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Das Funções Essenciais da Acessoriedade Administrativa nos delitos ambientais:

4 PROTEÇÃO PENAL AMBIENTAL E A ACESSORIEDADE ADMINISTRATIVA:

4.4 Das Funções Essenciais da Acessoriedade Administrativa nos delitos ambientais:

Como já foi demonstrado, o meio ambiente é um bem difuso, ou seja, tem destinatários indeterminados dentro de uma coletividade, assim como se rege por uma principiologia bastante peculiar744, tendo em visa que, algumas condutas lesivas, uma vez

742 Cf. BORGES, Anselmo. O crime econômico na perspectiva filosófico-teleológica. In: Rev. Portuguesa de

Ciência Criminal 1/21, 2000 apud D‘ÁVILA, Fábio Roberto. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D‘ÁVILA, Fábio Roberto [et alii]. Op. cit., p. 92.

743 Cf. trabalha a temática dos crimes de perigo abstrato com tal máxima, vide: D‘ÁVILA, Fábio Roberto. Op.

cit., p. 113.

744 Conforme salientado nos capítulos 1 e 2, alguns princípios norteadores da proteção ambiental, de um modo

geral, tais como: o da precaução e prevenção, são contrastantes com a estrutura da Dogmática Penal Tradicional, que foi inicialmente formulada a fim de conter os abusos do Estado, havendo, já em Beccaria (Op. cit., p. 75), a noção de ―danosidade social‖ para autorizar a intervenção.

praticadas, podem causar danos irreparáveis não só às presentes, mas também às futuras gerações.

Desta forma, quando na defesa do meio ambiente, como direito fundamental projetado para o futuro, as sanções administrativas (e/ou civis) não se mostrarem suficientes para a repressão das agressões contra este valor elementar social, repassa-se ao Direito Penal a competência para selecionar e punir as condutas mais gravosas.

Com base nas novas necessidades e dimensões do Direito Penal, especialmente da tipicidade e antijuridicidade penal745, com vistas à manter uma intervenção penal mínima e não ferir direitos e garantias fundamentais (como o do nullum crimen sine iniuria), e, assim, garantir sua legitimidade no ordenamento jurídico, há que se fazer uma análise e integração destes efeitos em relação aos delitos ecológicos, possibilitando-se uma reflexão teórica e, quiçá, elaborar uma nova construção jurídica.

Consubstanciado no que foi afirmado, em que pese a necessária coordenação entre o Direito Penal Ambiental e o Direito Administrativo na proteção do meio ambiente, cabe ao primeiro uma função meramente subsidiária na proteção dos bens jurídicos ecológicos mais importantes para a manutenção das condições vitais.

Além disso, restou assentado que em razão das especificidades do bem jurídico tutelado, na elaboração das normas penais ambientais, o legislador deve se recorrer à técnica do reenvio (ou acessoriedade) seja em relação a conceitos, normas ou atos administrativos concretos, já que no desenvolvimento de algumas atividades socialmente úteis e necessárias, indispensáveis à ordem dinâmica da sociedade contemporânea, alguns riscos ambientais podem ser suportados e outros não.

Há casos de referência expressa e implícita nos tipos penais, porém, em ambos os casos, entende-se como necessária a observância da normativa ou dos limites traçados pelo ato administrativo, precipuamente porque tais parâmetros norteiam o âmbito permissivo que

745 Há vários sistemas de fatos puníveis relacionados aos modelos estruturais de conjugação de seus elementos

integradores: tipicidade, ilicitude, culpabilidade. De acordo com Cirino dos Santos, há, na literatura alemã, principalmente dois: o modelo bipartido e o tripartido. No primeiro, de um lado, sustentado por Otto, o injusto penal é formado pela tipicidade e antijuridicidade, enquanto que, para Merkel, o conceito é bipartido porque é formado pelo tipo de injusto (tipicidade e não ocorrência de causas de justificação – ―teoria dos elementos negativos do tipo‖) mais culpabilidade. Já no modelo tripartido, na linha de Liszt, Beling, Radbruch, Welzel e Roxin, o fato punível seria formado por ação típica, antijuridicidade e culpabilidade. Neste sentido: SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., pp. 73-79.

deve ser considerado no momento de averiguação do juízo de desvalor relativo ao tipo penal746.

De acordo com um estudo aprofundado e específico sobre o assunto, Carvalho sustenta que a acessoriedade administrativa pode apresentar diferentes funções dogmáticas nos delitos ambientais, seja como causa de atipicidade da conduta por ausência de lesão ou perigo ao bem jurídico tutelado; ou, em outros, como medida de tolerância ou suportabilidade na lesão ou perigo de lesão típicos747. Isso porque a autora concebe que ao lado de preceitos que determinam certas ordens ou proibições relativas à proteção dos bens jurídicos ecológicos, há também preceitos permissivos, que podem autorizar alguns comportamentos que lesionam ou expõem em risco o meio ambiente748.

Nas normas penais ambientais em que se faz referência expressamente à acessoriedade administrativa, seja ela como elemento normativo do tipo que faça ensejando complementação conceitual, mas, precipuamente, normativa ou de ato administrativo; o atendimento aos padrões administrativos pode significar a atipicidade da conduta por valorá- la como socialmente adequada ou porque foi amparada pelo risco permitido. Já nos delitos em que a referência não é expressa, entende-se que ela existe, ainda que de forma implícita, e que sua função consistirá na análise da atuação do agente sob o manto de eventuais causas de

justificação, excluindo-se, assim, a ilicitude da conduta.

No primeiro aspecto, é preciso, conforme leciona Jescheck, partir do pressuposto que tanto nos comportamentos ativos quanto omissivos, deve-se buscar a sua relação com ―o mundo que os circunda‖, de forma que, para fins penais, a ação deve ser um comportamento ―socialmente relevante‖, seja porque o agente agiu com a finalidade (ação) ou que a sua projeção para o exterior tenha sido esperada e dirigível (omissão)749.

Logicamente, a análise do comportamento socialmente relevante não dispensa os juízos de antijuridicidade nem de culpabilidade, a fim de saber se o indivíduo será merecedor ou não de pena. Porém, a grande tarefa de uma noção social de ação é ―assinalar e delimitar, enquanto ao seu conteúdo, o âmbito que de alguma maneira interessa ao juízo de imputação‖ penal, sendo, portanto, de grande valor sistemático para a compreensão do delito750.

746 CARVALHO, Érika Mendes de. Ensaio sobre o significado dogmático da acessoriedade administrativa nos

delitos ambientais. Revista Liberdades (IBCCRIM). Edição Especial, pp. 23-46, dez.2011. Disponível na Internet em: http://revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/10/artigo1.pdf. Acesso em: nov.2012, p. 24.

747 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, p. 24. 748 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, p. 27. 749 JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit., pp. 201-202.

Assim, como o Direito Penal Ambiental não protege de forma absoluta os bens ecológicos, o que deve ocorrer, na verdade, é um jogo de sopesamento de interesses entre a tutela e a utilização racional de determinados recursos naturais necessários para o desenvolvimento social; de modo que a referência expressa ao ato administrativo (por exemplo, nas condutas em que se proíbe explorar florestas sem a devida permissão, licença da autoridade competente – vide art. 39 da Lei 9.605/98); exerce um parâmetro de adequabilidade social da conduta. Em outras palavras, não há o desvalor da ação (e, consequentemente, também não haverá do resultado) na conduta praticada amparada pelo ato permissivo, e, portanto, é atípica por ser adequada socialmente751.

Mesmo nas remissões não aos atos concretos, mas às normas de direito administrativo, como elemento normativo dos tipos penais ecológicos, a complementação possibilita uma valoração do sentido social da conduta praticada pelo indivíduo. Deste modo, quando o preceito incriminador fizer referência à expressão ―com infringência de normas de proteção ambiental‖ (vide artigos, por exemplo, 38, 38-A, 45, da Lei 9.605/98), não haverá desvalor da conduta (nem do resultado) se o agente atuar no âmbito do determinado administrativamente, ainda que, eventualmente, possa haver uma afetação do bem jurídico, estará atuando dentro dos parâmetros de utilidade social752.

Em síntese, pode-se depreender que, se o legislador lança mão da acessoriedade administrativa no tipo penal, seja nos delitos de lesão, perigo abstrato ou concreto, é possível afirmar que o elemento normativo referido possui a valoração (seja ela concreta ou abstrata) realizada pela Administração Ambiental. Se a valoração for adequada socialmente, isso indicará a atipicidade da conduta, não havendo que se falar em desvalor da ação, e, muito menos, em desvalor do resultado753.

Cabe ressaltar que, mesmo que uma ação seja adequada socialmente, ainda assim ela pode lesionar ou colocar em perigo outros bens jurídicos. Utilizando-se como exemplo os crimes ambientais, isso representa dizer que, mesmo que o indivíduo se atenha à licença ou permissão e a respeite em seus limites, isso não obsta que sua conduta possa colocar em perigo ou lesionar bens jurídicos individuais correlacionados754.

751 CARVALHO, Érika Mendes de. Op. cit., p. 30. 752 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, pp. 32-33. 753 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, p. 42. 754 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, p. 42.

Assim, se mesmo amparado nas premissas da normativa extrapenal e, as consequências danosas do seu exercício não foram objeto de previsão ou ponderação anterior por parte deste, inexiste desvalor da conduta e do resultado no comportamento755.

De acordo com o que leciona Jescheck, o ―risco permitido‖ não é nenhuma justificante, mas sim, é um ―princípio estrutural comum‖ para as diversas causas de justificação756. Nestas, configuradas segundo a estrutura do risco permitido, o autor obtém uma permissão enquanto ação para a atuação arriscada, mas não uma faculdade de intervenção no bem jurídico protegido, posto que este é, a princípio, tão digno de proteção como o interesse que o autor defende, e as condições que justificariam a intervenção não se dão ao tempo de realizar a ação que em última instância pudessem revelar-se como concorrentes757.

É como se afirmasse que, em que pese a insegurança gerada, a ação perigosa é autorizada pelo legislador para assegurar, de certo modo, o interesse defendido pelo sujeito. Assim, se a ação arriscada causa uma lesão ao bem jurídico protegido, revelando-se objetivamente injustificada, mas os pressupostos reunidos pelo autor não concorreram para a ocorrência do fato, conforme se evidencia depois, este comportamento deve ser absorvido e assumido pelo ordenamento, e, não pelo sujeito. Isto é, para uma causa de justificação baseada no risco permitido, basta que o agente demonstre uma ―cuidadosa comprovação dos pressupostos que interessem ao ponto incerto‖758.

Deste contexto pode-se inferir que mesmo nas remissões implícitas à acessoriedade administrativa, há uma função de ―parâmetro material de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico‖759, ou seja, ainda assim, este reenvio deve ser considerado na análise

dos delitos ambientais. Em outras palavras, as normas que determinam o cuidado objetivo, estabelecem o âmbito do risco permitido, de modo que, mesmo que a conduta seja aparentemente típica, não poderá ser considerada ilícita dado que é necessária para outra finalidade também valiosa para o ordenamento760.

755 CARVALHO, Érika Mendes de. Ibidem, pp. 42-43.

756 JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit., p. 361. Neste mesmo sentido, CARVALHO (Ibidem, p. 25):

―Consequentemente, o chamado risco permitido consiste em um princípio estrutural das causas de justificação, que possibilita a realização de condutas típicas socialmente necessárias. No caso do exercício de um direito, será fundamental examinar a regularidade deste exercício, a saber, sua proporcionalidade, sua oportunidade e sua necessidade, delimitadas pelo cuidado objetivo devido‖.

757 JESCHECK, Hans-Heinrich. Ibidem, p. 361.

758 JESCHECK, Hans-Heinrich. Ibidem, p. 361. (trad. livre da autora) 759 LOBATO, José Danilo Tavares. Op. cit., p. 157.

Um exemplo claro desta situação é o que ocorre no tipo penal do art. 54 da Lei 9.605/98: neste crime de poluição, mesmo que o legislador não tenha feito referência expressa à normativa ou a atos administrativos concretos, é impossível ignorar os parâmetros ou índices permissíveis elencados pelas normas administrativas.

Conforme leciona Paulo Affonso Leme Machado, seria uma afronta ao princípio da unidade do ordenamento, considerar que o agente pudesse empreender sua conduta, totalmente desvinculada dos padrões ambientais, ainda que o tipo penal não faça remissão a nenhum descumprimento de qualquer norma ou ato administrativo761. Até porque o particular, quando empreende uma determinada atividade potencialmente poluidora, deve conhecer, por meio da normativa administrativa, quais são os valores-limite de poluição aceitáveis, a fim de que não se viole o princípio da confiança em relação aos preceitos legais exigíveis. Ou seja, não seria correto, por parte da Administração, traçar determinados limites, enquanto o Direito Penal criasse outros totalmente discrepantes, afetando-se a segurança jurídica inerente às relações sociais. Estaria, destarte, diante de uma ―contradição sistêmica‖ e uma ofensa ao princípio político-criminal que garante a atuação do Direito Penal apenas como ultima

ratio762.

Em suma, o que se veda, pelo Direito Penal, são os riscos adicionais, acessórios, que vão além do âmbito permitido traçado pelos padrões trazidos pela Administração Ambiental. Neste caso, se abarcados pelo dolo ou imputáveis a título de culpa ao agente, estes riscos não poderão ser suportados pelo ordenamento, e, portanto, deverão ser imputados penalmente ao sujeito que os deu causa.

Do exposto não é possível concordar integralmente, por exemplo, com autores como Silva Sánchez, de que o legislador penal é quem deve, em primeiro lugar, conferir a determinação dos riscos permitidos, e, só depois a dogmática e a prática dos juízes763. Pelo contrário, a tarefa de se determinar o risco lícito não é única e exclusiva do legislador de Direito Penal, já que outras searas e órgãos podem definir aqueles parâmetros que impedem a intervenção do ius puniendi, dada a tolerância social das condutas764. Entretanto, mesmo que as técnicas de reenvio administrativo coadunem com a determinação do risco permitido, de acordo com o que foi sustentado, para fins de legitimação da intervenção penal ambiental,

761 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. cit., p. 702. 762 LOBATO, José Danilo Tavares. Op. cit., p. 158.

763 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Protección penal del médio ambiente? Texto y contexto del art. 325. In:

Diario La Ley, 1997, tomo 3, D-132, p. 15-16.

faz-se de extrema importância a concorrência dos demais pressupostos de imputação exigidos pelo tipo penal, a fim de que se mantenham as garantias penais inarredáveis.

CONCLUSÃO

Diante da abordagem realizada neste estudo, é possível inferir algumas ideias conclusivas:

1. é inegável a necessidade de reflexão sobre as novas características da sociedade mundial, pautada na globalização, na inserção de tecnologias e no alto padrão de consumo, especialmente no que se refere à temática dos riscos sociais propiciados por este processo evolutivo;

2. também não é possível desconsiderar que, em razão das mudanças sociais, a forma de o homem se relacionar com a natureza e os elementos que esta compõem foi alterada e requer uma tomada de posição para que se possa controlar (ou, para aqueles que desconsideram o fenômeno, evitar) a crise ecológica que foi desencadeada desde os séculos anteriores, com os pioneiros da revolução industrial;

3. a sociedade de riscos foi sentida não apenas nos debates sociológicos, mas sobejamente, no âmbito jurídico, que requer uma inarredável sensibilização do Direito para com a sensação geral de insegurança pautada na distribuição de riscos globais, imensuráveis e desconhecidos científicamente;

4. ficou assentado também que o papel dos Estados Nacionais, diante desse contexto, não pode ser o mesmo dos Estados Liberais de Direito dos séculos XVIII e XIX, já que os contextos de ameaças globais impõem-lhes uma atuação gerencial positiva e prestacional;

5. não há dúvidas de que a constitucionalização e a elevação do meio ambiente à posição de direitos fundamentais alteraram a própria noção de dignidade humana, haja vista que as condições de equilíbrio ambiental proporcionam a sadia qualidade de vida, indispensável para as presentes e futuras gerações;

6. a relevância da preservação do meio ambiente, neste contexto de fundamentalidade constitucional, ensejou uma elevação em sua dignidade e na necessidade de tutela penal, como um verdadeiro bem jurídico-penal;

7. sob a ótica da teoria do bem jurídico, sustentada (e não abdicada) por este estudo, o meio ambiente apresenta uma especificidade que o dota de caráter complexo, do ponto de vista conceitual, o que, a fim de compatibilizar com os princípios limitadores da atuação punitiva, obriga-se a uma delimitação do objeto ou conteúdo protetivo;

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