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Presença do universo infantil

No documento 2019FabianoTadeuGrazioli (páginas 132-136)

6 CANTO DE CRAVO E ROSA, DE VIVIANE JUGUERO: A DRAMATRUGIA IMPRESSA PARA A LEITURA DA CRIANÇA

6.1 ETAPA 1: EXISTÊNCIA E PERTINÊNCIA DA DRAMATURGIA INFANTIL: PONTOS DE AVAL

6.1.2 Presença do universo infantil

A presença do universo infantil, outro critério de análise inserido no dispositivo apresentado, terá seus indicadores de abordagem influenciados pela origem do texto dramático em questão, de acordo com o que já anunciamos. O universo mágico, primeiro indicador de abordagem, diz respeito à imersão da criança no imaginário infantil, conforme tratamos a partir de Bender. Em Canto de Cravo e Rosa essa característica do texto transparece pela adesão de Juguero ao universo das cantigas folclóricas. Esse portal, por assim dizer, já é delineado por Juguero quando lança mão, em seu projeto de criação, do universo popular infantil do qual fazem parte as cantigas folclóricas. O leitor, em contato com o texto dramático em questão, vê-se imerso no universo que é próprio da infância e que as cantigas folclóricas potencializam. Desse modo, esse mesmo leitor encontra as personagens das cantigas infantis, no caso do texto em análise, não integrados às personagens humanos, como prevê o próximo indicador de abordagem, pois na proposta de Juguero não temos personagens humanos, todos eles habitam o universo do faz de conta, sendo personagens (animais ou plantas) de cantigas folclóricas, ou outros animais que habitam o jardim, espaço no qual a ação do texto transcorre.

Canto de Cravo e Rosa torna-se espaço de coexistência entre o real e o mágico se

tomarmos aqui o real como os conflitos que perpassam as relações humanas. É nesse sentido que Juguero mostra à criança um aspecto do mundo real que se harmoniza, na estrutura dramática, com o espaço mágico das cantigas folclóricas. Os conflitos presentes na história habitam, antes do espaço imaginário do texto, a esfera das ações humanas. A inveja, bem como o desejo de que o Outro siga infeliz e apartado da pessoa amada, são localizados na vida real, da qual a criança passa a pertencer assim que nasce e, nesse mundo, o mal chega até a criança: ela não é poupada desses aspectos menos nobres da constituição do caráter humano.

As personagens de Canto de Cravo e Rosa, em um processo de identificação, levam a criança ao autoconhecimento, como está previsto em um dos indicadores de abordagem para o critério da presença do universo infantil na dramaturgia. Essa identificação é imediata, pelo fato de a criança, como já destacamos, conhecer as cantigas folclóricas a partir da qual a dramaturgia de Juguero, para o texto em questão, é elaborada. Essa identificação leva ao autoconhecimento à medida que a criança adere ao mundo do faz de conta e passa a ver nas

experiências das personagens as suas próprias experiências. Essa noção já foi por nós destacada no capítulo dois, a partir de diversos autores.

O predomínio da linguagem da criança no sustento e alimentação da globalidade da obra – outro indicador de abordagem da presença do universo infantil na dramaturgia – comparece na criação de Juguero também pela adesão ao universo das cantigas populares e, principalmente, pela utilização das próprias cantigas na composição do texto, enfatizamos. As cantigas fazem parte da linguagem infantil e, durante boa parte da vida infante, constituem a própria linguagem da criança, que vai adentrando em um universo de cantigas cada vez mais elaboradas de acordo com a idade que vai atingindo, conforme já destacamos a partir de Pondé. Assim, ao inserir nos diálogos das personagens os versos das cantigas folclóricas, Juguero não só colabora definitivamente para que a linguagem da criança seja parte constituinte da dramaturgia exposta em Canto de Cravo e Rosa, mas também alimenta o processo criativo que predomina na referida criação.

É por meio dos aspectos elencados que notamos, no texto em questão, uma abertura que possibilita a circulação imaginativa da criança marcada por uma pura espontaneidade, outro indicador de abordagem da presença do universo infantil na dramaturgia. A criança, percebendo-se imersa na dramaturgia de Juguero exposta em Canto de Cravo e Rosa, vê-se impulsionada a circular pelo texto, no sentido que postulava Camarotti, com possibilidade de armá-lo, desarmá-lo, ao impulso de sua imaginação criadora. Uma vez que comunga do universo que dá origem ao texto dramático em questão – e que, em partes, o constitui –, será um exercício criativo acompanhar uma história com tantas relações com a poesia de origem folclórica e se sentirá capaz de movimentar-se dentro do texto, espontaneamente. Além disso, a estrutura do texto de Juguero – o enredo que a autora elabora, a parte autoral, de sua criação – é de plena assimilação pela criança, que acompanha as personagens das cantigas por aventuras, intrigas e desencontros amorosos. Juguero soube dosar muito bem a parte que lhe coube inventar no texto dramático, o que nos leva a afirmar que não é perceptível uma defasagem entre os dois tipos de composição: a autora passa da poesia folclórica à dramaturgia autoral com a suavidade necessária para que a criança circule por seu texto sem tropeços de nenhuma natureza.

O próximo indicador de abordagem da presença do universo infantil na dramaturgia é o quanto o texto pode se tornar um estímulo à capacidade da criança de refletir sobre as ações apresentadas, identificar-se com elas e traduzi-las para o seu mundo. Notamos esse processo em Canto de Cravo e Rosa, que, pelas características do texto que estamos apontando desde o início do capítulo, estimula a criança no sentido que o indicador prevê. Uma vez que lhe é

apresentado um universo com o qual a criança compactua, por adesão à poesia folclórica em diversos aspectos da construção da dramaturgia de Juguero, a criança está mais próxima do enredo que a autora estabelece para a história. Com sua entrada garantida nesse universo, a criança consegue refletir, a seu modo e do seu lugar no mundo, sobre a temática principal do texto, que é a diversidade. No jardim onde vivem o Cravo, a Rosa e os animais que comparecem ao enredo da peça, resolvidos os conflitos desencadeados pela inveja da Aranha, cada personagem identifica-se com uma habilidade, seja na música, seja na vida. À Aranha, com pouca habilidade para cantar, cabe tocar trompete, função que é a única do jardim a desempenhar, e a qual faz com primor. Sem partir para discursos cansativos e lições de moral, Juguero deixa o preceito que listamos acima ser percebido nos diálogos e, principalmente, na ação dramática que prevê para o encerramento do texto: um número musical com todos as personagens, o único a contar com a presença de todos durante a peça.

Notamos que o texto de Juguero tem potencial para fazer com que a criança reflita sobre as ações apresentadas, inclusive percebendo a articulação da maldade: enquanto a Aranha ainda não é recebida no grupo de amigos e ainda insiste em querer ser a cantora do jardim, quando, na verdade, suas habilidades são de uma excelente trompetista. Além disso, a criança é levada a identificar-se com elas, por adesão ao universo da poesia folclórica e também porque é capaz de trazer ao seu mundo as ações que percebe na peça. Sendo assim, é fácil traduzi-las para a o universo infante, que não é isento do mal que perpassa, por determinado tempo, a personalidade de personagens como a Aranha, muito menos da sensibilidade para a história de amor que vivem, na peça, o Cravo e a Rosa.

Desmembrando o último indicador de abordagem do critério de que estamos tratando em duas partes, podemos afirmar que Juguero faz uso da linguagem poética e conduz a dramaturgia exposta em Canto de Cravo e Rosa de modo lírico e inventivo. A adesão da autora à linguagem poética já se dá, parcialmente, por transitar pelo universo da poesia folclórica. Por mais simples que sejam as cantigas infantis, frente à poesia autoral elas conservam características da linguagem poética, seja na sonoridade, seja na condução dos temas próprios da infância que se fazem presentes nesse universo. Contudo, a adesão ao lirismo e à linguagem poética é percebida também na mistura das cantigas folclóricas com o texto que Juguero elabora. O encaixe dos versos de determinadas cantigas nos diálogos das personagens, que já levantamos como indicador de abordagem para outro critério, é um feito que resulta em lirismo, basta conferir os exemplos que trouxemos do texto neste capítulo. Quando a sobreposição dos versos ao texto elaborado pela autora assinala, no enredo, um momento de sofrimento das personagens, o lirismo torna-se mais intenso, como podemos perceber:

Cravo – Oh! Como sofre meu pobre coração. A minha amada, a minha flor de

formosura, me enganando, enchendo meu peito de desgosto.

Com o coração partido, E o orgulho despetalado, O Cravo não vê sentido, Em continuar o noivado.

Cravo – O anel que tu me deste era vidro e se quebrou.

O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou. (JUGUERO, 2009, p. 16, grifos da autora).

A tristeza que toma conta do Cravo, quando ele supõe que a Rosa não tem mais amor por ele, leva a personagem a cantar dois versos da cantiga Ciranda, cirandinha, e a cena reveste-se de lirismo e comoção, afinal trata-se da separação do par romântico da história. O momento em que tal separação acontece de fato, em cena, já foi recuperado em outra oportunidade deste capítulo, no qual Cravo e Rosa fazem seu último dueto antes da separação e cantam tristemente a cantiga Peixe Vivo. Outro momento em que o lirismo faz-se presente – e que versos de cantigas e o texto escrito por Juguero fundem-se em cenas de sofrimento das personagens – é neste pequeno monólogo da Rosa:

Ó Rosa, Rosa amarela, ó Rosa amarela eu sou. Sou a Rosa amarela, Cravo branco é meu amor. Lá vem a lua saindo, por detrás da sacristia,

Deu no Cravo, deu na Rosa, sem amor não há mais dia.

Cantar para quê? Não há cantiga que possa alegrar meu coração. Oh, Cravo, motivo da minha alegria, por que teimas em me entristecer? Por que pensas mal de mim se nunca te dei motivo para isso? Que ciúme tão forte é esse que te deixa cego? Que não permite que enxergues que o amor que sinto por ti é maior do que o número de estrelas que enfeitam o céu? Como me faz falta a tua voz, acompanhando a minha, em nossas canções... Onde está o teu perfume que combina tão bem com o meu? Não tenho mais motivo para cantar.

(JUGUERO, 2009, p. 28-29, grifos da autora).

Desta vez, a personagem parte da cantiga Rosa amarela, que é declamada/cantada integralmente, e, depois, faz uma reflexão sobre o período que está vivendo, o de separação do Cravo. Essa reflexão tem um tom exclamatório e lírico, é o sofrimento da pessoa amada apartada de seu par transformado em texto. Em nosso entendimento, Juguero soube encontrar a medida certa para comunicar tal sofrimento à criança na dramaturgia, jogando com lirismo, tristeza e melancolia.

O outro desdobramento do último indicador de abordagem do critério de análise de que estamos tratando é o respeito à inteligência e à curiosidade da criança. Pelo que já

trouxemos à nossa discussão, principalmente a partir de Bocheco, Bordini, Coelho e Assumpção, podemos afirmar que Juguero respeita a inteligência do leitor, apresentando o conhecido somado à novidade e ao desafio que o novo representa. Quanto ao respeito à curiosidade da criança, Juguero também o promove, pois qual criança não ficaria curiosa por conhecer um enredo no qual seus personagens conhecidos de outros contextos serão dispostos em uma nova aventura, em uma nova história que não é mais aquela conhecida das cantigas que o acompanham, e sim, uma nova criação, fruto da inventividade e da inquietação de uma dramaturga?

No documento 2019FabianoTadeuGrazioli (páginas 132-136)