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COMPOSIÇÃO DO TEXTO DRAMÁTICO E ENTRAVES NA LEITURA

No documento 2019FabianoTadeuGrazioli (páginas 104-109)

4 A ANÁLISE E LEITURA DO TEXTO TEATRAL

4.2 COMPOSIÇÃO DO TEXTO DRAMÁTICO E ENTRAVES NA LEITURA

O que há de mais claro na leitura do texto teatral é a sua composição, pois percebemos imediatamente que se trata de um texto composto pelas falas das personagens e pelas informações que contextualizam essas falas. De acordo com o que apresentamos na sequência

desta seção, os autores e críticos literários referem-se a esses dois elementos nomeando o primeiro simplesmente como fala e o seu conjunto como diálogo, e o segundo como rubrica ou didascália. Já tratamos brevemente dos diálogos nas seção anterior, quando também trouxemos ao nosso texto considerações sobre o monólogo. Assim, dedicamo-nos, agora, a levantar algumas informações sobre as didascálias. A primeira formulação que Ryngaert apresenta em Introdução à análise do teatro é a de que “alguns textos de teatro incluem, além do texto a ser pronunciado pelas personagens, um metatexto (ou texto sobre o texto), conjunto das didascálias fornecidas pelo autor, em alguns casos diferenciadas por uma tipografia especial”. (RYNGAERT, 1996, p. 44).

Na dramaturgia contemporânea, são menos recorrentes os casos em que o texto é composto somente pelos diálogos. As didascálias quase sempre comparecem, sejam elas seguidas ou não pelos diretores e atores. Na continuação da abordagem desse tema, Ryngaert afirma:

No teatro moderno, em que falamos de indicações cênicas, trata-se dos textos que não se destinam a ser pronunciados no palco, mas que ajudam o leitor a compreender e a imaginar a ação e as personagens. Esses textos são igualmente úteis ao diretor e aos atores durante os ensaios, mesmo que eles não os respeitem. Distinguimos as indicações que concernem apenas à condução da narrativa (do enredo, como veremos) daquelas que seriam estritamente cênicas. (RYNGAERT, 1996, p. 44).

Duas são as categorias de didascálias apontadas pelo autor: aquelas que informam sobre a condução da narrativa e aquelas que teriam uma função estritamente cênica. Há também autores que não fornecem nenhuma informação e autores que dão grande importância a esse recurso textual. Sobre o primeiro caso, Ryngaert considera que

Quando o autor não fornece nenhuma indicação é porque deseja abster-se de dar outras pistas para a interpretação além daquelas incluídas no texto das personagens. Ele mantém a abertura, até mesmo a ambiguidade, de seu texto, e deixa o campo livre ao leitor, não impondo de antemão qualquer interpretação que sirva de modelo à representação. Com isso também mostra a importância que atribui às palavras pronunciadas pelos atores. (RYNGAERT, 1996, p. 44).

Nesses casos, fica por conta do leitor, seja ele do meio cênico ou não, encontrar as informações necessárias um tanto que escondidas nos diálogos. Há uma preocupação por parte desses autores com a abertura que o texto passa a ter, tendo em visa a recepção do texto escrito. O autor não impõe qualquer informação que venha a cercear a liberdade do leitor de escolher uma trilha naquele mapa textual que é a peça escrita e seguir por ela até que sua escolha se confirme como adequada ou então necessite reiniciar seu caminho por outras veredas.

Quanto ao segundo caso, Ryngaert destaca:

[...] certos autores atribuem um lugar considerável às indicações cênicas, como se definissem antecipadamente a forma da representação ou como se não pudessem imaginar o texto das personagens independentemente do contexto no qual este seria produzido. Escritores tão diferentes como Feydeau, Jean Vauthier ou ainda Samuel Beckett, por exemplo, redigem suas indicações cênicas com um cuidado quase maníaco. Fim de jogo, de Beckett, começa por três páginas de indicações cênicas que pormenorizam o espaço e depois a representação. (RYNGAERT, 1996, p 45, grifos do autor).

Um grupo maior de autores não abre mão das informações que dizem respeito à condução do enredo e daquelas que têm função estritamente cênica. Os textos dramáticos, nesse caso, têm os diálogos permeados pelas didascálias e possuem informações que contextualizam as falas, permitindo ao leitor imaginar as cenas, as personagens, as ações, segundo o projeto de encenação dos autores, o qual ficaria registrado nas didascálias, conforme já tratamos no segundo capítulo, a partir das colocações de Ramos.

Mas nem tudo é tão pacífico na abordagem da temática das didascálias quando da análise da estrutura do texto dramático. O dramaturgo tem o direito de efetivar seu projeto de escrita construindo um texto que não possua didascálias. Contudo, quando o projeto do autor prevê tal recurso, não se pode ignorar, considerando a leitura do texto dramatúrgico, a presença das rubricas e nem delas fazer pouco caso, como temos percebido nos estudos de alguns autores.

Carlos Reis (2003), ao tratar a respeito da estruturação do texto dramático, admite a existência de dois textos que se articulam na configuração de um único: um texto principal e um secundário. Ao texto principal, segundo o autor, cabe a enunciação da personagem, sua dialogação e sua expressão verbal. O adjetivo “principal” revela o destaque que, para Reis, o discurso da personagem tem no texto teatral e, consequentemente, na sua representação. Quanto ao texto secundário, a ele é atribuída a função de informar as características da personagem, sua situação na cena em questão, a entonação do seu discurso e como a personagem deve proceder no desenvolvimento da cena ou do diálogo. Também cabe ao texto secundário a indicação a respeito do espaço onde se realiza a ação da peça, do ato ou da cena. Segundo Reis, esse texto seria, na verdade, um subtexto, e mesmo que tenha tantas finalidades, desempenha função secundária frente aos diálogos.

A evidente supervalorização dos diálogos frente às rubricas que Reis revela, do mesmo modo que por meio da nomenclatura que seleciona – “texto principal” e “texto secundário” – encontra correspondência nas considerações do autor Sergius Gonzaga (2004), mesmo que

este nem chegue a abrir um espaço em seu texto para desenvolver o tópico em questão. Ao tecer considerações a respeito do processo de transposição do texto teatral para o palco, comenta discretamente: “Os atores emprestam ao texto, composto basicamente de diálogos, seu corpo, seus gestos, seu olhar e sua voz, mostrando, desse modo, ao público, as personagens que encarnam” (GONZAGA, 2004, p. 39).

O autor considera, ainda, que as demais informações que o texto teatral pode conter, incluindo os diálogos, são tão dispensáveis que, ao referir-se ao texto teatral, ele nem as cita. O “esquecimento” do autor não permite que, em sua pequena incursão pelo tema, o desprestígio do segundo texto12 frente aos diálogos seja sinalizado: a expressão “basicamente”, utilizada por ele, já nos revela a inferioridade que credita à rubrica.

Observamos também uma contradição na posição de Gonzaga, tendo em vista toda a citação transcrita anteriormente. Os atores só poderão “emprestar ao texto” sua performance corporal, se esse processo for mediado pelas didascálias. É importante lembrar que até mesmo os textos gregos do período clássico que, segundo Ramos, ocultavam nos diálogos as informações necessárias à sua articulação no palco, exigiam o trabalho de um intermediário que, conhecedor do texto e das intenções do escritor, conduzia os atores nas encenações, o que nos faz pensar na inevitável contextualização por meio de informações, sejam elas escritas ou instruções orais. Quanto à leitura dos referidos textos, hoje, vale ressaltar que muitas vezes eles chegam até nós por meio de traduções que procuram inserir ao menos as rubricas que facilitam a leitura ao leitor contemporâneo.

A importância do texto principal é reiterada por Reis, que compara texto teatral e narrativo, articulando, nessa comparação, a figura do narrador:

[...] não se manifesta aqui [nas didascálias] ao mesmo nível textual do discurso dos personagens, uma voz estruturante e organizadora da ação, correspondendo àquela que na narrativa é a voz do narrador. É certo que, como leitores, temos acesso aos dois textos, trata-se, portanto, de uma situação, por assim dizer, provisória e circunstancial, ainda aquém do que deverá ser o completamento e a plena articulação de ambos os textos referidos no espetáculo teatral.(REIS, 2003, p. 269, grifos do autor).

Segundo o autor, a divisão do texto teatral em principal e secundário desaparece na representação, o que o leva a considerar, enquanto somente lido, um texto provisório. No espetáculo, o segundo texto desaparece, ou melhor, transforma-se na sua propriedade visual:

12 Optamos por usar, neste caso, a nomenclatura que Reis utiliza para designar a rubrica, por dois motivos: por

não sabermos como Gonzaga se refere a elas e por compreendermos que o espaço que esse autor dá ao elemento em questão é secundário, tal qual verificamos em Reis.

tudo aquilo que o espectador não escuta, mas vê, desde os aspectos do cenário e do figurino até a entonação da voz e a atuação corporal. Ainda que a tensão entre diálogos e rubricas pareça diminuir ao tratar da encenação, percebemos que o autor considera a leitura do texto teatral uma ação incompleta, “aquém” do que é a atualização promovida pelo espetáculo. Essa inferioridade também é expressa quando Reis destitui a didascália de sua função narrativa e organizadora do discurso literário dramático. Na verdade, esses dois equívocos estão imbricados: o primeiro configura-se como consequência do segundo, uma vez que o autor deixa transparecer que está empenhado em transferir para o campo da encenação os impasses que a teoria literária tem dificuldade de resolver.

O processo de recepção de textos escritos que busque oferecer, assim, aos leitores em formação, o texto dramatúrgico e que utilize como suporte teórico as considerações de Reis e Gonzaga está fadado ao insucesso. Os encaminhamentos teóricos desses autores promovem, pelo menos, duas orientações equivocadas com relação à leitura do texto de dramaturgia: a exclusão do gênero dramático do grupo dos diferentes textos que poderiam fazer parte desse processo e, tendo em vista a possibilidade de o leitor chegar ao texto, a realização de uma leitura incompleta. A primeira consequência negativa é resultado dos comentários que avaliam a recepção do gênero dramático por meio da leitura do texto escrito como insatisfatória. A segunda é patrocinada pelas considerações que diminuem a importância das rubricas frente aos diálogos, o que pode levar o leitor a ignorá-las.

Desse modo, afirmamos que procedimentos como os apresentados por Reis e Gonzaga terminam por estimular a rejeição do gênero dramático nos diferentes níveis de ensino ou, na melhor das hipóteses, por encaminhar, de modo equivocado, o encontro entre leitores e peças teatrais. Ryngaert reclama da falta que a leitura da dramaturgia faz no sistema de ensino francês:

o teatro contemporâneo conhece uma espécie de déficit de leitura porque tem a reputação de ser de mais difícil acesso, porque até agora tem pouca presença no

sistema educativo e porque as características da edição o reduzem, como veremos,

ao mínimo suficiente para sua compreensão. Ouvimos tanto dizer que o teatro era incompleto sem a representação [outro equívoco dos estudos literários], que não é de surpreender que autores se revoltem contra as leis do espetáculo e do mercado ou que reivindiquem o interesse do texto tal como existe em si mesmo. (RYNGAERT 2013, p. 64, grifo nosso).

Muitas vezes, as características da edição de textos escritos – visando mais à encenação do que a leitura por aquele círculo de leitores que se encontra fora dos meios cênicos – dificultam mais ainda o encontro entre textos dramáticos e leitores. No Brasil, duas questões

assemelham-se ao contexto francês e despertam nosso interesse: a) a quase ausência do gênero dramático das compras de livros do governo federal; b) o número ínfimo de textos teatrais publicados anualmente, sejam lá quais forem as características composicionais desses textos.

No primeiro caso, para ilustrarmos a questão com dados mais recentes, reafirmamos: nem os programas de leitura do Ministério da Educação, ao selecionar seus acervos, dão a devida importância ao gênero dramático, pois, se observado o número de obras dramatúrgicas escolhidas na última seleção para o extinto Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) para os anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio (2013), notamos que, dos seis acervos de sessenta obras cada, formando um montante de trezentas e sessenta obras, somente quatro são do gênero dramático (salvo engano em nossa contagem).

No segundo caso, cabe lembrar, como bem observam Ninfa Parreiras, Márcia Frederico e Maria Helena Krühner (2009), que, em nosso país, as produções editoriais são muito poucas, se considerarmos os números quantitativos da produção literária nacional para a infância e juventude: de cada mil e quinhentas obras publicadas ao ano, cerca de dez apenas são textos dramáticos (esses dados referem-se aos anos que antecedem a publicação aqui utilizada). E perguntamo-nos: das dez obras publicadas, quantas poderiam ser oferecidas ao público infantil? Muitos textos de qualidade nem chegam a ser publicados: há um interesse absoluto pelo gênero narrativo por parte das editoras. Questões como essas geram a dificuldade de acesso a bons textos teatrais e o afastamento desse texto do “cardápio” do jovem leitor.

As duas questões estão imbricadas, pois se as compras governamentais não contemplam o gênero dramático é também porque poucos textos são inscritos na abertura dos editais, por conta da publicação ínfima desses textos no mercado editorial brasileiro.

No documento 2019FabianoTadeuGrazioli (páginas 104-109)