criminal, Madrid, n. 61, p.51-67, 1997).

115 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 54.

116 PRADO, Luiz Régis. Direito Penal do Ambiente. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 104.

117 POLAINO NAVARRETE, Miguel. La criminalidad ecológica en la legislación española. In: Política

criminal y reforma penal. L-H. a la memória del Prof. Dr. Juan del Rosal, ISBN 84-7130-785-5, pp. 855-884, 1993, p. 876.

118 Ver também o trabalho desenvolvido por: ALASTUEY DOBÓN, Maria Carmem. Consideraciones sobre el

objeto de protección em el derecho penal del médio ambiente. In: PRADO, Luiz Régis (coord.). Direito Penal Contemporâneo. Estudos em homenagem ao Professor José Cerezo Mir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 209 e ss.

119 Fazendo referência a Nebel, Bernard J. 1990, p. 576, Milaré (Op. cit., p. 143) traz que a linguagem técnica de

meio ambiente seria: ―a combinação de todas as coisas e fatores externos ao indivíduo ou população de indivíduos em questão‖, sendo, portanto, uma realidade complexa e composta de inúmeras variáveis.

vivos‖120. Já na concepção ampla, o meio ambiente engloba tanto a natureza original (meio

ambiente natural), artificial, como os bens culturais relacionáveis.

Do ponto de vista dogmático-penal, tanto nacional quanto estrangeiro, diante da necessidade de precisão do conteúdo do bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal Ambiental, há três principais terminologias121 para identificar o que integra a concepção do bem jurídico, quais sejam: global, restrita e intermediária.

Na concepção global ou unitária, o meio ambiente é compreendido tanto em relação aos elementos que formam o seu meio (naturais, artificiais, culturais, estéticos etc.) quanto no que se refere às relações que deles partem e que dependem de um equilíbrio entre a destruição e a regeneração122. Numa concepção restrita123, o meio ambiente somente compreende os elementos naturais de titularidade comum e de características dinâmicas (água, ar, solo etc)124. E, como usualmente, existe também uma concepção intermediária entre as duas anteriores125, que concebe o meio ambiente apenas como os elementos naturais relacionados ao homem – solo, ar, água, flora e fauna.

Longe de uma terminologia precisa, o termo, na visão de Bustos Ramírez, é dotado de uma indeterminação complexa: ―não poderia bastar assinalar que o meio ambiente é digno de proteção se por outra parte sua imprecisão conceitual levasse à conclusão de que não é possível a determinação dos tipos legais correspondentes‖126.

120 MILARÉ, Édis. Op. cit., p. 143.

121 Reyna Alfaro distingue as concepções, não apenas em três (ampla, restrita e intermediária), mas acrescenta

outras duas: as residuais e as legalistas. A residual é defendida por Rodríguez Devesa e Serrano Gómez na doutrina espanhola, para os quais o meio ambiente se compõe ―de todos aqueles elementos naturais cuja conservação ou restauração é indispensável para a sobrevivência do ser humano, sempre e quando não encontrem uma tutela penal específica em outros preceitos do próprio Código ou leis penais especiais‖ (RODRÍGUEZ DEVESA, José María; SERRANO GÓMEZ, Alfonso. Derecho Penal Español. Parte especial, 16. ed. Madrid: Ed. Dikynson, 1993, pp. 1105-1106 apud REYNA ALFARO, Luís Miguel. La protección penal del medio ambiente: posibilidades y límites. In: Ciencias Penales Contemporáneas: Revista de Derecho Penal, Procesal Penal y Criminología, Mendoza, v. 2, n. 4, pp. 207-265, 2002, pp. 217-218, trad. livre da autora). A concepção legalista é aquela que concebe o ―meio ambiente‖ relativo àqueles setores para os quais o legislador estimou oportuno estender sua tutela (REYNA ALFARO, Luís Miguel. Ibidem, p. 218), o que, de certo modo, demonstra uma renúncia a uma construção conceitual atrelada à relação social.

122 Quanto à delimitação conceitual dos objetos de proteção da Lei 9.605/98(Lei de Crimes Ambientais

Brasileira), percebe-se que esta se refere à totalidade do meio ambiente. Pelo que se verifica, o ato normativo contemplou o meio ambiente em sua acepção ampla, compreendendo tanto o meio ambiente natural, como o artificial e o cultural, englobando infrações sobre o ordenamento urbano e o patrimônio histórico-cultural.

123 Ver também GARCÍA, Esther Hava. Op. cit., p. 37.

124 Partem da premissa de que existe uma distinção entre tutela do ambiente e tutela dos recursos naturais (Cf.

HAVA GARCÍA, Esther. Protección Jurídica de la Fauna y Flora en España. Prólogo de Juan Terradillos Basoco. Madrid: Editorial Trotta, 2000, pp. 29-43).

125 Cf. PRADO, Luiz Régis. Op. cit., pp. 104-106; CARVALHO, Érika Mendes de. O bem jurídico protegido

nos delitos florestais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 89, n. 776, p. 471 e ss., jun. 2000.

No âmbito de algumas concepções amplíssimas ou globalizantes, de acordo com Morato Leite e Ayala, a maioria dos doutrinadores brasileiros, a exemplo dos textos legais correlatos, parecem ter adotado a definição ampla de meio ambiente, em oposição ao conceito restrito, que só dá proteção aos recursos naturais127. Por exemplo, Silva, para quem o conceito de meio ambiente deve ser globalizante, de forma a abranger toda a Natureza, tanto a original quanto a artificial, juntamente com os bens culturais correlatos, compreendendo assim: o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, os patrimônios histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico128. Para Dussart, o meio ambiente compreende ―o homem (com seus problemas) ou de qualquer outro animal, ou vegetal; uma espécie viva insere-se em um tecido de coações entre os seres que ocupam o meio que os acolhe e este mesmo meio‖129.

De acordo com Giannini, conforme reza a atual legislação ambiental italiana, o ambiente deve ser contemplado numa perspectiva tripla: 1) o ambiente ao qual fazem referência a normativa (de caráter preeminentemente conservacionista) e o movimento ideológico relativo à paisagem, que englobaria tanto as áreas naturais, com especiais características geológicas, botânicas ou fônicas (por exemplo, vulcões, bosques, parques naturais) como aqueles outros espaços, transformados pelo homem, de singular valor estético ou cultural (centros históricos, zonas monumentais, etc.); 2) o ambiente ao que fazem referência a normativa e o movimento ideológico relativo à defesa do solo, do ar e da água (prevenção e repressão da contaminação); e 3) o ambiente ao que se referem a normativa e os estudos sobre urbanismo, que abarcaria toda a problemática da ordenação do território130.

Por sua vez, Gustapane compreende que o termo ambiente serve para compreender uma realidade formada ―pelo conjunto dos elementos naturais e/ou artificiais que incidem necessariamente desde o exterior sobre a formação estético-cultural, psicofísica, socioeconômica da pessoa‖131.

Entretanto, uma parcela da doutrina adota o conceito restrito de ambiente, tal como García-Matos e Escobar Roca, que não concordam com concepções tão amplas de ―meio ambiente‖, pois acreditam que, desta forma, há um prejuízo na construção de uma

127 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Op. cit., p. 83. 128 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 20.

129 DUSSART, B. Conceitos e unidades em ecologia. Enciclopédia de Ecologia apud MACHADO, Paulo

Affonso Leme. Op. cit., p. 60.

130 GIANNINI, 1973, pp. 23-25 apud HAVA GARCÍA, Esther. Op. cit., p. 33.

teoria jurídica ambiental correta132 e se torna impossível um tratamento coerente e homogêneo da matéria133.

Defensor de uma concepção altamente restritiva de meio ambiente, Martín Mateo faz uma distinção entre tutela do ambiente e tutela dos recursos naturais. Para o autor, o meio ambiente faz parte de um bloco do qual alguns elementos, tais como os biológicos ou minerais, por exemplo, ―exigem um tratamento distinto e não necessariamente coincidente com o que aportam as técnicas jurídicas utilizadas frente à problemática ambiental‖134. E

completa sua concepção, de forma pragmática e racionalista, com uma justificação quase que sarcástica: ―diferente de certas posições emocionais e ideológicas que parecem evocar a adesão a um credo quase esotérico no que a natureza assume uma função de valor imanente e absoluto‖135.

Defensores da corrente intermediária, a qual parece ser a mais acertada, no que concerne ao contexto de delimitação penal136, Luiz Régis Prado137 e Nelson Bugalho138 sustentam que a interpretação do bem jurídico-penal no Brasil, conforme o que se depreende do art. 225 da Constituição Federal Brasileira, é no sentido de se aderir à corrente intermediária e não globalizante, compreendendo-se os elementos precipuamente naturais (ar, água, solo, fauna e flora), tendo o ―ambiente cultural‖ (art. 216 CF/88) e o ―urbanismo‖ (art. 182 CF/88) sido tratados em outros pontos da Carta Magna.

No mesmo sentido, merece menção Canotilho, que busca referências do conteúdo ou dos elementos do meio ambiente a partir de uma interpretação constitucional. Assim sendo, segundo ele, são componentes do ―ambiente‖, segundo o art. 6º da Constituição Portuguesa de 1976: o ar, a luz, a água, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna139.

Para Inês Horta Pinto, e aqui vale uma lição bem precisa, penalmente, o ―ambiente não é protegido de forma absoluta, no seu todo‖, já que, do conceito amplo ofertado pela Constituição Portuguesa, compreendendo-se a proteção do patrimônio histórico, cultural e arquitetônico, no âmbito penal, há uma clara restrição, em atendimento ao princípio

132 GARCÍA MATOS, 1993, p. 1113 apud HAVA GARCÍA, Esther. Ibidem, p. 34. 133 ESCOBAR ROCA, 1995, p. 49 apud HAVA GARCÍA, Esther. Ibidem, p. 34.

134 MARTÍN MATEO, 1988, p. 36 apud HAVA GARCÍA, Esther. Ibidem, p. 37. (trad. livre da autora) 135 MARTÍN MATEO, 1991, pp. 86-87 apud HAVA GARCÍA, Esther. Ibidem, p. 37. (trad. livre da autora) 136 É majoritária na Doutrina Penal Européia, representada por nomes, tais quais: Bacigalupo Zapater, Berdugo

Gómez de la Torre, Cuesta Arzamendi, Muñoz Conde, Queralt Jiménez, Nuvolone, Eser, Tiedermann (Cf. REYNA ALFARO, Luis Miguel. Op. cit., p. 219).

137 PRADO, Luiz Régis. Op. cit., p. 56.

138 BUGALHO, Nelson Roberto. Op. cit., p. 304.

139 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Protecção do Ambiente e Direito de Propriedade (Crítica de

da intervenção penal mínima, para se fazer tutelar penalmente apenas alguns dos componentes ambientais140.

No mesmo sentido, Cuesta Aguado afirma que é necessário fazer a distinção entre meio ambiente e outros valores e bens jurídicos relacionados, tais como: o urbanismo, a qualidade de vida etc. Para a autora, é preciso diferenciar o meio ambiente dos elementos que o integram, tal como a biodiversidade, que alcançou proteção autônoma (apesar de ser um elemento derivado de ambiente)141.

Assim, enquanto grande parte da doutrina ambiental adota o conceito amplo142, o qual possui, indubitavelmente, o valor de abarcar todo o caráter de fundamentalidade do bem para a qualidade de vida humana, no que tange ao Direito Penal, isto parece impraticável, pois é preciso delimitar o conteúdo dos diversos componentes ambientais que serão passíveis de agressão típica143.

Das noções elencadas, resta mais compatível com as limitações jurídico-penais, nos termos que ora se defende, a definição de Rodriguez Mourullo, para quem o ambiente é ―o conjunto de elementos naturais – o ar, a água, o solo e sua conformação paisagística, a fauna e a flora – que acompanham e formam o substrato físico da existência do homem‖144, já

que, de suas atividades vitais incidem sempre, em alguma medida, em sua conformação.

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